domingo, 7 de dezembro de 2014

A Visita ao Parque


          Eu estava no aeroporto, aguardando o embarque para São Paulo, de onde escrevo agora, observando a gente que comigo esperava o pássaro de aço, como se dizia outrora. Pois é, caríssimo leitor, tudo mudou! Há muitos anos atrás, estive nessa mesma estação de passageiros levando um primo meu, porque uma viagem de avião era um acontecimento na família. E lá fomos nós, seus parentes, primas e primos, tias e tios, desejar-lhe boa viagem. Lembro bem que ele vestia paletó e gravata, sendo admirado por isso, por sua elegância, por seu porte. Acho até que os parentes de Campina Grande vieram para o embarque! Pois é, dessa vez notei que havia passageiros de bermuda, mal vestidos, quase diria, rasgados e sujos.

Mas, foi uma viagem ótima, embora às 22 horas, chegando em São Paulo ai pelas 2 horas da manhã, contando o fuso horário, que muda as horas do Recife pra cá. Por aqui, temos sido muito bem tratados (eu e minha mulher), pela filha e pelo genro, mas também pelo neto Pablo, às voltas com uma nova ida à Espanha, terra na qual viu o sol pela vez primeira. Ele está ótimo, em sua fase de menino aos 5 anos de idade, preparando-se já para novo aniversário, o que lhe deixa muito feliz e muito animado. O bom é que na escola em que estuda, o Colégio Internacional Anhembi Morumbi, já se pode concluir que é para a matemática as suas inclinações maiores. É capaz de fazer contas de cabeça, me diz o pai, meu genro, comparando o filho ao irmão, que continua por lá, na chamada Península Ibérica.

A beleza dessa aprazível viagem foi a ida hoje ao Parque do Ibirapuera, cujo bosque eu pensei que conhecia, porque tinha estado há muitos anos aqui. Não conhecia! Fiquei deslumbrado com o verde que se mantém assim, malgrado os prédios do entorno e sobretudo maravilhado com o espelho d’água, no qual nadavam patinhos, gansos e cisnes da mais bela plumagem. Aquilo lá é de tal forma relaxante, que se o passante sentar naquela beira e ficar apreciando as aves e a água que se movimenta ao sabor do nado dos animais anfíbios, com toda certeza há de receber os influxos dos espíritos do bem. Uma tranquilidade! Uns andavam, caminhavam nas pistas de Cooper, outros usavam a bicicleta como meio para gastar as calorias e havia quem apenas olhasse o ambiente em volta.

Na Avenida Paulista muita gente pra lá e pra cá, passeando e andando. Um movimento saudável, especialmente porque os ares estavam na faixa do verde; isto é, a poluição recuara um pouco, deixando em paz os viventes desse mundo de meu Deus. Depois, o almoço no Restaurante Mineiro, um tutu bem dosado e mais do que abundante, alimentando gregos e troianos. Assim é bom, vale a pena almoçar fora!

 
 
(*) Um texto escrito em São Paulo, a terra da garoa, na feliz hospedagem em casa de minha filha, merecendo a delicadeza de meu genro e os afetos de meu neto. O leitor que fizer essa leitura, pudendo, comente. O autor gosta disso!

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Perplexidade

Confesso que vivo uma fase de uma melancolia cívica. Todo dia se tem um fato novo a acrescentar, nessa cantiga da corrupção. Nunca vi, sequer em minhas leituras, tempo de tanta malversação do dinheiro público, como este. É voz corrente que não há no mundo nada semelhante, nada parecido. A empresa que levou o povo às ruas há meio século, numa vibração continua pelo petróleo, está ruindo à custa do roubo, do assalto à luz do dia. Com isso, atingem o suado dinheiro do brasileiro e o pior, inibem as atividades que poderiam melhorar a qualidade de vida do cidadão.

Onde estão as casas do projeto Minha Casa Minha Vida? A secretária aqui de casa, domiciliada na Ilha do Maruim, em Olinda, espera por uma unidade de um programa de moradia popular há mais de 8 anos e ainda deixam de pagar o auxilio a que tem direito. E sou eu quem assume o custo do aluguel. Quando a televisão mostra o povo invadindo os imóveis que estão prontos, à falta de habitação para morar, eu acho é pouco, porque representa uma revolta social, com a injustiça de não se oferecer casas ao segmento de população abaixo dos remediados da sorte. De que serve a Constituição recomendar diferente? Não se cumpre mesmo nada! Prova disso está agora nas démarches do Executivo, para que o Congresso permita maquiar a contabilidade do Governo. Pior não pode ficar!

