segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Uma Limusine Preta


É desse jeito, sempre! O ano termina por cá - aqui por casa mesmo -, com as filhas reunidas em verdadeiro resgate do tempo que se foi. Juntam-se e passam a fiar a conversa do ontem das coisas. Lembram de um dia a dia tão recente ainda, recordam das brincadeiras e das brigas, dos momentos em que se juntavam e assistiam aos filmes de terror escolhidos pela mais velha, Fabiana de prenome. Depois, já deitadas para dormir, o medo. Assustadas, ainda, com as cenas e as passagens dessas películas dos horrores. Fabiana, enquanto tomava banho, lembrava da cobra que no rodar de um desses filmes saltava do chuveiro e à entrada da irmã Patrícia quase se esgoela de tanto gritar. Pegaram uma briga, após o susto e o medo. Invocavam a cena e a arte do enredo, a ação do ofídio espreitando o dia por entre os buraquinhos pelos quais a água vai fluindo. Veja só o leitor!

Mas, surgiu uma história diferente, de cuja futrica nem lembrava. É que a mais velha, sendo também a mais forte, de hábito batia pesado nas irmãs, sobretudo em Carol, a mais nova da prole. Um dia, conforme contaram, pediram à assessora para assuntos domésticos que segurasse pela mão a braba do pedaço. E assim foi feito. Sustentada levou a maior pisa de toda sua vida e deixou de puxar encrenca com as irmãs. É pouco, disseram! Fabiana era meio estabanada, mesmo, por qualquer coisa fazia um sarceiro danado e em certa ocasião eu falava ao telefone e ela incomodava o meu diálogo, conversando muito perto de mim. Fiz um gesto com a mão, pedindo que parasse, com o braço todo estirado. A sombra lhe pareceu que se tratava de um morcego em revoada dentro de casa, e ai gritou a plenos pulmões, atrapalhando, ainda mais, o contato com o interlocutor de ocasião. Era assim, uma pândega!
E no jantar de despedida contaram coisas boas, os ganhos de cada uma e os predicados das três. De Carol, a mãe, coruja como sempre, disse da independência e falou da necessidade que sempre teve de privacidade. Brincava com as bonecas de pano que se comprava em Olinda e as tinha guardadas e à mão, para quando quisesse, novamente, brincar. Hoje tem o seu quarto de tal forma arrumado, que faz gosto e dá escrúpulo em mexer, tal o cuidado e tal a distribuição de seus pertences. Fabiana é atirada e já morou na França, constituiu família na Espanha e vai chegando com o filho Pablo. Patrícia arribou para o Ceará, acaba de passar em concurso e vai trabalhar no serviço público.
Mas, o tempo passa num sopro do nada. No ontem dos anos eu era um menino, cresci e virei gente, trabalhei o quanto pude e me aposentei, arranjei outra ocupação, o Conselho Estadual de Cultura , e vou andando pelo mundo de cabelos brancos como a prata, de corpo vergando e de passos um pouco – só um pouco - mais lentos. É assim mesmo! Dia desses até, conversando com minha mãe, num quase monólogo, ouvi dela o seguinte: “O meu pai morreu! A minha mãe morreu! E eu fiquei velha!”. É verdade, vai completar 90 anos e na cama, em casa mesmo, cumpre a finitude de seus dias, padecendo e sofrendo neste vale de lágrimas. Deus a dê um destino acertado!


Em loja de atacados, com a mulher e a filha, o genro também, fizemos compras para o neto que vai chegando, Pablo de prenome. Um quadrado, dizia-se outrora, um cercado se diz hoje, como se criança fosse gado ou se gado fosse criança. E mais uma banheira, um colchonete na medida e outros apetrechos que possam estar disponíveis à chegada de Pablo, espanhol e brasileiro, brasileiro e espanhol. Ele mesmo posto ao lado com o avô da banda de lá do oceano enorme. "Abuelo" se diz! E eu, envolvido nesse rolo do peru, quase não encontro mais tempo para nada, para os meus estudos e, sobretudo para as minhas escritas. Procuro repetir um pouco as coisas de Aldeia, mas a sabiá daqui, do Rosarinho, sequer vem bicar o naco de mamão que deixo na varanda.

Chamei a mulher de parte, diante da afirmativa dela, a de que repetíamos o que fizemos faz muitos anos pra trás, quando as filhas chegaram, uma após outra. É diferente, expressei, naquele tempo fazíamos com uma dificuldade financeira enorme e hoje, com os dois salários juntos e menos a contabilizar nos gastos, é de mais facilidade o custo das coisas. Ela concordou! E vamos receber a família que vai chegando de Espanha com pompa e circunstância. O tapete vermelho de nossas emoções há de ser estendido para a recepção.
De nada serve lembrar o tempo que passou, senão pela satisfação do que se viveu e não se vive mais. Menos pelas recordações das coisas ruins, das angústias e dos medos, da inquietude dos dias e das horas. Mas sim, dos presentes que meu pai deixava na cama da infância, da ansiedade pelo Papai Noel de aspecto nórdico, um São Nicolau das paragens gélidas, sentado em confortável cadeira na Viana Leal, enganando as crianças de classe média e engabelando os pobres de Jó. Nunca esqueci a espingarda que recebi um dia ou uma noite, cuja munição era de cortiça e o tiro um espocar seco. “Mãos ao alto, era o que dizia! Renda-se, era o que repetia!”. E o carrinho preto, uma limusine, de brancos vermelhos? Uma beleza!
(*) - Uma crônica que reúne o ontem dos anos com anteontem dos dias. Uma lembrança que as minhas filhas já têm e as recordações que sempre tive. Feliz ano novo. Pablo chega a 17 do mês. Viva! Comente aqui mesmo ou para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com   

Um comentário:

  1. Crônica de destaque. É sempre maravilhoso recordar bons tempos, viver o presente abençoado e esperar o futuro com alegria.
    Eliana

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