domingo, 29 de janeiro de 2012

Das Superstições e das Crenças

Sou de família supersticiosa! Meu pai não deixava um chinelo emborcado por nada nesse mundo. E minha mãe não passava em baixo de uma escada de jeito nenhum. A minha avó paterna, residente na mesma moradia que eu, não saia de casa com o pé esquerdo e não admitia entrar na residência dessa forma. Tudo era bem certinho com ela. Tinha um medo de trovão e relâmpago que dava dó em toda gente; cobria os espelhos com panos escuros e protegia os vidros da mesma forma. Era um deus nos acuda, quando chovia e havia tempestade. Todos corriam e se abrigavam, porque ela obrigava a isso. Hoje, por mim, pode rebentar tudo que eu não me incomodo.

Uma irmã de meu pai, viúva convicta e às vezes tida como uma ameaça pelas mulheres casadas, tinha um medo horrível de gato preto. Quando via um bicho desses de manhã cedo, era certo contar com o azar daí em diante. Perdia o dia e até deixava de tomar algumas providências necessárias, para que o mau pressagio desaparecesse. Outra coisa do comum dos dias era o cuidado com o vestir roupa pelo avesso, minha mãe alertava para não dormir com o pijama vestido ao contrário. Eu me levantava da cama e invertia a roupa. Melhor assim, dizia sempre!

Havia umas crenças seguidas ao pé da letra. Uma dessas o risco para a saúde que seria misturar leite com manga. Ninguém tomava banho morno e saia no vento. Era um perigo! Ou tomar banho depois o almoço. Contava-se que era comum a congestão depois dessa prática malsinada, por isso seguia-se rigorosamente. Outra coisa: o olhado. Tinha gente com a propriedade de seca pimenta, isto é, que se gostasse de uma planta, a bichinha murchava ou se o encanto fosse um pássaro, podia contar o dono com a morte precoce o animal. Mas, havia as rezadoras, como Dona Mimi, que tirava o olhado de quem adoecia. Dor de dente era com ela, rezava com um galhinho de planta e depois se gabava de ter tirado o olhado, pois murchara as folhas.

Pior o sapo Argemiro, lá da casa de uma namorada, acusado de olhar as formas femininas bem talhadas e de impedir-lhe o namoro daí por diante. Ficava imóvel no terraço, fitando a moça com olhos pidões. Mas, a dedicada empregada o assustava, sempre, com um cabo de vassoura. Dia desses li no jornal interessante artigo de uma médica, no qual conta que em Caruaru um decifrador de sonhos interpretou um determinado devaneio onírico com a figura felina de um gato, como sendo apropriado ao jogo na vaca. E o raciocínio foi o seguinte: gato come rato; rato gosta de queijo; queijo se faz com o leite; e o leite vem da vaca. Eu só não sei se o penitente foi ou não foi contemplado.

Só sei que tive uma tia velha, habitual jogadora nessa roleta do Barão de Drummond, que colecionava números numa velha caixa de fósforos e como fazia uma espécie de sorteio com esse rudimentar banco de dados, tinha sempre um bicho a mais para jogar. E haja jogo! Eu não, pouco joguei na vida, mas quando o fiz, francamente, me fiei nos palpites de um motorista de meu pai. Certa vez lhe disse que tinha sonhado com uma vizinha de nome Suely. Ele pensou, pensou, terminou se saindo com essa:  mulher tinha seios grandes, então que jogasse na vaca. E foi dito e feito. Ganhei no grupo!

(*) – Lembranças de algumas superstições que vi e que acompanhei e recordações das crenças de outrora. O leitor decida se deseja comentar. O faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira.gj@gmail.com ou ainda para pereira@elogica.com.br



segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Encontros e Reencontros

Foi o bem-te-vi, com o seu trinar metálico, que me avisou da terminalidade das festas, naquela tarde morna e tropical de um dezembro em começos, apenas. Quando o sol já estava na posição de todas as verticalidades, inibindo as sombras, as pessoas foram se recolhendo aos pouquinhos, deixando livre a piscina e desocupando o chamado entorno do mar, um oceano enorme, na verdade, que acolhia a gente forasteira, interessada nas comemorações ou voltada para a fraternidade dos convívios. Na varanda do hotel, então, terminei fazendo a reflexão dos meus retornos ao dia-a-dia atribulado de minhas coisas. Impossível ter evitado o pranto na hora da valsa das lembranças, que resgatava um outro momento assim, distante já, três décadas para trás. Ali, também, com a mesma musa do hoje, ensaiei passos mal dados, para acompanhar a sonoridade daquela despedida. O homem, em realidade, despede-se várias vezes na vida e vai mudando a condição do existir, promovendo ritos de passagem que trazem a liturgia das metamorfoses.