Descubro que vivo uma recalcitrante perplexidade, com tanto coice e tanta patada dos que estão à frente das decisões. Parece até que somos os culpados pela inflação, que forjamos a roubalheira na Petrobras e estimulamos o mensalão. Dói saber que tanta gente trabalha o ano inteiro, dependendo do transporte público, para ganhar a miséria do salário mínimo e no fim não têm direito a nada, enquanto os grandes se refestelam numa falsa realidade. Moram em palacetes e comem caviar, bebem os whiskys finos e tomam as cervejas importadas ou os vinhos da Europa. Isso sim é pecado, roubar o dinheiro da gente simples, nadar em ouro, solapando os pobres e os miseráveis. Ou pecado, ainda, é esconder os números das estatísticas nacionais, empurrando para o tapete os dados da inflação ou as informações do balanço das empresas públicas.

Essas pessoas que usufruem dessa massa roubada, não lembram que caixão não tem gaveta e que depois da morte o caminho é um só, seja pobre ou seja rico.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Calcinha verde


Pela manhã, no horário das 10 horas, há um programa de péssima qualidade sendo exibido; programa de baixaria, da revelação do segredo de muitos e da ciência por outros desses sigilos. Às vezes eu o assisto! Vou anotando essas confidências, com a intenção mesmo de juntando-as escrever uma crônica, como faço agora. Muita gente vai ali para dizer a um amigo ou uma amiga certas intimidades que o outro ou a outra ainda não sabia. Muito frequentemente amigos se revelam e dizem horrores aos antigos confidentes. Ou os filhos decidem expor essas confissões aos pais, sobretudo às mães, deixando-as em caldos.

Foto: DivulgaçãoDia desses, ouvi uma filha voltar-se para a genitora e dizer que não a sustentaria mais e que a traria para morar consigo, desde que ela lhe servisse como empregada doméstica. A pobre da mulher quase cai de susto e disse que não se disporia a tanto, mesmo que para isso precisasse morar debaixo da ponte. Coitada! É comum o noivo que vai ao auditório para acabar o vínculo que tinha com a moça, depois de ter gasto o dinheiro todo que a penitente vinha economizando. Em certa ocasião, vi um irmão que resolveu informar à irmã que ele passaria a investir os seus recursos poupados. Mas, investir numa criação de baratas, para serem usadas por laboratórios. Ora pau! Já muita gente investindo dinheiro, mas em baratas foi a primeira vez.


Uma jovem, há pouco largada pelo marido, ajoelhou-se no palco, dizendo que daria tudo para ser a “outra”. Tive até pena dessa suplicante, tal a forma melosa com que pedia. Mas, o outro cônjuge fez cara de mercador e não a quis mais. É isso ai! Outra vez, uma jovem esposa contou que fora visitar a melhor de suas amigas, mas como o marido era ciumento ao extremo – tinha ciúme até das roupas... -, escondeu-se no guarda-roupa quando ele chegou e quando apareceu em casa de madrugada, mentiu ao marido e contou que estava fazendo serão no escritório. Essa pobre quase vai ao desespero, com o consorte se queixando de suas mentiras. É isso mesmo! Às vezes, melhor nem dizer nada!
Mas, a mais interessante mesmo foi aquela de uma vizinha que chamou a sua amiga, da casa ao lado, para notificar sobre as saídas de seu marido e os destinos dessas escapadelas. É que ele fazia visitas furtivas à moradora de frente e sabia justamente se podia ou se não podia comparecer a esse encargo quase cívico de sua vida. Guiava-se pela cor da calcinha que estivesse estendida, se verde, com toda certeza iria ao encontro dessa criatura, se vermelho, que não se arriscasse, porque o marido de casa não saíra. Mas, na eventualidade do amarelo, que esperasse a decisão do titular: ou saía e a cor era trocada para o verde ou se fosse o vermelho a ocupar a corda de estender roupa do terraço, nem pensar em subir. Essa turma tem jeito pra tudo!
Lembrei de parente meu que marcou com uma mulher bonitona passar com ela o fim de semana. Era a sua vizinha de frente. Chegando em casa disse à esposa que ia a São Paulo na sexta-feira, a negócio. A companheira, não sei porque cargas d’água, disse que o levaria ao aeroporto, pelo que se deu o diálogo a seguir:
- Não se preocupe! Deixo o carro na garagem e me resolvo. Quando retornar tomo o automóvel e volto a nosso convívio.
- Não, de forma alguma!
Não adiantou e a consorte foi com ele ao pretenso embarque. Ele, não teve dúvidas, comprou ali mesmo uma passagem de avião e embarcou decidido. Durante o voo procurou o comandante da aeronave e explicou o ocorrido, pretendendo descer no caminho.
- Me deixe descer em Salvador!
- Não é possível o passageiro descer antes de seu destino final, explicou o capitão. Mas, diante da importância de sua justificativa, considerando o serviço que há de prestar à causa masculina, permito-lhe a exceção. E ele desceu!
Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato e o senhor rei mandou dizer que contasse quatro.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Vicente Ignácio Pereira - O bisavô, o neto e o bisneto

