quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Um Recife Iluminado e Belo

A década de quarenta estava findando e os anos 50 começando, eu era menino, bem menino, andava de calças curtas e ainda vestia roupa de marinheiro. O meu pai nunca descuidava do passeio aos domingos à tarde, de casa até a rua da Aurora. Ali, à beira do rio, parávamos em pequeno cais, que servia aos remadores e aos pescadores, e eu soltava o meu barquinho de papel feito com arte e destreza. A minúscula embarcação ganhava as águas e no meu imaginário talvez fosse aportar distante, bem distante, em terras da África ou se largasse de sua fictícia rota e margeando o litoral do Brasil chegasse à Bahia, que é de todos os santos, ou ao Rio de todas as belezas e de minhas fantasias pueris. Daqueles dias nunca esqueci! São gestos paternos de um amor tão grande que a memória, vez ou outra, resgata.

Depois, num Natal qualquer, o meu pai trouxe uma lancha de metal, de flandre certamente, que funcionava à base do álcool. Não lembro bem se o combustível era adicionado em algodão embebido ou se diretamente no barco. O que sei e recordo com saudade são as voltas que a pequenina embarcação, de 13 ou de 15 cm, dava na banheira de casa, cheia d’água. Um dia, eu quis trazer a lanchinha para a largueza do rio Capibaribe, mas o meu pai ponderou que iria perder o brinquedo, que a hélice, tão potente à minha vista de criança, levaria o barquinho pequenino embora, até os limites do imenso caudal. Aceitei, porque pai é pai e sabe das coisas, mas não me conformava com a restrição da banheira. Um dia choveu e choveu muito, o terreiro de casa encheu e eu pude ver a lancha dos meus sonhos rodopiar no efêmero das águas pluviais.

Fui lembrando dessas oportunidades de minha ligação com as águas que foram das capivaras, enquanto passeava no catamarã, vendo o Recife numa posição diferente, olhando para as ruas e as pontes de dentro do rio, em plena semana do Natal. Um roteiro, francamente, muito bem estabelecido pelos organizadores, no qual o circuito dos poetas faz o expectador, turista ou munícipe, acompanhar a produção pernambucana em verso ao longo dos anos e dos tempos. O velho Ascenso, a quem conheci no alpendre de casa, sentado no Cais da Alfândega sobre uma pilha de livros, parece soltar o vozeirão e recitar o que tanto ouvi na minha infância, na radiola de casa: “Lá vem o vaqueiro pelos atalhos, tangendo as rezes para os currais. Blem...blem...blem...cantam os chocalhos dos tristes bodes patriarcais. E os guizos finos das ovelhinhas ternas dlim...dlim...dlim.... E o sino da igreja velha bão...bão...bão...”

E assim o barco movido a potente motor vai mostrando o Recife, as pontes e as ruas, a iluminação sobretudo, linda como está em 2007. A rua da Aurora, a mesma que eu freqüentei aos 5 ou 6 anos de idade, muito bonita, quando vista assim, do rio, principalmente no trecho do antigo prédio da Prefeitura e do velho buque da Polícia Civil, como chamava Paulo Malta. Um contraste de cores dá uma vida diferente ao casario que se reflete nas águas. E a lua cheia presidia o espetáculo, alumiando o rio que corre e a cidade que fica, os poetas que cantaram e ainda cantam as belezas da correnteza e das ruas, dos becos especialmente, mas das pontes também: Joaquim Cardoso e Capiba, Manoel Bandeira e João Cabral. Sem esquecer o grande caranguejo que se mostra diante do Ginásio, homenageando Josué e Chico Science.

A presença da família inteira naquele barco marcava um reencontro auspicioso: toda a constelação parental, novamente, junta. Mesmo que por poucos dias, para as festas de fim de ano. Uma veio das distâncias agora mais do que gélidas de Espanha e a outra do calor tropical, esturricante quase, de Fortaleza. Juntaram-se aqui à terceira, neste recanto tupiniquim. Juntaram-se e não mataram a saudade ainda dos tempos de menina, dos dias em Santo Amaro das Salinas e das férias em Pau Amarelo, de tantas inspirações e de tantos amores. O resultado é que se encontram no café da manhã e vão fiando conversa até que o almoço seja servido, não fazem a sesta e jantam no mesmo diapasão: fiando conversa. E assim ganham a noite. Nunca vi tanta coisa para conversar e lembrar. A de Espanha foi para a cozinha e preparou a ceia de Natal, a daqui, a do Recife de Nassau, lavou toda a louça da noite e a segunda tomou conta do trabalho das outras.Viva!

Eis ai um Recife iluminado e belo.

(*) - Crônica escrita depois de um passeio de catamarã pelas águas do rio Capibaribe - o rio das capivaras -, com a família inteira.
Boas Festas e Feliz Ano Novo.
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sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Natal - 2007

Eis que o Natal chegou outra vez. A grande roda do tempo, que todos os anos parte de um ponto estabelecido pelo homem, voltou e vai reiniciar-se. Na manjedoura simples um menino nasce e renasce a cada ciclo dos doze meses contados nos dedos, de janeiro a dezembro. É um simbolismo do qual depende a criatura. As datas são necessárias e o tempo que volta traz dias de aproximação. Gente que se cumprimenta nos encontros fortuitos, nos elevadores dos prédios e nos corredores da vida: “Feliz Natal!”. Exprimem um desejo que emerge nos corações escolhidos, porque muitos são os chamados, mas poucos se habilitam a esse exercício, antes de tudo humano, da convivência. Ou muitos não podem e não têm como participar da grande noite das festas. Estão excluídos dos convívios, marginais da harmoniosa coexistência.

Em casa já está pronta a sala de jantar. É sempre em torno de uma mesa que as festividades acontecem, repetindo o Cristo, que tantas vezes ceou com os seus apóstolos. Os cálices de vinho chegados da Espanha foram expostos e o negro das taças parece contrastar com o branco do móvel ou com o vermelho da toalha. Um vermelho estampado com motivos natalinos mesmo, com sinos dourados e com folhas verdes unidas por fitas encarnadas. Um bacalhau e um peru hão de fazer as vezes na refeição da meia-noite, sem falar no presunto ibérico, que veio das distâncias agora gélidas da antiga Castela ou nos acepipes doces com a mesma origem. Antecipando o Natal, um coral infantil cantou em frente ao prédio, numa pequena pracinha, um refúgio como se diz, entoando cantatas próprias para os dias. E a sintonia fina da emissora de rádio faz um teste para um instante diferente de todos os outros.

Nos quartos as colchas novas, com alegres motivos, representam o júbilo da família com a chegada das duas filhas que moram distantes. Está reunida, outra vez, a constelação parental e a satisfação preenche os claros d’alma. É o prazer de encontros e de reencontros que durante os dias comuns não se materializam. O corre-corre de um cotidiano buliçoso impede isso, o ver e o rever das filhas. Há um passeio programado pelas águas do rio das capivaras – o Capibaribe –, para entender a expressão de Mauro Mota em Domingo no Recife: “(...) o rio ninando o Recife (...)”. Ou para compreender João Cabral em Cão sem Plumas: “(...) Na paisagem do rio/difícil é saber/onde começa o rio;/onde a lama/começa no rio;/onde a terra/começa da lama;/onde o homem,/onde a pele/começa da lama;/onde começa o homem/naquele homem(...)”. E há de ter mais um momento de regozijo, o de voltar às ruas da cidade, como sucedia quando eram pequeninas, para apreciar, então, a iluminação do velho burgo.

Momento, todavia, que não acontecerá em inúmeros lares do Brasil. Há quem nunca tenha podido se servir de um peru, como aquela senhora muito jovem, de 19 anos, moradora de um barraco sob o viaduto da rua Imperial. Mulher de marido desempregado, sem eira nem beira. A sua carta pendia na agência dos Correios do Rosarinho, rogando ao Papai Noel que lhe contemplasse com um exemplar da ave natalina e mais, uma roupa que cobrisse o seu filho. Queixava-se da fome de todos os dias e dizia que se aproximava um tempo diferente, o do nascimento do Deus-Menino, razão suficiente para não deixar de se alimentar como desejava. Teve a sua carta atendida, como sucedeu com outras, inclusive com aquela em que para 8 crianças de casa pedia-se uma bicicleta e um panetone. A questão só foi resolvida em parte e numa parte muito pequena de um todo de sofrimento e de privação.

Deus permita que as crianças de hoje possam crescer em paz, possam desfrutar de um futuro mais ameno e menos violento, preenchido com o básico das exigências humanas. A educação que enobrece, a saúde que dá a higidez do corpo e a serenidade da alma, a segurança que permite o ir e vir e a moradia, de cujo conforto – mínimo que seja – possa resultar a construção da cidadania salutar e do convívio pacato.
Feliz Natal - 2007
(*) Um texto escrito numa manhã feliz de sábado - um sábado de Natal -, para assinalar a alegria de estar com todas as filhas e com todos de casa nessa comemoração das festas.
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quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A Preguiça e o Tamanduá

Que amanhecer lindo esse de hoje, aqui por Aldeia, nos domínios do Bosque das Águas. Impossível não abrir o computador no alpendre e aproveitar a inspiração, para não ver fenecer essa manifestação da natureza em flor. Antes mesmo que o tempo mudasse, que a chuva chegasse ou que os céus se transformassem e assim nublassem, o bonequinho que veio de Santa Felicidade, em Curitiba, deu o necessário sinal e saiu de sua casinha, para anunciar que as nuvens estavam se desfazendo em água e o solo árido dos dias que se foram ia merecer o húmus de que se ressente. É a chuva do caju, diria minha mãe, se aqui estivesse. São as precipitações que a cada final de ano ou começo de um novo período emergem em meio ao calorão dos dias, para molhar o chão e deixar uma nesga, que seja, de esperança. Faltaram os trovões, que anunciam o esfriar das horas! E os relâmpagos?

Esse momento tão aconchegante e gostoso é um estímulo à aproximação dos amores, aos bichos e à gente toda que Deus fez e conduz. Já a sabiá-gongá está cantando diferente, ensaiando um trinar das paixões, embora os filhotes ainda estejam reclamando a comida minuto a minuto. Não param, praticamente, num chilrear constante, como se os estômagos nunca estivessem saciados. À distância estou ouvindo o cantar melodioso do rouxinol, marcado pela repetição dos compassos e aqui, bem perto de mim, numa banda de mamão que expus, um frei vicente faz a festa e um outro pássaro, verde-lindo de cognome, não consegue se aproximar com medo do joão moleque e de sua fêmea, a maria mulata. A chuva trouxe tudo isso, quase uma expressão da veneração benfazeja à grandeza da divindade, que a tudo fez e a tudo faz.

O sol já despontou no horizonte e se encontrou com a chuva. Não! Não é o casamento da raposa. Tampouco o bonequinho do Paraná recolheu-se em sua casa. Chegaram – isso sim – os sagüis, muito assustados, como cabe ser aos primatas, espreitam na mangueira o mamão dos pássaros Talvez, na casa de meu primo, Vadeco por apelido, a preguiça de seu entorno tenha aparecido e visto Nena, que dela tem medo, mas não nega a água que mate a secura do desdentado arborícola. Por cá, o pessoal teme o gambá, que é o mesmo timbu que o Zezinho mata às custas de muita aguardente no juízo. O bichinho vem beber na terrina de barro e se embriaga, tomba feito o bêbado da esquina. Alfredo, o da Ceasa, noite alta e céu risonho deslumbrou-se com a figura de um tamanduá fuçando o seu terreno. Parou o carro e ficou imóvel, perplexo, observando o ato e o fato. O feito, também!