 Assim com a formatura e assim com a ligação matrimonial ou assim com o nascimento do primeiro filho depois, de um por um, até o derradeiro. Mas, o último desses ritos marca a debacle. Companheiros dos bancos de universidade, vindos de longe,alguns, cumpriram o desiderato do reencontro, por três dias seguidos. Permitiram-se o exercício, mais que salutar, do fiar conversa indefinidamente, resgatando feitos e fatos de um pretérito que se encanta, agora, na longitude dos anos. O espírito de cada um regrediu no tempo, voltaram a ser acadêmicos de Medicina, com o humor diferenciado que caracteriza a jovialidade e que significa a leveza de vida ou a ausência, ainda, do peso de um existir assim, na honrada prática da profissão hipocrática, entre o sopro do Criador, que faz gerar, nascer, e a morte. Risos e mais risos, gargalhadas enormes, sonoras,com vivências e convivências daquele passado de estudantes, histórias dos provindos das brenhas, que enfrentaram sol e chuva, se almoçavam não jantavam e se jantavam não tinham almoçado. Gente morando em  pensões, que desapareceram do cenário urbano deste Recife nas fronteiras de um novo milênio, mal acomodada, mesmo que adaptada, contanto que se pudesse frequentar o sacrário desses saberes sacrossantos. Ou gente com um sapato apenas furado, ainda mais, remendado por dentro com a sagacidade dos fortes, por uma tira de esparadrapo branco.

E os apelidos foram lembrados, também, desde a viagem de ônibus. O mestre Baré, das larguezas amazônicas, encarou o microfone e quase faz a chamada, nomeando os presentes: Pluto e Gia, Fofa e Rita Pavone, Ovelha e Da Galinha. Há alguns impublicáveis e há outros respeitados, como aqueles que nomeavam as moças, médicas agora, integrantes das rodas de Esculápio. Falou de suas lendas e de suas matas, mostrou as mitológicas interpretações do boto cor-de-rosa, que encanta as meninas-moça. Mas, ninguém esqueceu os outros, roubados de nossos convívios, como foi o caso do Poeta, cuja vida terminou nos inícios do curso ou o caso de Cachorrão, privado, igualmente, do existir terreno além de Timbu, levado há poucos anos, na plenitude de sua maturidade.E ninguém esqueceu os que faltaram ou não puderam ir por vários motivos, à semelhança de Tampa-de-Chaleira e de Chupa-Osso. Como se não bastassem as fotografias tiradas de minuto em minuto, antigos retratos foram levados nas bagagens, além de certos adereços do tempo, como a boina do vestibular, que Ivo de Oliveira usou pelos três dias consecutivos, com a inscrição que padronizava a vitória: FMUR (Faculdade de Medicina da Universidade do Recife).

Foi um não acabar de lembranças e de recordações, nas conversas fiadas noite a dentro ou com as fotos amareladas, em preto-e-branco, assinalando momentos, marcando a felicidade do ontem. A hora do trote pelas ruas da cidade, na Imperatriz ou na Rua Nova, na avenida Guararapes ou na Conde da Boa Vista, manifestação estudantil que durante muito tempo fez a crítica bem-humorada dos governos e dos governantes. Instantâneos, também, das salas e das aulas, além daqueles da primeira de todas as despedidas, a formatura. Lágrimas vertidas desde a missa, que abriu, com a necessária prece ao Criador, todas essas festas ou durante os pronunciamentos bem cuidados de Luiz Fernando e de Claudeci Gomes. Sem esquecer que na hora do jantar dançante, o nosso orador da turma – Paulo Dantas – falou com a verve dos grandes e agradeceu a Moacir Novaes, mentor das lembranças e timoneiro das recordações, o denodo com que organizou tudo. E eu agradeço assim, deixando-me tomar pelas inspirações e descrevendo o meu sentimento com palavras paridas das intimidades d''alma. A oportunidade que tive, confesso, foi das mais felizes de minha vida.


Benditos sejam todos que promoveram esse enlevo do coração!