Vicente Ignácio Pereira, o bisavô do autor deste ensaio, foi médico na cidade do Ceará-Mirim, Estado do Rio Grande do Norte, casado com uma filha de Manoel Varela do Nascimento, o Barão do Ceará-Mirim, Isabel Augusta Varela Pereira. Com o matrimônio recebeu, certamente como antecipação da herança, o Sitio Bonito, que depois se transformou no engenho Guaporé, onde ele viveu e morreu. Foi ele quem construiu a Casa Grande, até hoje de pé, da qual não se tem informações adicionais, senão os comentários de ser um imóvel afidalgado, com estilo afrancesado. Ali exerceu a arte de curar até a morte de uma filha, entre os 13 e os 14 anos de idade, quando jurou, à saída do féretro, não exercer mais a medicina.

A moça, de nome Maria Cristina Varella Pereira, faleceu, conforme consta de notícia na imprensa, no jornal Correio de Natal, em 16 de novembro de 1878, vítima de uma hemorragia nasal. A moça, por hipótese, adoeceu de uma doença sistêmica, capaz de justificar o óbito e o sangramento. Por certo que foi acometida por um linfoma ou por uma leucemia. Conta Nilo Pereira, em seu livro A Rosa Verde, que o facultativo aceitou fugir a seu juramento, quando uma escrava engravidou e obteve do senhor a promessa de que faria o seu parto. Não diz, no entanto, se a criança nasceu pelas mãos dele ou se a mãe foi partejada por outro, opção que o autor aventa!

Ele integrou aquele grupo que Nilo Pereira enalteceu, tornando-os personagens literários, em crônicas diárias ou mesmo em livros que publicou. Só assim, como está em Helicarla Nyele, foram projetados nos ambientes sociais em que viveram e se perpetuaram, permitindo àquele autor o resgate também de cenários pretéritos, de uma aristocracia própria daquele lugar, no qual o açúcar viveu um apogeu digno da gênese literária.

O bisneto não vai conseguir fazer como fez o neto, Nilo Pereira, mas há de inserir o médico ilustre na memória das doenças do Nordeste do Brasil. A publicação só foi reencontrada recentemente, depois do falecimento da mãe do autor deste ensaio, Lila Marques Pereira e enviada pela irmã, Maria de Fátima Marques Pereira, que sabia do interesse que tinha o irmão médico nesses estudos de preservação da história parental. Esse é um material que veio do Ceará-Mirim, com a mudança para o Recife de Beatriz Pereira e Deolinda do Nascimento Barroca, netas do Barão do Ceará-Mirim e respectivamente avó e tia em segundo grau de quem escreve essas linhas.

O Dr. Vicente, por certo nunca imaginou que um bisneto seu, médico como ele, neto de seu filho Fausto Varela Pereira e filho de seu neto, Nilo de Oliveira Pereira, a quem ele próprio não conheceu, fizesse um resgate de seu nome tantos anos depois de sua morte. Pois é, a 126 anos de seu falecimento, na cidade do Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte, comenta-se aqui não apenas as informações sobre a pessoa e o médico Vicente Ignácio Pereira, mas uma monografia assinada por ele e publicada em 1887, impressa na “Typografia dos Dois Mundos”, sob o título de “Considerações Práticas sobre o Cholera-Morbus – sua profilaxia e seu tratamento.”. Opúsculo, como está no texto, voltado para a sociedade em geral e menos para a classe médica, que o autor, reconhecia competente e experiente.