É assim por aqui, nos arredores do Recife. Daqui, no quilometro 16, até Chã de Cruz, a mata atlântica faz companhia ao carro. E o meu genro espanhol – Gonzalo Herraz – não escondeu a sua admiração, quando viu as grandes árvores margeando a estrada, a mata fechada, a floresta de vegetação alta e densa, verbalizando, então: “Nunca vi isso!” E é verdade, essas coisas só existem no Brasil, exuberantes como são, mesmo sob as ameaças todas e as mãos de marginais que agridem a flora e matam a fauna, destruindo tanta beleza que a natureza legou à gente desta terra sempre farta. E eu que venho tentando, todos os anos, cultivar o milho e o feijão de meus agrados, francamente, não tenho coragem de derrubar as fruteiras de que disponho, para me livrar das sombras e permitir crescer a lavoura. Fico lá com o coentro e a cebolinha de Nena, recebo as sementes do pimentão e agradeço a lembrança do tomate, mas aqui por casa não derrubo as árvores.

Na sexta-feira, almoçando em casa de um certo parente, vi uma patativa golada cantando a toada que os machos entoam lembrando a fêmea que não tem, roendo de saudades dessa companheira de que foi privado. A gaiola me lembrou de meu pintassilgo de infância, que cantava de dia e de noite, fizesse sol ou chuva, nos momentos de tristeza ou nas horas de alegria. E o amigo de meu pai, encantado que ficou com o pássaro, levou o gaiolim na mão e eu fiquei olhando, o quanto pude, o desaparecer distante da ave que me tinha chegado de Caruaru, pelas mãos de Marina, uma babá dos meus anos de calças curtas.

Que dia gostoso! Uma manhã ventilada, um céu nublado e a companhia dos bichos e das árvores. E na casinha de Santa Felicidade, o bonequinho recolheu-se: voltou o calor.

(*) Crônica escrita no começo do mês de dezembro de 2007, em Aldeia, numa manhã nublada de domingo, antes que o sol chegasse e o tempo esquentasse. A inspiração dos pássaros e a paz do lugar me fizeram parir do imaginário essas palavras e essas frases. Uma antecipação, talvez, do Natal que se aproxima, nessa felicidade que experimentei e experimento. Harmonia e concórdia, desejo a todos.
(**) Acrescentei ao Blog um contador de visitantes - no final das crônicas à esquerda -, mas não estou muito certo de que o programa está registrando corretamente. Mais de 20 visitas ao dia? Esmola grande o cego desconfia! Por isso, para confirmar esse movimento, gostaria de uma mensagem de cada um para pereira@elogica.com.br Coisa mínima que seja, como Ok ou Visitei. Grato sempre.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Carreta Truncada

Bebia tudo o que lhe vinha às mãos, bastava que fosse álcool e lhe curasse dos tremores matinais. Recebia o salário e na primeira bodega entregava-se à aguardente que inebria e embriaga. Zezinho ou Zé de Tonha, como o trato aqui, preservando-lhe o apelido, terminava deitado no chão imundo, seboso com as pisadas e molhado das águas insalubres do esgotamento da pia, ressonando e quase nunca sonhando. Roubavam-lhe as roupas, deixando-o na intimidade da cueca surrada e manchada do piso sem jeito; sem jeito e sem limpeza. Quando acordava se arrumava ninguém sabe como e partia pra casa, ia ver a filharada e a mulher magrela, desnutrida e desdentada. Zé de Tonha a rejeitava quando sóbrio, mas caia de amores se ébrio e trôpego. E foi dele que Edvaldo, motorista do carro oficial, me contou o que reproduzo aqui, fiel à história e sem carregar nas tintas.

Belo dia o nosso personagem decide-se pela abstenção e nisso a assistente social teve papel fundamental. Recebeu os parcos trocados no banco em frente e foi com a profissional abastecer a casa. Comprou de um tudo, verduras e frutas, feijão e arroz, carne fatiada em bifes e outras formas de apresentar o produto bovino. Ainda deu para encher-se de camisas e de calças, tudo novo em folha, arrumado direitinho na geladeira ou no guarda-roupa de casa. Assim, dera um bom destino ao 13° salário. Reapareceu para trabalhar, contando a grande novidade. Estava apartado da magrela, desnutrida e desdentada, morrendo de amores por Zuleide, verbalizando para a moçada: “Só vocês vendo! Uma carreta truncada!”. Que vissem a novata, sentenciou para todos, amigos de fiar conversa nos intervalos do batente. Ligou pelo "orelhão" chamando a neófita de seus afagos e de seus afetos e a turma aguardou.

Durou uma hora, pouco mais ou pouco menos, pra chegar a mulher, mas num momento qualquer o nosso protagonista verbalizou, em alto e bom som: “Lá vem a carreta truncada! Nunca tive uma mulher dessa!”. Zezinho estava entre orgulhoso e ciumento com a sua mais recente conquista. A criatura se achegou, entrando nos diálogos, falando pelos cotovelos e explicando seus dotes de dona de casa, do fogão ao tanque, da arrumação à arte de passar, sem tocar nos predicados demonstrados no leito nupcial, já decantados em prosa e verso nas exposições malucas do Zé abstêmio. Deu o braço e retornou, tomou o caminho de casa. De longe, quem olhasse imaginava um mosquito arrastado pela carreta enorme, truncada, rodando com 12 pneus, se pouco. Desfilava rua a fora, até o ponto de ônibus e depois sumiu no horizonte das paixões inusitadas.

Uma quinzena se passou com o homem de férias, descansando das agruras todas, porém o grupo, em apoio ao colega, resolveu visitá-lo e tomaram o sentido de Casa Amarela. Não havia mais nada no refrigerador, encantaram-se os alimentos adquiridos para um mês e as roupas bem guardadas se foram, também, na onda do bota fora. “Zezinho, o que houve por aqui?” Foi o que indagaram! E ele, quase tomado por uma gagueira de ocasião, a princípio justificou a destinação: a panela doméstica. Com a insistência do pessoal, abriu a boca: “Foi a carreta! Nada tinha em casa dela e levou a comida para fazer almoço! Eu autorizei!” Não se teve dúvidas, era preciso chamar a mulher, convocá-la a uma explicação mais lógica das coisas. E ela chegou logo, muito rápido, vestida com trajes modestos, mas com um decote profundo e com a cintura apertada de quem já foi bonita e bem feita na vida. Não era feia e também não era bonita, nem gorda e nem magra, mulher quartuda, protundente, qual as antigas madonas dos anos 60.

Ouviu a explanação toda, da assistente social e dos amigos, fez uns salamaleques pra lá e pra cá, ajeitou o cabelo como pôde e se viu no espelho, tomando, então, a palavra naquela reunião diferente: “É! Levei! Precisei da comida, nada tinha pra encher o bucho vazio! Mas, não vou deixar este pobre sem o almoço e sem a janta, vou trazer aqui!” Aprovou-se a seguir a exigência de assistir à refeição do penitente em causa e lá se foi outra vez a carreta, retornando com o prato pronto e quente. Mas, Zezinho voltou a beber, a receber o salário e a gastar na barraca da esquina, a carreta tomou seu rumo e dela ninguém sabe, ninguém viu.

Uma história, apenas, pra relevar o cotidiano difícil.

(*) Eis um relato diferente, cheio de conflitos e de tramóias, de um homem solitário que viveu e vive dependente da aguardente. Verídico, mudam os prenomes, apenas, em respeito aos personagens.

Ofereço a história a Barbosa, funcionário do NUSP/UFPE: o meu lugar. Barbosa encantou-se, mudou-se para a outra dimensão da vida e agora vela por todos com os quais conviveu. Ia ler esse Blog de hoje. Gostava de fiar conversa, de ouvir histórias e de cantarolar românticas músicas de seus outroras na serra de Ororubá.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Amores na Praça

Em noites assim de um domingo qualquer, em recantos bucólicos nas praças e nas ruas do Recife, os amantes ainda trocam beijos e promovem o intercâmbio dos afetos. Nada mais salutar! Pras bandas do Derby, nos domínios da Brigada, o baixinho acariciava a mulher grande e mestiça, amorenada da tez e arabizada de corpo. Mais pra frente, no Parque Amorim das tradições dos papa-figos, o homem negro, de bigode bem aparado, roubava da branca mulher o ósculo das despedidas, num abraço forte de quebrar as costelas. E, finalmente, defronte ao velho Pronto Socorro, o jovem derramava-se em carinhos pela amada amadurecida nos anos. Cumpria-se assim, num ritual dos afagos a terminalidade do domingo, a finitude do dia santificado, dantes dedicado à guarda.

Outrora, também, nas alamedas escuras do parque 13 de Maio na boquinha da noite os meninos se encontravam com as namoradas, alunas tantas vezes da Escola Normal ou estudantes outras vezes do Colégio Pinto Junior. Passeava-se de mãos dadas, enlaçadas, pra lá e pra cá, andando com os pés e as fantasias nos caminhos de pedra. Depois, era a hora de sentar para fiar conversa, para saber das aulas e dos recreios, dos receios, sobretudo, das indagações proibitivas dos antanhos. Juras de amor preencheram os ares do parque por anos seguidos, carregando de esperanças o imaginário de muita gente, das meninas especialmente, mas dos meninos também. Muitos amores morreram ali, na fonte das águas coloridas! Deixaram plantadas por lá, todavia, as árvores de todas as saudades, a brotarem no pistilo das flores e no mês de maio, o das noivas, as sementes das lembranças.

Em dezembro instalava-se no parque a Festa da Mocidade, encantando a todos, crianças e adolescentes, meninos e meninas, adultos barbados e babados com a beleza das mulheres de fora, vedetes do teatro de rebolado. Às sete da noite, todos os dias, com lua ou sem lua, a moçada ultrapassava os umbrais da fantasia e assumia essa vida diferente, de lazer o tempo todo. Os jogos de azar não, estavam reservados à maturidade, mas, vez ou outra, quando se distraia o soldado de plantão ali quase permanente – o Marcha-Lenta –, o pessoal arriscava um trocado. Perdia, sempre! Às nove, infalivelmente, chegavam as vedetes e o desfilar daquela mulherada exótica em direção ao teatro era um ritual dos mais acompanhados, uma liturgia da sensualidade. Em casa recomendava o pai os cuidados habituais. Tudo, menos freqüentar a peça teatral! Tinha escrito no JC horrores contra as manifestações assim, da carne. A consciência doía, mas se assistia ao espetáculo todas as noites! A proibição do juiz de menores era debalde, pois que seu preposto, investigador do juizado, era um moleirão e a enrolada comia no centro. Uma entradinha rápida, coisa de cinco minutinhos, nada mais e a noite estava feita.

Vale a pena rever tudo isso. Tudo é válido quando o coração comanda o espetáculo!

