Bucólica manhã esta de um domingo qualquer, em tudo tropical. Mês de maio, mês das noivas, das mães e dos ventos, dos terços e das novenas. Velhas fruteiras do Rosarinho, mangueiras antigas de boas mangas, jambeiros e oitizeiros que se juntam e abrem os galhos em sincrônicos movimentos das despedidas medidas, nunca pedidas, de um final de semana gostoso, saboroso até. Na minúscula praça - um refúgio, como aprendi - em frente ao prédio os peões da construção estão fiando conversa, matando o tempo do lazer fora de casa. Ocupam os três únicos bancos, mas cedem lugar à figurante feminina que chega, se aconchega e vem compor a cena desse espetáculo sem roteiros. De longos cabelos pretos, estirados e viçosos, penteados a óleo, faz as vezes de interprete da sedução nessa encenação de ocasião. O moço que passa com a gaiola na mão aprisiona sonhos ou vai encarcerando devaneios e assim, com o imaginário contido, restringe as fantasias e inibe as divagações.
O vagabundo aproxima-se da praça a passos lentos, como se estivesse calculando distâncias, mesmo conhecendo na palma da mão esses entornos. Escolheu um dos bancos e estendeu no encosto o paletó surrado, sentando-se em seguida, não sem antes acomodar a seu lado a caixa de leite cheia de revistas. Abriu uma dessas e passou rapidamente as páginas, detendo-se aqui e ali numa foto qualquer, sem que lhe importassem os textos. Retratos da sensualidade feminina à vista de um homem como outro qualquer, diferenciado, apenas, pela condição humilhante do analfabetismo, que impede a cidadania. O cão ajeitou-se no chão, abriu a boca preguiçoso, fechou as pálpebras, jurando fidelidade que tantos não conhecem e quase ronca. O passante, que empurrava a carroça repleta de latinhas usadas, com o filho a lhe ajudar no ofício, decidiu parar e descansar também. Tirar um deforete, diriam os antigos!
Cumprimentaram-se e um diálogo nasceu! O nômade falava e gesticulava, argumentando com segurança, explicando as suas idéias e os seus ideais. O interlocutor de ocasião retrucava o quanto podia, discordando, então, do pensamento alheio. A criança, absorta, acompanhava os dois na conversa, sem compreender bem de que falavam e o que discutiam. Não houve acordo e o moço forasteiro se alevantou, virou-se para o menino e fez o gesto universal, tocando a têmpora com o indicador da mão direita: É doido! E seguiu em frente, voltou à faina da reciclagem do alumínio, garantindo a féria. Outra vez o homem errante abriu uma revista, folheou com a mesma rapidez e se deteve na visão da nudez! O menino de rua, cheirando cola, quase senta no banco, não fossem os latidos do cachorro. O cavalo que passou pachorrento, como cabe ser aos equídeos, nem ligou para os dois, mas por pouco não provocou um acidente grave, não fosse a precisão dos freios.
O prédio em frente vai se compondo aos poucos, tijolo por tijolo, parede por parede e andar por andar. Acolhe no quarto pavimento os peões do interior, tangidos da cana-de-açúcar, largados da bagaceira. Em baixo, o vigia vem atender à porta a mulher que bate e toca a sineta. É a esposa a conferir destinos! Não se abraçam e nem se tocam, não há afagos e nem afetos, somente a troca de palavras, que se tornam inaudíveis nos ares da rua. No edifício ao lado a festa já começou, os músicos tocam saudosos acordes de orquestras românticas, mas fazem, em seguida, outra opção. Há uma cantora entre os presentes, mulher cinqüentona ao que parece, a entoar "Bandeira branca/Amor/Eu quero mais/Pela saudade...", para depois preencher o mundo com a maviosa letra que Nelson Gonçalves consagrou: "Minha normalista linda/Rapidamente conquista/Meu coração sem amor..." Resgate, por certo, de perdidos e encantados pretéritos!
E a hora vai passando, porque o tempo não pára, sequer em momentos assim, de enlevo d’alma! Os ponteiros se abraçam e despedem a manhã, comemoram o nascer da tarde e anunciam que a noite vai chegar e outro dia surgirá, recomeçando o tudo. O doidinho da rua há de voltar e declamar a agourenta rima, para desespero dos peões: "Se você cair!/Não vai se ferir!/Nem ficar em pedaços!/Estarei aqui para segurá-lo nos braços!" Ouvirá o que não quer e outra vez gritará a plenos pulmões: "Se você cair!...".
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