(*) Crônica escrita já há 12 anos, se pouco, quando das três décadas de formado. Ode às lembranças e ao fiar conversa  numa homenagem ao tempo vivido.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Um Recife do Antes

Eu conheci o Recife dos meados do século XX! De sobrados e casarões, de terreiros enormes, nos quais frutificavam mangueiras de saborosas mangas, jambeiros de copas largas e touceiras da melhor banana, onde se criava a galinha gorda e poedeira ou o caranguejo cevado em velhos garajaus. O Recife de ruas e de ruelas, das famílias reunidas nas calçadas fiando conversa; das novas avenidas servindo de passarela à juventude em flor, nas incursões vespertinas ao centro da cidade, para o footing de que falavam os antigos ou para um filme qualquer nos cinemas das elites. Da beira do rio bem cuidada, bem acabada em longas muretas de cimento, de pronto apelidadas de Quem-me-Quer, nas quais sentavam moçoilas casadoiras para um flerte noturno com os estudantes do secundário, alunos do Nóbrega ou do Marista, do Salesiano ou do Padre Felix.
Um Recife dos bondes cortando os caminhos, pra lá e pra cá, levando a gente trabalhadora ou trazendo de volta meninos e meninas do grupo escolar. Dos ônibus da Pernambuco Autoviária Ltda, devidamente, equipados com rádios de comunicação, para perplexidade geral e irrestrita dos passageiros da época. Dos automóveis importados da granfinagem, conduzindo o pai e a mãe, os filhos, também, além da avó e das tias solteironas às compras na Imperatriz ou na rua Nova. Das bicicletas e das motocicletas, as primeiras reservadas ao proletariado e as outras à distração de burgueses empedernidos. Das carroças de cavalo sujando os passeios, às vezes adaptadas pelos mascates à venda diversificada das miudezas de casa, anunciadas pela barulhenta matraca, dos agrados da irreverente garotada.
Cidade das mercearias espalhadas em cada rua, quase, expondo mercadorias da cozinha regional, cobradas ao final de cada mês, conforme as anotações em caderneta apropriada e para tanto destinada, de capa dura nos começos, mas de espiral e bom papel, em seguida. O feijão e a farinha, o arroz e a carne de charque, o bacalhau, de que se serviam os pobres e o fígado de alemão, com igual destinação social. De farmácias que davam plantão e se prestavam, também, aos encontros de fim de tarde da gente de terceira idade, velhos que não eram velhos. De antigos telefones no fundo desses estabelecimentos, com um bocal muito grande e muito largo, no qual o interlocutor gritava, a plenos pulmões, as sentenças da ira ou as manifestações dos amores, enquanto a assistência de ocasião ouvia e cortava a seda da hora.
Lugar de brincadeiras preenchendo as manhãs e enchendo as tardes, peladas no calçamento, com bola de meia, tantas vezes ou com o produto mais moderno, popularizado, então, de borracha ou de couro. Barra-bandeira e pega-soltou, academia e bola de gude. A pipa solta no ares, com o nome de papagaio, como se chamava naqueles antanhos, distantes anos do lúdico no silêncio do esconde-esconde ou na lamuriosa loa: Eu sou pobre/Pobre/Pobre/De marré/Marré/Marré... O velocípede antecipando os dias e a patinete alvoroçando os outros, os patins de rolimã deslizando nas calçadas e fazendo um ruído de ensurdecer as avós inquietas e as tias impacientes com as peraltices infantis. A bicicleta de boa marca chegando como prêmio, contrapedal ou com os freios de mão ajustados à altura das rodas e das jantes.
Recanto de outros encantos, de moças passando e passeando, na ida para o colégio ou na volta das aulas e dos recreios, deixando nos ares um rabo de olho qualquer, incendiando corações ou acendendo a fogueira das paixões. Rapazes imberbes, quase, nos ritos e nas liturgias das iniciações e dos amores. Casais de mãos dadas ou enlaçados, nunca inteiramente abraçados, ósculos roubados nos carroceis dos ares. Dores, tantas vezes, nas feridas das rupturas. Lágrimas verdes ou azuis, de tonalidade castanha ou de cor mais fechada, o preto. Lágrimas sem cor, descoloridas, na verdade, pelas decepções. Prantos contidos e choros convulsos!
Eu conheci o Recife dos meados do século XX!

(*) - Um texto escrito já há bom tempo, em homenagem aos que viveram na cidade nos anos cinquenta e sessenta e hoje estão cursando a sétima década ou muito próximo dessa idade. O leitor que desejar comentar o faça no espaço mesmo do Blog ou os e-mails pereira.gj@gmail.com ou ainda pereira@elogica.com.br