(*) - Um artigo contando o que se passa nos parques do Recife, quando o domingo vai fenecendo e a noite encobrindo o tempo. Os amores florescem nos cantos ou nos recantos.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Um Domingo no Recife

Os antigos domingos do Recife eram bem diferentes desses de hoje! Dia de se juntar a família e de se fiar conversa com a parentada toda, atualizando a temática do inteiramente mundano. Tempo de parar e rever na paróquia do bairro ou na matriz do centro os pecados da semana, um a um contados ao cura, da forma a mais cochichada possível, contanto que não se pudesse ouvir da fila as faltas e as falhas. A penitência, determinada pela gravidade dos pensamentos, das palavras e das obras, era cumprida à risca! Três padre-nossos e três ave-marias. Intervalo mais que sabático para se fazer a demorada leitura dos jornais, com especial atenção ao caderno literário e aos fatos do esporte. O Santa Cruz jogando com: “Jorge de Castro, Aldemar e Edinho”. Momento reservado ao almoço diferenciado, da galinha de cabidela ainda não vulgarizada, selecionada no terreiro de casa dentre aquelas fora da postura e do choco, servida à mesa com sangria de bom vinho.

Quando o dia amanhecia ouvia-se de todo lado o repicar seguido dos sinos da cidade, um aqui e outro ali, alhures também, chamando os fiéis, que às vezes eram mais do que infiéis, para as missas. De casa, um périplo saia às ruas! Os meninos e as meninas à frente para serem vistos pelos pais mais atrás e finalmente, naquele séqüito que antecedia a liturgia e o rito, a avó e as tias, lentamente, como andam, ainda hoje, os velhos bem velhos. Na igreja era preciso ocupar mais de um banco para caber tanta gente! Os filhos, todavia, ficavam sob o rigoroso cuidado do pai e da mãe, metade para cada um, com o objetivo de aprenderem adequadamente o comportamento durante o ato da canônica liturgia. Nas passagens de maior significado a constelação familiar se ajoelhava, menos a avó e a tia velha, dispensadas pelo monsenhor, Camareiro Papal como era, do sacrifício dessa posição respeitosa. E cada qual portava um livro de orações, mais ou menos volumoso, a depender da idade. Todos, porém, traziam o terço, mas poucos os que se ocupavam com os mistérios: uns gozosos e outros dolorosos. Eu não gostava da forma como se classificavam os mistérios – os gozosos especialmente – achava sujo chamar assim. Não sabia as razoes da sujeira, entretanto!

O resto da manhã de domingo era preenchido quase sempre por um filme, no São Luiz ou no Moderno, a cuja sessão, mesmo que matinal, obrigava-se o paletó e a gravata. E não era muito raro pedir a um amigo emprestada uma peça assim de roupa, para compor a indumentária ou jogar do primeiro andar do cinema o paletó surrado para integrar outra vestimenta, enganando o porteiro. Dramas de amor encheram as telas e molharam a face de muita gente, deixando gravadas as letras chorosas das perdas irreparáveis: “Por que não paras relógio/Não me faças padecer...”. É possível que alguns introjetassem essas rupturas, antecipando os danos do amor que a vida muitas vezes reserva! Nas poltronas da platéia, invariavelmente, os casais enamorados trocavam juras e faziam promessas nunca vãs, roubavam os primeiros ósculos e ensaiavam os afetos dos inícios, de cujos começos emergiram amores perpetuados ainda.

Quando a tarde amornava o dia, expondo as árvores em grandes sombras, instalava-se a pelada ou o rasga, como se chamava esse tempo da bola. Juntavam-se os meninos todos da redondeza e um deles, o dono da bola, de borracha ou de couro, era invariavelmente escalado. Uns jogavam muito bem e outros muito mal. De todos, ninguém deu pra gente, isto é nenhum seguiu a carreira do futebol e na escalada da vida tiveram que trabalhar duro, amealhando centavos. Quem atrasado chegasse virava juiz e com o apito expunha à galhofa a mãe e a outros ancestrais assemelhados. A rua, inicialmente de terra batida, recebeu a modernidade que o asfalto trás e muito samboque de dedo foi arrancado nos chutes a gol, os quais se bem sucedidos valiam as feridas e as dores. Isso tudo a vizinhança renegava, porque a bola varava os ares e ia cair nos quintais alheios, provocando a ira da gente local e as lições de moral se sucediam, das casas que ficavam às margens do improvisado campo, sem grama e sem barra que fosse!

À noite, o cinema do padre! Mas isso é outra história! E outros quinhentos cruzeiros.

Uma crônica escrita há muitos anos atrás, no tempo do cruzeiro e nos dias de inflação. Um texto que lembra um domingo em meados do século XX, com um ritual de dia santificado completamente diferente de agora e com uma liturgia obrigatoria, sempre, aos sofridos penitentes de então, inquietos com a possibilidade, mínima que fosse, do pecado. E do pecado contra a carne ou a favor da carne, porque nada pode ser mais fraca. Comente também para pereira@elogica.com.br



E os meus domingos de infância se foram, encantados pra trás na esteira dos anos. Quase todos se transferiram desse mundo de Deus e dos homens e terminaram na dimensão do eterno. Que pena! Comente também para pereira@elogica.com.br

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Mulheres já Vou!

O cinema pertencia ao Padre Sales ou ao Monsenhor Doutor Francisco Apolônio Jorge Sales, como gostava de ser tratado, Camareiro Papal por derradeiro, título do qual muito se orgulhava. Era o Cine Soledade e cumpria a missão educativa de exibir películas de conteúdo sério, enredos suficientemente capazes de servirem à formação dos jovens e à reflexão dos adultos, como aquele da inauguração, quando apresentou o filme: O Coração. A história retratava a vida de um jornalista da imprensa diária e mostrava um de seus dias de grande cansaço, de exaustão quase, impedindo-lhe de escrever a crônica da manhã seguinte. O filho vendo o pai assim, exaurido, terminou sentando-se à máquina e exercitando a criação, deixando-lhe no dia seguinte perplexo e satisfeito com a ato e o fato. Impressionei-me com isso, confesso e sai meio perturbado com a minha incompetência para repetir o feito! Tendo recebido depois de meu pai a obra correspondente, escrita por Edmundo de Amicis, tomei aquilo como sugestão para a vida, a de contribuir também, de alguma forma, para a família e até a de substituí-lo na precisão da hora! Eu tinha dez anos apenas, vejo agora, relendo a dedicatória paterna e era incapaz mesmo para qualquer coisa! Mas, os tempos passaram e um belo dia pude realizar o desejo pueril, o de ajudar o jornalista no batente! Escrevi três de suas crônicas, mas não agradei, inteiramente: “Não escreva mais! O seu estilo é outro! Você diz umas coisas que eu não digo!”. E era isso mesmo! Não podia ser diferente! Mas, cumpri o desiderato filial!

O pároco da Soledade, porém, brindara a família toda com permanentes que davam acesso gratuito às sessões noturnas e às exibições vespertinas e eu fui inúmeras vezes à platéia assistir a um sem número de filmes. Vi de um tudo, dentro dos limites sempre das recomendações do cura. Outras fita, em tudo diferentes, à semelhança daquelas de Brigitte Bardot, como foi Europa de Noite, tinham que ser vistas no Trianon ou no Art Palácio, mas o resto o Cine Soledade exibia pra toda gente. Eu gostava de admirar as cenas da tela, sem desprezar as particularidades ou as peculiaridades da platéia! Certa vez, por exemplo, chegou uma figura interessante, um marmanjo barbado, e do andar de cima gritou: “Mulheres! Cheguei!”. Os espectadores deram uma gargalhada coletiva e o gerente não dispensou a falta, tomou o anarquista de ocasião pelo braço e foi de logo expulsando do recinto. O rapaz não perdeu tempo e novamente gritou: “Mulheres! Já vou!” Não precisa dizer da reação da platéia, a qual, outra vez, estourou em ruidosa e mais do que sonora gargalhada! Ali, no cinema do padre, muitos se iniciaram na pureza dos sentimentos, dos afetos e dos afagos ou nos amores quase platônicos em voga ao tempo, cochichando juras que não foram cumpridas ou fazendo promessas vãs, que restaram esquecidas aos ouvidos de agora. Havia à entrada uma boboniere, na qual se comprava o chiclete e se aliviava o hálito das declarações e dos amores. Perfumavam-se assim as palavras e as frases dos escuros e de outras cenas.

Quando a casa foi arrendada as coisas mudaram e a censura marcava a idade. A molecada, entretanto, não deixava de comparecer aos filmes impróprios até 18 anos, mesmo na situação atrapalhada à época, a da chamada menoridade!

E por ai vai! Ou por ai foi!

Uma das crônicas de meu livro anterior - A Medida das Saudades -, fruto de um passeio ao passado de quase 50 anos atrás. O padre que me batizara também me casara. E dessas duas cerimônias, vivos somente o catecúmeno e os nubentes. Todos ou quase todos feneceram à força dos anos. Comente a crônica também para pereira@elogica.com.br

Lembro o lançamento de meu livro - Fragmentos de meu Tempo - no próximo dia 22, quinta-feira, a partir das 20 horas, no Memorial da Medicina (antiga Faculdade de Medicina), na Esplanada do Derby, como chamava Delmiro Gouveia. Gostaria de contar com os leitores do Blog. Os que forem confirmem (pereira@elogica.com.br), pois que há um coquetel programado para o final do enredo.

domingo, 4 de novembro de 2007

Mordomia Extravagante

Um amigo meu, muito sério e muito puro, integrante, aliás, da confraria dos Veranistas Descalços de Pau Amarelo, se bem que meio distanciado do papo e da areia da praia, me contou uma suficientemente capaz de fazer o leitor cair para trás mais de trinta vezes. Disse que residia perto de um motel aqui mesmo no Recife e embora para as bandas do recanto do amor não olhasse, senão com os olhos do perdão, mas anotou fatos e casos dignos de registro. O mais extravagante eu conto agora.

De hábito, às segundas, quartas e sextas, no pátio dessa moderna casa, na qual se pratica o exercício do amor, estacionava uma ambulância e dela saía um casal, o motorista e a atendente, invariavelmente. Ora, sendo o veículo alto, grandalhão, não havia como se acomodar numa das garagens de prédio assim, cujos cômodos têm destinação tão específica. Ficava ao sol, expondo o letreiro vermelho, cor de sangue, a sirene com a luz encarnada e a placa oficial.

Com as medidas saneadoras do uso e do abuso de carros do governo, o ilustre amigo resolveu meter o bedelho na questão, isto é, interrogar o motorista sobre as incursões que fazia ali, em tempos como esses, de tantos rigores. Queria, também, detalhes a propósito da morena bonita, faceira, tipo dona boa dos anos 1950, assídua, de igual forma, naquele lugar. O barnabé municipal justificou-se como pôde, dizendo que fazia viagem longa e estafante, do Agreste até aqui, agüentando o frio de manhã cedo e o calor o resto do dia e quando chegava ao Recife, depois de se desobrigar dos doentes, desejava sombra e água fresca. Escolhera o motel por ser mais isolado, mais aprazível, lembrando um pouco, pelo menos por seus jardins, o recanto agrestino onde nascera e agora vivia. Admirava, também, a tecnologia avançada do videocassete e de outros aparelhos mais, os quais não chegaram, ainda, para os lados em que morava. No lugarejo em que sobrevive, explicou: “Não havia motel e muito menos filme com enredo erótico.”

