sexta-feira, 27 de julho de 2007

Um Cotidiano Encantado

Em pouco tempo as coisas mudaram completamente, houve uma metamorfose do tudo! Costumes e hábitos de minha infância e de minha adolescência foram condenados ao nada e novas formas de convivência surgiram. As moradias do meu antes, com jardim e terreiro, tombaram à força da especulação imobiliária. Os prédios se alevantaram, alcançaram quase as nuvens, tão diferentes dos antigos arranha-céus, as primeiras construções verticais do Recife, como a da Pracinha. Ninguém ouve mais o galo cantar, anunciando a meia-noite e depois noticiando o amanhecer do dia. E ninguém vai mais ao galinheiro de casa buscar um ovo de postura recente e com manteiga de boa qualidade fritar o produto doméstico, com a gema mole e a clara cozida inteiramente. O lanche da escola era esse também, um sanduíche: pão com ovo. Na hora do recreio já estava frio, mas apetitoso!

As festas de rua, o carrossel para as crianças esquiparem em cavalinhos de madeira ou o trem fantasma a assustar toda gente com almas do outro mundo, são hoje lembranças, apenas, de um pretérito posto à distância no tempo. A de Nossa Senhora do Carmo e a da Mocidade, uma e outra reunindo a meninada que desabrochava para os convívios diferenciados com o outro sexo, antevendo uniões. Os personagens do velho burgo, o General da Cavalaria Submarina, coberto de medalhas e, como dizia, dono da rua do Imperador. Que beleza! O cabo Marcha-Lenta, gordo e forte, com um andar de quem está remando, patrulhando os meandros da animação, cuidando que os meninos não vissem o teatro de rebolado e jogassem na roleta. E a rapaziada não dispensava uma olhadela que fosse e nunca se deixou de arriscar no pano verde dos números. Preto vinte e sete!

Proibiram o uso do alçapão, daquele comum, com o poleirinho móvel e o de rede. Hoje os canários-da-terra e os sabiás andam soltos e cantam na hora dos amores, seduzindo as fêmeas. Melhor! Cada um com um trinar diferente, fascinando os amores nas frondosas árvores da Jaqueira. E os criadores, um deses Hugo de prenome, morador da rua do Sossego, de todos os sossegos, vivem a frustração da falta que faz a cantoria dos bichinhos. Contentam-se com a observação cuidadosa dos parques e dos restos da Mata Atlântica. Os pardais, predadores terríveis, andam pelos ninhos em busca dos ovinhos da reprodução, respeitando o bem-te-vi, que se defende e faz correr o inimigo constante. Quem desejar ter em casa uma gaiola, que compre um belga ou uma calopsita, submetendo-se ao canto alienígena dos exóticos pássaros.

Sumiram as vendas, curvaram-se aos supermercados e as cadernetas, nas quais eram anotadas as compras do dia-a-dia, são saudades de uma época. Uma das remanescentes, na Conselheiro Portela, virou restaurante. O dono guardou a documentação fotográfica do tradicional comércio e por lá ainda se pode apreciar, enquanto se degusta o carneiro gostoso, bem temperado, em noite aprazível de sábado ou de domingo. Resta uma em Parnamirim e outra na Harmonia, resistindo aos feitiços da modernidade. Quando passo naqueles recantos reverencio os estabelecimentos e vem à minha cabeça a venda de minha infância, a do Sr. João Gomes, paciente com os fregueses e tolerante com os inadimplentes. Tinha a banha e a manteiga em grandes latas e o feijão, o arroz e a farinha em sacos com a boca enrolada. Havia um gerente – o Sr. Erasmo -, tido e havido por todos como interessado no negócio, quase um sócio. Ao lado, a Farmácia Lobo, com todas as características da década de 50. O homem do bacalhau às costas, os banquinhos para os papos vespertinos dos vizinhos e o telefone dos começos do século. O fone separado do receptor de voz, o que muitas vezes inibia o interlocutor de ocasião. Não se podia pegar uma briga com o namorado ou a namorada, sob o risco da fofoca generalizada. Os táxis não existiam e a classe média se virava com os carros de aluguel, chamados por telefone com os preços acertados de antemão.

E por ai vai!

Crônica oferecida a Zé Biriba, que dividiu comigo esses espaços da adolescência

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