Conversa vai e conversa vem , à sombra de um Ficus benjamim, na beira da calçada, confessou a sua paixão pela morena de belos contornos. Era casada e bem casada, além de ser carinhosa e bem apetrechada. Mas, em cabine de ambulância, viajando pra cima e pra baixo, léguas e mais léguas, não há quem resista a uma conversa bem fiada. Conhecia outros casos, envolvendo sempre motoristas do Agreste ou do Sertão. Nunca com a gente litorânea ou com o povo da Mata. Não que seus colegas do litoral, os matutos criados com cana-caiana sejam desprovidos da arte de fiar conversa ou que as mulheres sejam feias e pouco atraentes. A pouca distância, o trânsito engarrafado e o movimento exagerado atrapalham o papo, botam gosto ruim na conversa. Assim, tomou-se de amores pela morena e passou a bater ponto naquele motel. Chova ou faça sol, às segundas, quartas e sextas aparece por ali. Vai tomar um deforete da vida puxada que leva.

É isso aí, amigo leitor, se a moda pega, vamos ter camburões da polícia, carros de bombeiros e até veículos funerários fazendo ponto em motéis. Já pensaram num rabecão com o coveiro e a zeladora do cemitério, estacionado no pátio de casa assim, especializada em amor? Das duas uma: ou os motéis se adaptam, construindo grandes garagens, verdadeiros galpões, ou os administradores públicos tomam jeito. As mordomias federais estão se diluindo, ao bater do martelo, mas ficaram as periféricas: as estaduais e as municipais.

(*) Texto escrito há cerca de 15 anos atrás, quando o Governo Federal resolveu disciplinar e fiscalizar o uso dos carros oficiais. Comente também para pereira@elogica.com.br

(**) - Desde já convido a todos para o lançamento de meu livro - Fragmentos de Meu Tempo -, no dia 22 de novembro, a partir das 20 horas, no Memorial da Medicina. São artigos e crônicas publicados no Jornal do Commercio, do Recife, falando de minhas lembranças e de minhas saudades. Tratando de meu dia-a-dia, de um cotidiano feito em palavras agora. Ficarei satisfeito com a presença. Ao final será servido um coquetel simples.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Deixe a sua Mensagem

Quando contratei os serviços de uma secretária eletrônica, francamente, não pensei que fosse desgostar da minha própria mensagem, verbalizada assim, na rotina das ausências: “No momento, não podemos atender! Após o Bip, deixe a sua mensagem! Obrigado!”. Isso era rotineiro demais para mim, cujo imaginário vive nos ares do mundo e dessa forma terminei adotando uma sistemática diferente, a de fazer a troca da comunicação dessas impossibilidades a cada semana. Tenho cumprido o desiderato das dificuldades com os meus interlocutores de ocasião da melhor forma possível, modificando o teor das minhas palavras, na sexta-feira sempre, chova ou faça sol! É verdade que vez por outra aparece uma pessoa que reage ao inusitado da resposta, mas, no geral, a variedade vem agradando aos ouvintes, incomodados com a linha ocupada ou com a casa fechada. É necessário falar muito rapidamente, engolir vocábulos, tão pequena é a memória dessa virtualidade moderna, que Graham Bell não viu e não ouviu! E nem Dom Pedro II, um apaixonado pelo telefone, como era! A TELPE deveria, inclusive, premiar as melhores mensagens!

Numa dessas, quando da aproximação do Dia de Finados, dizia: “Na proximidade dos finados, lembrai-vos do desiderato bíblico: E ao pó voltarás!”. Uma moça, que imagino tenha ligado enganada, ao ouvir o que estava gravado, não teve dúvidas e disse em troca: “Babaca!”. Mudei, de pronto, o texto e o redigi antes de falar, pra não cair na tentação de outras coisas assim, ligadas às finitudes da existência humana. E gravei o seguinte: "Nas proximidades dos Finados, não esqueça dos velhos monges de Olinda, que nos silentes corredores dos antigos mosteiros, cumprimentavam-se assim: ‘Lembrai-vos da morte!’ Deixe a sua mensagem! Muito obrigado!". Foi um sucesso a reação, gargalhadas largas e risos contidos. Algumas palavras de reprovação e até de ironia, como aquela da interlocutora de ocasião, numa ligação errada, por certo: "É doido!". Devo fazer, agora, uma pesquisa sobre o padre que tem um pouco de ator, também: “Deixe a sua mensagem e a sua opinião sobre o Padre Marcelo Rossi! Obrigado!”.

Quando de uma certa viagem à França, fiz questão de prevenir à minúscula largueza dos meus convívios: “Informo que fui a Paris, visitar minha filha, Fabiana de prenome, que por lá cumpre estágio!” Alguns dos meus amigos, todavia, chamaram atenção para a possibilidade de estimular os ladrões do chamado entorno, com o aviso de um pai fora de casa, no meio do Velho Mundo, resgatando afetos e afagos junto ao rebento que do rebanho desgarrou-se, temporariamente, parece – só parece, entretanto! Na verdade, os gatunos daqui não gorjeiam como lá, pois que os conheço e já os dominei com a arte de fiar conversa e não creio, firmemente, na desforra. Sobre a globalização já deixei, igualmente, umas palavras: “Na perplexidade do tempo, a globalização brutaliza o homem! Deixe a sua mensagem! Obrigado!” Sobre a violência, também: “Na causalidade da violência está o desprezo da criatura pelo semelhante!” Aconteceu, certa vez, que uma ligação de pessoa muito piedosa foi atendida por mensagem, em tudo, religiosa, aquela verbalizada em Latim – Dominus Vobiscum – e a resposta ficou na memória: Amem.

Há gente que julga ter errado a ligação e estar, na verdade, falando com a residência episcopal ou quem considere o recado uma maluquice de quem não regula bem, mas a intenção é, apenas, a de promover uma certa variação e não ficar na rotina, naquilo que todos dizem, habitualmente. Guardei por aqui duas das respostas à indagação a respeito do padre Marcelo Rossi, já, ambas favoráveis ao novo ator global, cantor das multidões. Mas, vou juntar o que puder e pedir aos meus colegas dos cálculos estatísticos um resultado adequado e somente assim trarei ao leitor. Deixe a sua mensagem! Obrigado!


Texto escrito há coisa de dez anos atrás, quando usava a secretária eletrônica do telefone convencional e o equipamento portátil estava surgindo no mercado. As minhas filhas eram adolescentes e as mensagens faziam grande sucesso entre as colegas e amigas, a ponto de ligarem pedindo antes para que ninguém atendesse à chamada.

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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Ladrão de Galinhas

A tirar pela voz, aquele interlocutor de ocasião era novo, um jovem repórter interessado em colher dados a propósito dos impedimentos sociais de agora, diante da violência crescente e desenfreada. Em outras palavras: o que não se pode mais fazer em conseqüência do medo, do pavor que a sociedade enfrenta? Pedi um tempo e o endereço eletrônico, como cabe fazer na contemporaneidade, em vinte minutos, prometi, hei de responder. E respondi! Bastou uma reflexão curta sobre o ontem das coisas e o hoje do cotidiano, para encontrar as diferenças e nas vinte linhas das suas exigências: redigi o texto. Parece muito fácil a qualquer sessentão fazer isso! As lembranças de um Recife que se foi, embalado nas toadas de todas as saudades, facilitam declarações assim!

Ora, não se pode mais andar no centro urbano, fazer compras na Imperatriz ou passear – simplesmente passear – na velha rua Nova, voltar pela Guararapes e apreciar da ponte o rio passando lento, enchendo ou vazando. Não se pode mais sentar no Quem-me-Quer e admirar o desfile das moças, indo e vindo das compras ou esperando a sessão de cinema no São Luiz. De um lado, o da rua da Aurora, as meninas casadoiras, umas comprometidas já e outras não, livres e desimpedidas, e do outro as que da vida viviam, vendendo o corpo e os amores. Metade cá e metade lá, como o imaginário da rapaziada, fantasiando vontades que eram desejos nem sempre realizados. Um sorvete no Gemba ou um sanduíche na Confiança serviam para encerrar a tarde buliçosa. E haja sonhos!

Os rituais também se foram. Quem se atreve a percorrer a pé as sete igrejas das tradições da Semana Santa, partindo da Matriz da Soledade e chegando à de Santo Antônio, uma por uma, beijando o Senhor Morto. O jeito é fugir de casa, correr para o campo ou se esconder na praia, estirar-se na rede ou sentar-se na espreguiçadeira e ao sabor da cerveja gelada ou do vinho à temperatura ambiente, fazer a opção entre um livro, um clássico da música e uma conversa a ser fiada em alpendre ventilado. Até o Carnaval mudou, o corso acabou e as colombinas estão refugiadas nas grades de todos os medos, a lágrima do pierrô enxugou e não há mais arlequins saltitantes. Um ou outro bloco de rua se atreve em percorrer o centro, na sexta-feira gorda ou no sábado de Zé Pereira. Depois, recolhem-se!

No tempo do São João tornou-se impossível visitar os arrabaldes, passar nos largos e observar as quadrilhas matutas repetindo o dançar ritmado das cortes européias. Muito pior se o penitente saudosista, mesmo de carro, desejar conferir as fogueiras de Santo Amaro e os fogos coloridos que enfeitavam os céus da cidade vindos do Clube Português, onde muitos não podiam entrar, mas podiam ver, das calçadas do Parque Amorim, a beleza espraiada nos ares, dando cor à paz. As antigas carroças puxadas a cavalo, que traziam os noivos em noites assim, não circulam mais antecedendo o préstito e os pares estão desfeitos, separados para todo o sempre, pairam nas nuvens das recordações, como se fossem fantasmas de muitas lembranças. Sequer há retretas em palanquins de subúrbios!

As brincadeiras de meio de rua, o pega e o pega-soltou, o queimado e a academia estão proibidas às crianças. Empinar papagaio e jogar uma pelada são atividades tangidas do imaginário infantil, mais do que ocupado com a Internet e os desenhos da televisão. Ninguém sai de casa para apanhar manga, tirar oiti e recolher cajá ou a azeitona caída do pé! O velocípede circula na sala dos apartamentos e de bicicleta não se vai ao colégio, tampouco a passeio nos entornos da moradia onde estava, recatada e reclusa, a musa da adolescência. As alamedas do parque 13 de Maio vivem um silêncio que assusta os antigos amantes. Nem o senhor bem cuidado, de carro importado, da marca Skoda, com a mão esquerda estirada pra fora da janela, a tirar a aliança da denúncia, teria mais coragem de cortejar a jovem de longos cabelos, lisos e negros!

Sou do tempo do ladrão de galinhas e do batedor de carteiras! Tenho saudades do tudo, das cadeiras no portão e das casas escancaradas, dos retornos em grupo pelas ruas do Recife, de antigos saraus e dos aniversários domésticos, dos assustados e das festas de bairro. Sou assim!
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sábado, 20 de outubro de 2007

Invenção da Mãe do Cão



Quando eu era menino, adolescente ou rapaz, as comunicações eram um horror. Lembro que aí pelo final da década de 50, o meu pai precisou falar com uma irmã em Minas Gerais e tendo ligado para a companhia telefônica, aguardou mais de 8 horas para que se completasse a conexão. Pior do que isso era o contato com o então distante bairro de Boa Viagem, o qual só se dava com a interferência da funcionária. Parecia outro país, tal a lentidão das coisas e tal a dificuldade que se impunha. Os entendimentos pessoais, até aqueles na mesma cidade, eram realizados às custas de cartas que os correios entregavam com muito mais vagar que nos dias de hoje. E a vida ia sendo levada assim, com toda a folga do mundo, porque ninguém conhecia forma diferente.

Agora não, vive-se num extraordinário corre-corre, numa danação incrível, num vai-e-vem sem par em toda a história da humanidade. Não se espera mais por nada, sequer pelo elevador do prédio, que precisa descer do último andar para chegar ao térreo e carregar o penitente na cabine. Os contatos ficaram facílimos e estão se fazendo a custos mais e mais reduzidos. Inventaram o fax e o papel se transmite para o outro lado do planeta com uma facilidade que não se poderia imaginar. Desprezaram o telex e quase não se usa mais o velho telegrama, senão para os cumprimentos efusivos de aniversário ou de casamento ou ainda para os sentimentos, nem sempre sofridos, da perda parental. Nesse mexe-mexe ou nesse bole-bole em que se exercita o existir humano, não há brecha para nada. O mundo voa, verdadeiramente, nas asas do tempo.

O e-mail revolucionou a comunicação pessoal e até institucional. A informação passa por cabos e vai aos ares, viaja no éter, é impulsionada pelos satélites e chega ao destinatário sem mais delongas, num passe de mágica. Basta indagar ao telefone: “Chegou?”. E a resposta vem pronta: “Chegou!” Nem palavra se gasta mais. Não se fia mais conversa! É impossível parar numa roda qualquer, na esquina ou na farmácia, na venda ou na padaria, às vezes no parque, para um palavreado qualquer, como se fazia outrora. A novela das oito reúne a família em torno dos mexericos de ricos e famosos, transferindo à gente simples desejos da burguesia ou interesses da classe média. Uma roupa de marca ou um sapato tênis bem acabado, accessível aos personagens, mas distantes da fantasia dos excluídos. E haja violência. Até o ladrão de galinhas, que perturbava o sono no terreiro, desapareceu do cotidiano. A época é outra! Tudo mudou!

Foi a Internet que transformou tudo isso, que promoveu essa metamorfose toda, que criou a prontidão na informação. Nas páginas da grande rede pode-se ter acesso a livros inteiros, músicas e filmes. Exemplo disso está no portal do Ministério da Educação: www.dominiopúblico.gov.br. Ou prova disso está em outros destinos eletrônicos que divulgam as ciências, a cultura e as artes. Hoje em dia posso ler revistas científicas que antes sequer podia ver, tal a raridade e tal os preços de capa. Bibliotecas inteiras foram digitalizadas e assim disponibilizadas. Antigas revistas que circulavam a cada semana, como foi o caso de O Cruzeiro, sofreram a benfazeja graça do formato digital e é possível, novamente, ler as matérias de grandes jornalistas brasileiros. Millôr Fernandes, Péricles, Rachel de Queiroz, e David Nasser estão accessíveis em http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/.

O progresso mais recente, já popularizado, é o do contato telefônico pelo computador, a partir de programas distintos. Dessa forma, tenho falado, quase que diariamente, com minhas filhas. Uma em Madrid e outra em Fortaleza. No passado isso seria, simplesmente, inviável. O custo para a Espanha - pasme o leitor - é bem menor que aquele do Ceará: 0,021 e 0,054 dólares respectivamente. Coisas que não se pode entender. Mas, um extraordinário avanço nas comunicações, surpreendendo inclusive o número de pessoas que podem usar ao mesmo tempo o sistema: acima de 5 milhões no mundo sempre. Fosse vivo o meu pai, não perderia a ocasião e diria: “Invenção da mãe do cão!”. Só sendo mesmo!
Crônica publicada em 15 de outubro de 2007, na página Opinião do Jornal do Commercio do Recife
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sexta-feira, 12 de outubro de 2007

A Festa da Mocidade



Na década de sessenta - Já se vão quarenta anos! -, quando dezembro chegava e o fim de ano marcava o tempo, a grande atração do Recife era a Festa da Mocidade! Instalada no Parque 13 de Maio, tinha-se de tudo, dos habituais brinquedos das festas populares ao teatro rebolado! Ninguém das redondezas perdia uma noite sequer, comparecendo religiosamente ao lugar de todos os divertimentos! Lá por casa recebíamos um Permanente Familiar, destinado a jornalista de batente e com isso costumávamos levar parentes e aderentes, os amigos, sobretudo. Uma legião de rapazes e algumas moças tinham dessa forma acesso ao recinto e aquelas alamedas serviram para se fiar muita conversa, no exercitar dos planos da gente jovem desses outroras nunca perdidos ou acolheram sonhos e devaneios. Passeava-se mais e gastava-se de menos, porque o metal, que é vil, rareava à época. Muitos sentavam apenas nos bancos do parque ou na murada dos tanques, de cujas fontes jorravam jatos d’água de um colorido especial, encantando e inebriando os espíritos.

Andar no polvo ou no tira - prosa, francamente, era uma temeridade e os casais de namorados, enamorados também, aproveitavam a hora e cumpriam a prática mais do que benfazeja do beijo roubado, num momento qualquer de um giro maior ou de uma evolução mais forte ou mais firme. Os ares da festa enchiam-se de gritos, como ainda hoje sucede em lugares assim, desses divertimentos múltiplos, de gente que tinha medo realmente, mas de atores que gostavam das cenas, cuidavam do texto e faziam da arte um mister à parte. A roda gigante não trazia medo a ninguém e levava os passageiros às proximidades do céu, deixando às nuvens a imaginação da gente sentada nas cadeirinhas, de cujo balanço nasceram muitas das juras que não foram cumpridas. E os carros elétricos? Antecipadores, talvez, de certas invenções do hoje! Presos ao teto energizado por uma peça de aço, podiam correr acima e abaixo, dando ao condutor de ocasião a sensação mais do que plena de um chauffer daquela modernidade.

Sem muitas das cerimônias de agora, o jogo de azar campeava e a roleta girava desprovida dos pudores todos que contaminam a ilegalidade estabelecida. Menores estavam impedidos da prática, jogavam porém! Perdiam sempre, como costuma acontecer nos cassinos dos dias que correm! Nenhum dos pais imaginava que o dinheiro de seus ordenados, suados e sofridos, estavam sendo investidos dessa forma, na jogatina da festa. Aplicava-se o pouco da mesada e dos recursos obtidos para os gastos da noite com o guaraná e o sanduíche, um cachorro-quente que fosse, de carne moída e tomate nunca cozido. Um lanche a ser saboreado sem comentários em casa, porque proibido nas recomendações maternas, acauteladoras das infecções todas que agridem o homem, trazem a dor de barriga ao penitente menino e inquietam as mães, protetoras eternas dos filhos, mesmo com a cabeça pintando as cores dos anos!

O pastoril do Velho Faceta enchia as noites nas proximidades do Ano Novo e a meninada cuidava em pagar, uma ou outra pastora, das pernas grossas pelo geral, para uma apresentação especial. Cinco cruzeiros para a Diana dançar ou dez para ter a Mestra à mostra, sozinha no tablado, bailando para o deleite da moçada! E o Velho comandava o espetáculo, convidando as escolhidas pela platéia ou dando as ordens sem descuidar dos assistentes, estimulados todos ao pagamento de mais uma rodada, dessa ou daquela moiçola. Em se tratando de coisa ligada mais ao mundano e menos aos estilos do tempo, as apresentações começavam às doze horas batidas da noite e se prolongavam pela madrugada. Gente de família não podia freqüentar lugar assim, de segundas intenções, como se falava! Havia quem conhecesse as pastoras pelo prenome, tal a constância com que assistia às encenações e dessa maneira fazia a escolha da preferida, cujas características físicas preenchiam, por certo, as fantasias ou ocupavam o imaginário com formas femininas protundentes, em moda naqueles anos!

Pelas dez horas tocavam as sinetas do teatro e as vedetes entravam no palco, dançando e cantando, levando uma peça a mais para o êxtase de uma plêiade de admiradores cativos. Era proibida – rigorosamente proibida – a presença de menores na platéia ou nas laterais, das quais se podia assistir a tudo, de pé é claro, sem o conforto dos pagantes, assim diferenciados, pois que sentados viam e ouviam as mais belas mulheres que a cidade acolhia nas festas de fim de ano. O rigor da proibição fenecia diante da insistência da meninada e das insuficiências de um investigador de menores com gestos inseguros. Bastava uma palavra mais forte ou mais áspera para que o homem cedesse, não sem antes recomendar o uso de um lenço cobrindo a face, para não ser identificado pela polícia como integrante de um grupo etário na menoridade, ainda. Tem Bu-Bu-Bu no Bó-Bó-Bó marcou época na cidade e o ator Mário Marozzi, o primeiro a usar bolsos verticais nas calças, contracenava com lindas figurantes do sexo feminino. “E o boi/Pra onde é que ele foi/E o boi/Vocês só falam e ninguém quer trabalhar/E o boi/Pra onde é que ele foi/E o boi/...”, era o refrão adotado e decorado pela trupe e mais do que aceito pelos nativos!

Blog atualizado hoje, 12 de outubro, às 10:25 horas, em Fortaleza, na casa de minha filha Patrícia e de meu genro Cláudio. Fotografia: Gentileza Manoel, Roberta e Lívia (Família Ferreira)
Atualização oferecida a Vadeco, primo meu, o mais velho e o mais levado da breca, ainda hoje.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Saudades Gostosas

Confesso que muitas vezes me surpreendo assim, absorto, olhando o infinito das coisas ou vendo o nada do mundo, mas enxergando os meus interiores, em cujas intimidades estão os meus sentimentos, aqueles do hoje e todos os demais, os do ontem do tempo. Assim foi neste dia que se esvai agora! É como se uma saudade gostosa me tomasse por inteiro, mesmo vivendo as agruras do labor, de ofício no qual preciso estar com os humores em alta. Sento-me, então, na grande sala, onde devo conduzir os trabalhos e ouço do quarteto de violões acordes que me encantam, verdadeiramente. Esqueço por minutos, apenas, as obrigações do mister, as palavras a serem pronunciadas e as correlações necessárias. Quando fui levado à presidência ou quando fui elevado à honraria do lugar, não hesitei em falar da música e da romântica sonoridade. A harmonia dessas cordas estimulam os amores, afastam as dores e tangem os dissabores! Afogam as mágoas na placidez azul das águas! Disse, a título introdutório! Depois, fiz o discurso de ocasião, como cabia!

Saí dali e corri a outro auditório! Pareço viver dessa forma, cumprindo um périplo diferente, de assistência em assistência, sem que tenha muito jeito com a arrumação dos vocábulos e os retóricos arranjos de frases e de períodos. Reconheço, todavia, que vou aprendendo, mais e mais, na expressão de cada um, sobretudo na sinceridade das saudades gostosas, nunca sofridas. Sentidas, somente! E foi o que vi, depois! Uma turma de médicos a comtemplarem três décadas da formatura, ouve atenta a oração de um deles, o Dr. Edson Haten, dileto amigo. E as lembranças se sucedem, entre arroubos da oratória bem cuidada e o embargo da voz. Não resisto e falo, também, daqueles velhos corredores, dos cantos e dos recantos, de alamedas que cortavam e ainda cortam os jardins, circulando os lagos, nos quais, em bancos de pedra, muitos amores nasceram, mesmo que tenham fenecido, tantos! E se os amores fenecem, parindo as dores, por certo renascem assim, em dias nos quais afloram saudades gostosas! Antigos amantes trocam olhares ou trocam afetos, efêmeros ósculos, revigorando paixões! Nunca se tocam, todavia, em respeito ao altar dos pretéritos! Foi o que vi!

E se há quem duvide das saudades gostosas, das que chegam trazendo a paz do espírito e o enlevo d'alma, experimente distâncias e creia, firmemente, no resgate das proximidades perdidas. Os que viajam pra longe, no espaço ou no tempo, sabem disso! Os que tomam o enorme pássaro de aço e ganham os céus, aterrissando em terras do outro lado deste globo transformado em aldeia, afastam-se de tudo e de todos, vivem e revivem na fertilidade do imaginário cenas do antes e resgatam os atores de todos os dias. Mas, sabem que vencidas as horas hão de voltar! Outros se deixam levar pelos devaneios que rompem as barreiras do passado, retornam à juventude dos anos e a fantasia os faz viajar, também, nas asas dos sonhos, alguns oníricos e outros na vigília das madrugadas insones, sobretudo em sábados silentes ou em domingos dormentes, entorpecidos pelas recordações. Ninguém se iluda com o poder da criação, que faz do padecer desses outroras, momentos que são minutos, às vezes, de uma plenitude efêmera, quase, mas suficientemente capazes de reacenderem vivências e convivências!

Dessas saudades todas, gostosas, sempre, de uma não esqueço! Daquela de que me falou, certa vez, por telefone, na voz suave e carinhosa de uma pessoa simples, humilde, Zefinha por apelido, que me servia o café quando exerci cargo de direção: "Doutor! Ainda não inventaram uma fita métrica que possa medir a saudade que tenho do senhor!". Marejei os olhos e embacei a visão das coisas, senti o coração palpitar amores e afetos, aprendendo a lição maior, a de que o amor existe e persiste nas ausências e nas faltas! Mas, ao que parece, não há medidas para as saudades, desde que sejam gostosas, que tragam os enlevos, que permitam à paz invadir os domínios do coração, afastando ansiedades e afugentando angústias, embalando desejos e ninando vontades!

(*) Texto escrito nos anos 90, logo depois de ter assumido um cargo na administração da UFPE, quando estive muito envolvido com solenidades e com despedidas. Na ocasião falou o Dr. Edson Haten, meu dileto amigo, hoje encantado no infinito das coisas, a quem dedico a crônica e o espaço de hoje.
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sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Retalhos do Tempo

É sobretudo nostálgico este exercício de rever álbuns de família, nos quais as antigas fotografias, de pessoas isoladas ou de grupos reunidos, resgatam pretéritos muitas vezes tão remotos, que não é mais possível identificar os figurantes daquelas cenas gravadas no papel. Poses estudadas das famílias, em tardes mornas de sábados distantes. Tempos hão de chegar, todavia, para todos, como aqueles dos bisavós, nos quais os retratos quase não fazem mais sentido, pois que os circunstantes todos já se encantaram no infinito das coisas e não se tem mais enredo para as histórias. Ninguém se lembra, verdadeiramente, de anotar datas e nomes, de registrar melhor os momentos, descrevendo quadros de convívios passados. Pior agora, com a fita de vídeo reproduzindo vozes e movimentos, repetindo passagens de felicidade, no mais das vezes bem vividas. Filma-se tudo hoje em dia, do matrimônio festivo ao nascimento dos filhos, das comemorações de aniversário às bodas de prata ou de ouro, poucos, porém, aludem às ocasiões que vivem, deixando, assim, as interrogações todas para quem no futuro rodar as películas, resgatando os anos. O milagre da técnica, porém, humaniza a vida, permitindo o rever dos grandes espetáculos da existência, na imagem estática do papel ou no mais do que dinâmico rodar do celulóide! É preciso, mesmo, parar e regressar na roda dos anos, porque foi dessa maneira, tijolo sobre tijolo, que se fez o hoje e se fará o porvir!

Mas, o velho álbum de capa de couro, afivelado com peça de metal fino, retratando poses de um fim de século, de sinhás e de sinhazinhas, como de senhores de fisionomias pesadas, é, apenas, um documento para a História, sem os afetos, todavia, que por certo marcaram o então ver e rever de documentário tão significativo. Impossível para aqueles atores a previsão de que um bisneto ou um sobrinho, na mesma ordem de distância parental, pudesse, cem anos depois, indagar sobre prenomes e sobrenomes ou pudesse fazer perguntas de cunho sociológico! Saber do velho austero, de longas barbas ou da senhora de vestido muito longo, também, arrastando no chão, praticamente, como o da sinhazinha tímida, escondendo a hora! Que ocasião fora aquela? Um aniversário ou um casamento? Ou simplesmente o dia de receber o fotógrafo, como aquele da infância, do pai muito novo, ainda e da mãe muito mais! De que serve isso? Hão de perguntar, com certeza, na imensidão de todos os infinitos, aqueles circunstantes, enfim, que já se encantaram nas eternas e eternizadas dimensões. São retalhos do tempo - Isso sim! - reunidos dessa forma, um século depois! Fragmentos de muitas vidas flagrados em poses para a posteridade das coisas! Na parede, entretanto, o retrato do Barão, o patriarca, retocado a óleo, justifica os começos, a prosperidade de antanho e a antecipação da débâcle e noutra parede, bem longe, mais um dos primórdios, de barba muito grande e sisudez estampada, como cabia mesmo à época. Pai e filho, separados assim, numa grande largueza dos espaços e do tempo!

E as fotografias mais recentes, de trinta, quarenta anos pra trás? São lembranças, nada mais, de convívios experimentados e de afetos sentidos, somente! Vários daqueles atores, igualmente, se foram dos cenários da vida. São fantasmas, agora, nas coxias! Coleções inteiras da família, reunidas em folhas e folhas de papelão grosso e escuro. Retratos presos por cantoneiras finamente postas, de forma simétrica, nos vértices das recordações perdidas, sustentando saudades. Retratos pequeninos, também, que selavam amores ou que vinculavam namorados em desesperadas paixões, oferecidos, às vezes. Dedicatórias copiadas até dos livros de cabeceira dos amantes enternecidos. Devolvidos, depois - os pequeninos retratos -, nos momentos das rupturas, pra que não restasse, entre os devotos de Cupido, pedra sobre pedra das vinculações e dos sentimentos. Dos afetos, finalmente e dos afagos, muito menos! Lágrimas, tantas vezes, das despedidas choradas assim, nesse pranto da entrega de um retratinho. A materialização, pois, da perda da imagem, que representa a fuga do semblante da criatura amada, definitivamente afastada! Rendição dos amores em corredeira das dores, simbolicamente representada por esse resgate da face; da face e do busto, no jogo das rendições. Ocasiões guardadas no cofre dourado das digressões d’alma, fugas, pois, do cotidiano e das rotinas em tempero dos sonhos.

E na sala de casa, a mãe e a irmã, a convite, ambas, assistiram ao filme de vinte e oito anos pra trás, de uma festa familiar naqueles idos, depois que a película antiga, rodada em Super 8, sofreu a metamorfose da modernidade e se adaptou ao vídeo. Um desfilar de cenas inseridas, apenas, nos porões da memória, de gente que não existe mais ou de fisionomias hoje completamente mudadas, marcadas com o estigma das rugas, que representam os caminhos percorridos e pela senectude, que caracteriza o declínio da criatura humana. Era um momento de tanta alegria, refletiram elas! Os quinze anos de uma sobrinha e prima, com a presença de muitas outras. Umas postas ali na condição de damas, como alguns - os primos -, assumindo o papel de cavaleiros, antecipando a existência do hoje. E ao som da valsa, o pai toma a filha pela mão e rodopia no salão, apresentando à sociedade a debutante daqueles antanhos, acompanhado por um séqüito de jovens que são quarentões agora e novas festas preparam, continuando o ciclo da vida. Nas mesas, em volta, aqueles atores da noite coloriam o quadro das satisfações emergentes, riam por nada, parece, simbolizando a satisfação d’alma de cada um. Sorrisos largos e inocentes, ingênuos, tantos, davam conta dos espíritos livres e desarmados ali, transferindo a beleza dos convívios parentais, nem sempre sinceros, para os ares da festa. Difícil imaginar, naquela hora, que depois, muito tempo depois, o cenário servisse a nostálgicas lembranças!

Ah, como é penoso, às vezes, resgatar antigos momentos, gravados assim, no papel ou no celulóide, definitivamente passados. Perdidos, tantos! Amarelados ou desbotados, simplesmente, todos!


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sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Maria Betânia

Em noite úmida, de chuvisco intermitente, em pleno coração da velha zona boêmia, onde tantos e tantos amores já foram chorados em braços alheios e paixões desesperadas, mesmo que proibidas, esfriaram com outros abraços, bafejando do caís um sopro friorento de madrugada gestante, Nelson Gonçalves deitou e rolou. Sob as vistas e os aplausos calorosos de prostitutas remanescentes e cafetinas insistentes encantou a toda gente, do remediado da sorte ao ameaçado de morte pela malsinada economia dos poucos, neste insalubre rincão dos passeios de Darwin. E antes que o boêmio chegasse com a maviosa voz das fadas, Eliane Ferraz cantou e encantou também, rebuscando lembranças e revirando saudades. Por certo que a moça, a tirar pelo sobrenome, vem dos sertões esturricados ou das caatingas desnudas cantar loas urbanas, enaltecendo o recanto e recuperando cantos, abrindo com o bisturi da voz feridas mal cicatrizadas nos sentimentos d’alma.

Em trajes de gala para mais uma noite de carinhos vendidos e afagos medidos, três mulheres, meninas quase, desfilavam garbosas por entre o povo comum, dando ao corpo uma trégua que fosse à guerra dos desamores. Prontas estavam para o ofício antigo, de roxo todas, com adereços doirados, preparados para o mais difícil dos labores, entregar-se, sem amor e sem ódio, à gana desenfreada dos machos vencidos pelos reclamos desgraçados da carne. Afetos nascidos da precisão do metal, paridos sem gosto, no desgosto medonho de não ter profissão, senão aquela, a de dar sem receber, de amar sem ser amada. Depois, no amanhã dos tempos, quando o peso dos anos vergar os ombros e pratear os cabelos, é hora do desprezo dos homens. Quantas e quantas já se foram, tangidas pela indiferença humana, chorar desgraças em lágrimas sofridas da solidão? Marias, com a mais absoluta das certezas, muitas, severinas outras tantas, mas sebastianas, marinas, ritas e ivonetes também! Deixaram, no sinuoso trajeto do existir, sem que pudessem viver, sombras nada mais, de faces moldadas na argila da beleza e réstias de corpos bem desenhados, traços mouriscos da miscigenação tupiniquim, entre brancos de linhas avantajadas e negros nascidos no mais puro pretume d’África. Seios que embalaram sonhos, oníricos ou não, em devaneios momentâneos, pagos sempre em moeda corrente, como se a fantasia pudesse emergir de águas assim, turvas, na sujeira que o dinheiro tem e produz.



Na minha frente, um senhor, moreno na tez, de têmporas colorindo os anos, entusiasmado, ouvia as cantigas todas, exagerando-se em palmas, como se aplaudisse o tempo perdido, num rever de um filme tantas vezes mostrado, exibindo saudades na tela da vida. Pedia, a toda hora, transformando em conchas as mãos, para gritar mais alto, a letra de suas preferências: “Maria Betânia”. E quando Nelson cantou, abriu-se em pranto baixinho, sem incomodar os outros, chorando certamente um amor partido e perdido, deixado pra trás nos espinhosos caminhos do afeto. Deu vontade de perguntar, de indagar com respeito: a quem tanto amara? De saber dos lugares de que se lembrava? Fora gente do caís? Ou fora gente de outras paragens que não lhe entendera os sentimentos e não lhe compreendera os desejos? Branca, talvez, com preconceito de cor ou negra, morena ou mulata? Não sei, não perguntei, não pude, impediram-me os céus, molhando a gente e dispersando o povo. Tantos os que andam assim, vivendo de recordações, buscando aqui e ali uma brecha de vida pra caber lembranças! Momentos assim, preenchidos com notas musicais do amor, ocasiões meritórias das fantasias de um reviver, apenas!



Ah meus tempos, meus amores e minhas dores! Ah meus sentimentos, expostos agora na beira do caís, embalados nas ondas do mar das ilusões, oceano das lembranças, águas paridas da intimidade atlântica, regidas pela batuta da desses imaginários exílios do tempo. Eis a crônica de um reviver, oferecida, como todo o amor do autor - platônica digressão esta, a de amar a toda gente -, à solidão feminina, às mulheres que amaram e amam, perdidamente, o encantado príncipe dos anos.



Deus guarde “Maria Betânia”, a de Nelson e as outras, incluindo a prima do escriba aqui, vizinha quase e todas as marias do mundo.




Crônica escrita e publicada em abril de 1992, depois de uma apresentação de Nelson Gonçalves no Recife Antigo.


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sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Em Tempos Assim


Sentado agora, diante do computador, vendo as letras emergirem fluorescentes da intimidade da máquina, lembro-me dos velhos e já muito distantes anos de grupo escolar, quando sequer imaginava avanço tão grande. Ah, como as coisas mudaram nesse interregno de tempo, cinco décadas, pouco mais ou pouco menos! A professora, Dona Maria do Carmo de Albuquerque Mello, ia todos os dias ao quadro-negro escrever o ponto, isto é a matéria a ser explicada e depois estudada; ponto, aliás, cuidadosamente, copiado por todos nós. Por mim e por Luiz Fernando, meu colega de todos os bancos escolares, por Carmen Silvia e por Silvio Romero Marques, por Walfrido Antunes e por Carmen Chaves, ela musa das aulas e dos recreios. Havia uma inglesa de nome Ana, se bem me lembro, que no dia da coroação da Rainha Elizabeth II me deu de presente um lápis com o clássico: God Save the Queen. Onde andará, em que terras estará aquela figura loura, de cabelos quase brancos? E a outra colega das morenidades provincianas, Vera de prenome, cujo sobrenome omito por hesitação da consciência? Nunca mais as vi! Perderam-se, penso eu, na longa noite das décadas, trevas de todas as lembranças. Perdidos também ficaram os devaneios de todos os meninos. Sonhos pueris.

Nesses princípios de meus convívios, francamente, tudo ou quase tudo era muito bom. Deliciosa infância a minha. Camisa branca com o monograma da escola, calças azuis e sacola de lanche pendurada, levando o de sempre: pão com ovo frito e guaraná. Era jovem a minha mãe e o meu pai muito novo, eu sequer imaginava os cabelos brancos de hoje, tampouco as rugas da face e o vergar do corpo cansado com as agruras do mundo. O tempo passa e a gente marca! Sou da geração nascida na guerra, criada no pós-guerra. Trago o signo da beligerância mundial e a carência dos amamentados durante o blackout. Fui daqueles que educados pelos jesuitas, pelos salesianos ou pelos beneditinos traz o sinete dos pecados da carne, com quase nada das necessárias tinturas das grandes virtudes humanas: a caridade e a fraternidade. Das proximidades, enfim, dos valores d'alma.

Geraçao da metamorfose do tudo, das ciências e dos costumes, posta como recheio no sanduiche da modernidade, entre o antigo dos anos 50 e o moderno das décadas que se seguiram, assistindo agora a materialização do progresso de que falava meu pai, antecipando futuros. Pena que não os veja mais! Desatualizando-se, pois! Saudades agora de um porvir que não veio. Nostálgicas digressões de um órfão, passado o dia dos pais, de todos os viventes e os não-viventes. A caderneta da venda de seu João rendeu-se à tecnologia dos grandes supermercados, nos quais o simples digitar de senhas ou de números transfere da conta os valores em reais. E os livros dos estabelecimentos bancários, como os vi, enormes outrora, deram lugar às máquinas da modernidade, contabilizando ganhos e perdas. O fax chegou e não há como reverter os avanços - muito mais há de vir -, sendo impossível buscar nas gerações que emergem vocações para as cartas de amor, epístolas dos sentimentos.

No computador, porém, não escrevo; não posso criar, confesso! Nego-me a tanto! A padronização do écran inibe o exercício da criação, impede a expressão dos sentimentos no abraço das letras e na inclinação da escrita, segundo os afetos. Pode o amante digitar os seus amores nesse teclado das friezas emergentes? Ou pode a saudade tomar corpo no branco desta tela, sem macular, assim, purezas virginais do alvo que tem o papel? Não há como ler, aos cochichos, a crônica impressa no vídeo, detectando sonoridades e afastando barbaridades, choques indesejados. Antes as rimas, nas tintas sempre!

(*) Texto escrito e publicado na primeira metade dos anos 90, pouco tempo depois da perda paterna, quando o autor imaginava que não se renderia à força da informática, preservando o poder quase mágico da máquina de escrever. Rendeu-se!



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sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Cerejeiras Desfolhadas

Ainda é madrugada em Tóquio, descubro agora, nesta hora da antecipação de meu despertar, de um levantar mais do que precoce. E um vento frio, gélido, quase, vindo das montanhas distantes, sobretudo da enormidade do Fuji, assobiando a melodia de todos os zunidos, açoita as árvores e parece espantar a noite. Executa, em verdade, a lúgubre musicalidade do recolher dos fantasmas, com o clarear do dia, aos porões dos castelos abandonados, onde antigos casais enamorados, às escondidas dos censores, amaram-se, perdidamente! Ou anuncia, em realidade, o nascer de mais outra manhã de sábado, nesta prolongada estadia em terras nipônicas.
É hora, também, de aproveitar o momento, de se deixar mergulhar, com a integralidade do ser, nas reflexões do Eu, para que não se perca um minuto, sequer, da existência humana, tão efêmera, já! À falta de um interlocutor, pois que todos dormem, no hotel e fora dessas acomodações transitórias, exercito o monólogo ou pratico o diálogo virtual do homem só, que enfrenta indesejadas vigílias. Ensaio, pois, perguntas ao léu e eu mesmo as respondo, cumprindo o destino das insônias, de conotações orientais, agora. Fazendo, então, da vigília a tela da minha única pintura, a qual vou emoldurando assim, com as minhas expressões de neófito, sempre, na literária arte de tomar a inspiração e transbordar o coração. Permito-me, dessa forma, que o imaginário ganhe as asas do lúdico mundo das fantasias e possa bailar na enormidade da criação.

Para quem os galhos das cerejeiras desnudas, ao pé de minha janela, estão dando adeus? Não imagino. Será para o forasteiro ocidental, posto em quarto de hotel, depois de se alevantar, a fazer divagações d’alma em torno da parição dos dias? Por certo que não! Ou esses movimentos largos, de braços desfolhados, mas repletos de botões, representam uma esperança de um novo florescer das cores? É isso aí, imagino agora! Com as flores de março, resgatam-se os amores e são banidas as dores para a tumba do nada. As paixões desesperadas, que se mostraram impossíveis aos olhos do mundo, vão ressurgir, espero, no emergir das saudades, sobre um arco-íris enorme de pétalas largadas ao sabor dos ares, que depois hão de flutuar à distância, em mares do sul, onde os afetos e os afagos se encontram. E as sereias, amantes do imaginário poético, abrem os braços e recebem os versos, como se fossem abraços de jovens silentes ou ósculos de maduros senhores, de cabelos prateados e de corpos a vergarem na conta dos anos, apaixonados, ainda. A nudez da sereia é diferente daquela da cerejeira – a sakura dos japoneses –, pois que dura a vida inteira e representa a utopia da beleza feminina, da cintura para cima. É preciso perseguir a utopia, buscando, porém, em cada uma das mulheres do mundo, o tanto de sereia que possuem. Ninguém se apresenta ao jogo da vida, desprovida, inteiramente, desses atributos míticos. Aos olhos de cada um emerge a beleza, sempre. Basta olhar e ver.

E numa dessas nuvens de agora, na madrugada de Tóquio, flutua, entretanto, o poeta, exercitando o verso e arrematando a rima, mais e mais. Inspirando-se no porvir muito próximo das cerejeiras, a florescerem na largueza urbana, vai buscando as cores que marcam os sentimentos todos. Lembra-se do lilás e vincula a mansidão do tom à nostalgia das perdas, sentidas, mas aceitas, enfim! A conformação das rupturas, pois. E de logo vem à mente o amarelo, do ouro que reluz, trazendo de volta a esperança de encontros e de reencontros, do rever, então, de certas faces dos outroras ou de transbordantes carícias, resgatadas, então. Do vermelho, tira o fervor, com o qual um dia amou, loucamente, esmaecendo os arroubos d’alma na paz do róseo, de cuja placidez nascem os carinhos. E o azul? É a tonalidade das serenidades estabelecidas, reflete, enquanto vai colorindo os céus com o grande pincel dos amores, afugentando o cinza do firmamento, ameaçador, em tudo, aos ares do mundo e aos pares, amantes em flor, apartados, muitas vezes, na hora e no momento dos amplexos. O que dizer, todavia, do preto? É a ausência de cor, pensou o poeta, a falta completa de esperanças, a entrega do homem às frustrações da vida! Dessa forma, estão as criaturas que acusam os outros por seus fracassos, creditando a terceiros as próprias incapacidades do existir humano. Preenchem o dia-a-dia com a ocupação alheia, julgando o próximo, acusando o semelhante e descuidando de si, sem atentarem para a maior das lições, a que impede a interpretação dos sentimentos, das fragilidades de outrem.
E o dia foi clareando, alumiando o tempo, afugentando fantasias e tangendo os devaneios. A realidade se fez presente e matou os sonhos. As divagações desapareceram num sopro e se aninharam nas nuvens da cidade grande e o ruído da vida voltou. E o inverno, em estertores, cede lugar à primavera em flor.
Amanheceu, finalmente, em Tóquio.
(*) Crônica escrita num sábado qualquer em Tóquio, quando estava já há 30 dias num programa de aperfeiçoamento da Agência Japonesa de Fomento. Momento de saudade e de vazio d'alma, na solidão do quarto.
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sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Saúde e Gordura


O meu imaginário sempre foi muito fértil, reconheço sem modéstia, tanto é que menino, bem menino, sonhava com um remédio moderno, com gosto de chocolate e que chocolate fosse. Um dia me receitaram Aureomicina em pó, me parece, de sabor em tudo assemelhado à guloseima raramente incluída dentre os gêneros de primeira necessidade, senão no tempo da Páscoa. Mas, havia um produto farmacêutico muito popular à época, o Calcigenol Irradiado, que se dizia servia pra quase tudo. De paladar amargo e ruim, aquele leite grosso descia à força pela garganta do penitente. Tinha que se tomar, entretanto, porque fazia crescer e desenvolver ossos fortes, vigorosos. O Redoxon de agora, efervescente, imitando fruta cítrica, veio em boa hora, pois que chupei muitas pastilhas brancas, azedas, como se fossem tiradas do limão e açúcar não tivesse.

Todos os dias, às dez horas, com precisão, a minha mãe convocava os seis filhos e todos, cada qual à sua vez, tomava uma gema de ovo crua que sobrenadava em Vinho do Porto. Aquilo, segundo ela, dava vigor, fazia todo mundo disparar na altura e sobretudo, como era da moda, fazia engordar. Saúde e gordura, era o lema! Quando chegou a Penicilina – Valha-me Deus! – era um suplício, bastava a garganta arder, as amídalas se hipertrofiarem e tome injeção na região glútea, de três em três horas, ensinara o médico. O farmacêutico da esquina – o Sr. Belmiro Lobo -, proprietário da Farmácia Lobo, vinha rigorosamente, de dia e de noite, contanto que cumprisse a prescrição feita uma única vez, mas repetida pela genitora ao primeiro sinal da gripe ou da infecção malsinada. Acontecia da abordagem glútea se passar em pleno sono noturno ou durante a sesta e o susto era grande no momento da picada!


Depois, quando a botica fechou, apelou-se para o enfermeiro da fábrica, Domingos de prenome, que aplicava a Thiaminose na veia com uma prática de invejar. Um dia, uma dessas ampolas não estava a contento, não seguia as regras da anti-sepsia ou da assepsia e Dona Lila teve um choque. Foi um Deus nos acuda, ela tremendo feito vara verde, a temperatura subindo e a malta desesperada. Chamou-se o médico mais próximo, o Dr. Pacífico e na calma que lhe inspirava o nome, o homem sentenciou: Choque Pirogênico. Explicou as origens do fenômeno e culpou o laboratório! Em casa, todavia, não faltava o Xantinon, pois que a qualquer indisposição, gástrica ou intestinal, era o fígado o responsável e as gotas se sucediam bem contadas. Assim, também, com o Elixir Paregórico! Tudo muito amargo! Mas, tinha que tomar!

Certa vez, a minha avó paterna, muito ciosa da idade e mais que indisposta com o processo de envelhecimento, descobriu, não sei como, um medicamento que fazia parar a debacle da idade, criado pela Dra. Aslan, se bem me lembro, pras bandas da Suíça. Todos os dias, então, o nosso Sr. Domingos aplicava-lhe a mágica porção num dos braços, alternativamente, dia num dia noutro. E se serviu, ninguém sabe, ninguém viu, porque morreu com oitenta e dois anos bem vividos. O que se sabe, é que vinha acondicionado em caixinha de madeira bem cuidada, cobiçada pela meninada! Nunca dispensou, também, o Lasain, do Laboratório Andrómaco, indicado nas tosses e fazia questão de recomendar para os netos o Kusuk, um tônico, de sabor adocicado, xaroposo. Era uma beleza! Se pudesse repetir e se repetia, ainda melhor!


O Biotônico Fontoura, de que tantos falam nas lembranças do ontem, pouco figurou na minha infância, não sei, exatamente, a razão, se descrença de minha mãe ou se por falta de recomendação dos circunstantes. Todo mundo dava palpites! Gente que me achava magro e gente que mandava tomar um ou outro remédio. Era uma fofocada braba! Bonito era ser gordo, forte, ter barriga, pneu e culote. As gordas de minha rua tinham albacora por apelido.




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sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Cenários do Ontem

Neste mundo está tudo mudado, diria o poeta, parodiando o velho refrão junino! Mudaram as cidades e as pessoas! Do antes há lembranças de bucólicas ruas, em cujos passeios as famílias se reuniam em fins de tarde, para uma prosa qualquer! Saudades das idas e das vindas ao centro comercial, à rua da Imperatriz ou à rua Nova. Um sorvete na Aurora ou um sanduíche bem cuidado em pão de fôrma quentinho na Confiança, a confeitaria da esquina. Um café pequeno na Sertã, em outra esquina distante, antes de se chegar às margens do rio e fiar conversa, até começar a sessão do São Luiz, para assistir o filme do momento; um enredo de aventura ou uma película romântica dos encantamentos juvenis. Na tela do Moderno, em certo domingo de ares mornos e ventos ausentes, o cantor quase chora: “Por que não paras relógio/Não me faças padecer...”. E o tempo não parou, pintou meus cabelos com a tinta dos anos!

Velhos bondes a se arrastarem do Farol até o terminal da Hospício, motorneiro e condutor vestidos a caráter, de terno azul marinho e boné com a chapa e o número. Antigos ônibus da Pernambuco Autoviária Ltda. ou aqueles da Pedrosa, que passavam na Visconde de Suassuna e levavam a meninada à cidade, como se dizia à época, significando o centro urbano apenas. Uma calça comprada na Personal, na av. Guararapes, se premiada, garantia outra de graça, para se usar na igreja em dias santos. As Lojas Seta – Lojas Seta para Homens –, de muito bom preço também, asseguravam a elegância pouco exigente. Calças que não amarrotavam, de Nycron ou camisas Volta ao Mundo, sem falar na helanca e no buclê. Quando a mescla chegou fez sucesso! Sapatos Vulcabrás, de maior durabilidade, na Duque de Caxias, contando sempre com o desconto providencial do dono: Roberto Bruto. Para casa, a minha tia velha costumava usar as alpargatas Rhodia!

Às praias pouco se podia ir! Ninguém tinha carro e Boa Viagem era distante, Piedade e Candeias nem pensar, Olinda, vez ou outra, no Bairro Novo, sobretudo, lugar de veranistas de boas posses. Uma viagem, verdadeiramente, para se chegar ao Pina, atravessando-se duas pontes, a Giratória e mais adiante outra, toda de ferro também, cuja passagem servia para um carro somente. Mulheres exagerando pudores, trajando roupas de banho as mais compostas possíveis, maiôs com saiotes e decotes elevados, a esconderem as intimidades, segredos e sigilos de lindos corpos. Quando o biquíni apareceu, reservava-se às turistas que se hospedavam no Hotel Boa Viagem, terminal de ônibus da mesma maneira, razão para os rapazes escolherem o lugar nesse acolhimento matinal. Sol a pino e belas pernas nas areias cálidas! E as fantasias preenchiam os salitrosos ares daquele mundo dos devaneios pueris, ainda!

A fábrica TSAP apitava às sete e às onze, para garantir a presença dos operários, dos tecelões e das tecelãs, dos mestres e dos contramestres, liberando-os depois para o almoço, segundo os costumes. Ao meio-dia abraçavam-se os ponteiros e as colegiais retornavam da faina diária dos livros e dos cadernos, desfilavam, na verdade, diante da perplexidade emergente de rapazes aflorando para o exercício do mister maior: a vida!

À distância, numa vitrola de boa sonoridade, ouvia-se a voz de um homem maduro: “Eu era feliz/E não sabia!...”.

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sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Retratos ao Léu

Diante da porta de minha garagem, ao léu, literalmente considerando, descubro dezenas de fotografias espalhadas, dando cor à rua, à calçada emporcalhada, ardendo quase em desejos masoquistas por uma varredura, nunca sensual, do poder. Não resisto à tentação de apanhar algumas, confesso, para identificar expressões ou para encontrar justificativas para ato assim, tão diferente do corriqueiro, o do desprezo pela imagem fixada no papel, instantâneos de vida perpetuados. Terminei achando que posso resgatar um pouco das histórias ou das estórias daquela gente, com certa fidelidade até, a tirar pelo colorido das coisas e a julgar pelas dedicatórias e comentários apostos no verso de muitas poses. Tempos e espaços de amores e de desamores, de ódio e de vingança, de paixões fincadas sobre laços rompidos e de desejos – quem sabe? – da reconciliação. Por sugestão, então, de leitor deste espaço, em noite de fogueira acesa, milho assado e canjica, transformo o episódio em crônica, dividindo devaneios, realidades de outras criaturas, filhas de Deus, igualmente.

Eis que mãe e filhos, brasileiros todos, da miscigenada raça gilberteana, moram agora em terras frias, gélidas, do Velho Mundo. Deixaram a pátria à reboque da paixão avassaladora de que se tomou o gringo brancoso, fidelíssimo acompanhante da família original em momentos assim, preparados para o milagre moderno da fotografia, quando viu a morena de olhos verdes. Mais pra feia que pra bonita! Representante magricela da província em paragens d’além mar! Narcisicamente orgulhosa da tez pigmentada pela melanina d’África, da íris lembrando o viço tropical de folhas de orquídeas em parasitismo florestal, à semelhança dela mesma, em exagerada simbiose com o gringo: amor e sexo, corpo e dinheiro. Filhos paridos da maternidade tupiniquim, mas incluídos agora na modernidade do continente antigo, ávidos, então, por anos de glória. Do futuro daquele homem, agregado à célula familiar, depende o porvir de todos, como está num dos oferecimentos. Esperanças pairando em ares distantes e horizontes desvirginados em grandes vôos do imaginário pueril! Adolescentes bailando ao sabor melódico de muitas harpas, valsas do devaneio, na marca do progresso e da técnica, desabituados, por certo, com o carinho paterno, que é a expressão, também, do afeto. Tudo isso, pode acreditar o leitor, dedicado ao pai ou ao marido de outros anos, da ex-esposa ou da “eis” mulher, na permissão do erro que vernáculo admite aos quase analfabetos de um mundo em terceiro lugar.

Tinha mesmo que jogar tudo fora, às favas, como fez, desesperado e desiludido, perdido, verdadeiramente, nas olimpíadas de um amor rompido, na disputa já vencida, também, do lúdico das paixões. De que serve rever assim, teria dito, ouvindo Dalva ou entoando com Núbia canções da perda! De léu em léu deve andar o homem largado, com as fotos que davam cor à lua, afastando pensamentos e afugentando momentos, enquanto a radiola, cantando desgraças, marca a sina. Não podia por cá comprar o vestido negro e brilhante que veste ou a folhagem a esconder-lhe a face, tampouco bilhetes aéreos e passagens em confortáveis trens. Ah, passeios, nunca, praticamente, os teve, senão ao zoológico tupiniquim, tão diferente daqueles que via. Visitas a cachoeiras muito menos, congeladas, como a da foto, somente em sonhos, no onírico da vida.

Em permeio à felicidade emergente, pensa ela – imagino – reconquistar amores e repor pendores, enviando as poses. Ou alimenta o ódio, praticando a vingança com a arma do instantâneo e o projétil veloz da postagem. Retratos ao léu, eis o que descobri na porta de minha garagem.

(*) Crônica publicada em 29 de junho de 1992, depois de ter encontrado na porta de minha garagem, na Boa Vista, dezenas de fotografias do passeio de uma família na Europa. Uma família brasileira, cuja mulher, certamente, deixara o marido e se reunira a um senhor estrangeiro. Fotos oferecidas, quase todas, fazendo pouco do ex-marido, em péssimo português.
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