A família Pereira, especialmente o ramo do Rio Grande do Norte, começa com o português Joaquim Inácio Pereira, que migrou de sua pátria para o Ceará-Mirim, em 1795, morrendo por lá a 22 de fevereiro de 1868. Vicente foi o quarto filho de Joaquim e de sua esposa Dona Antonia Maria de Jesus. O livro de Alcides Francisco Vilar de Queiroz, intitulado “Villar & Cia – Apontamentos de História Familiar”, esclarece que a família Pereira é uma das mais importantes de Portugal e vem de D. Mendo, irmão do último rei dos Longobardos, de nome Desidério, que veio da Itália para conquistar a Galícia. Dentre os descendentes, está Nuno Álvares Pereira, beatificado em 1918.

Um texto que é parte de um ensaio que venho escrevendo sobre o meu bisavô, médico na cidade do Ceará-Mirim, onde exerceu a arte, enquanto a filha Maria Cristina viveu. Depois, jurou nunca mais atender ninguém, tal a frustração que sentiu quando não pôde salvar a filha. A moça talvez tenha morrido de uma leucemia.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Médicos e Literatura


 
 Se o sofrimento inspira o verso ou faz transbordar o coração numa crônica, é claro que outros sentimentos também são inspiradores. A alegria, a satisfação de espírito, a plenitude d’alma permitem a criação literária também. Quando se trata de sofrimento, há quem acredite que o profissional da ciência de Hipócrates é um insensível, isto é quando cessa o trabalho ao lado do leito do seu cliente, passa também a angústia ou a ansiedade que a dor alheia produz. Não é bem assim! Quando a AIDS apareceu, abrimos alguns leitos no Hospital das Clínicas; eram doentes que serviriam ao ensino, mas também teriam que ser assistidos. Todos morriam, então! Os profissionais de saúde entraram em parafuso, não conseguiam salvar ninguém. Angustiaram-se e entraram em grande ansiedade. Foi necessário chamar um psiquiatra que os visse em grupo.

Mas, muito mais interessante que isso, é a experiência descrita no opúsculo “O Sofrimento do Médico: Ontem e Hoje”, publicado pela Academia Pernambucana de Medicina, escrito por Gilda Kelner e Clézio Sá Leitão, no qual há depoimentos verdadeiros do último autor, em torno de seu sofrimento diante da doença alheia. Vejamos: “Para completar o fim de semana, um paciente, Fernando, me foi encaminhado pela Dra. Érica, competente e dedicada hematologista...Faleceu no sábado e fiquei muito mal.”. E mais adiante: “Neste mesmo domingo, me ligaram da UTI, eu estava no sítio, pintando um barco, não pude voltar, não tinha forças, precisava de energia. Falei com o colega de plantão, que sedou, entubou, depois disso não se faria mais nada...”. Os depoimentos são apenas para demonstrar que há um sofrimento do médico, um padecer ao lado de seu doente; um sofrimento que inspira, tantas vezes, o exercício da escrita.

 O esculápio, por força de seu mister, tem sempre o que contar, tem sempre uma história a mais para acrescentar numa roda de fiar conversa. Eu, por exemplo, tenho centenas de histórias que poderiam ser narradas sob a forma de contos, sem ferir a ética, porque não há necessidade de se revelar o nome dos protagonistas e nem tampouco as circunstâncias em que aconteceram. À senhora, que desenganada com seu casamento foi recomendada a se vestir de forma sensual, mas o resultado da orientação redundou numa grande surra que lhe aplicou o marido. Ou aquela outra que tendo se apaixonado por mim, me presenteou com um bolo e um queijo do reino de boa marca. A minha mulher considerou que o bolo poderia estar envenenado, mas a latinha do queijo foi de logo aberta. E assim por diante!

O grande Tchékhov, médico que fora, inicialmente profissional de uma área rural – médico rural – em alguns de seus contos dá a nítida impressão de que viveu aqueles fatos. Se não os viveu propriamente, talvez tenha visto em outras famílias ou talvez tenha sabido. Em certo congresso de médicos escritores ouvi o comentário de um psicanalista, de cujo nome não lembro mais, que dizia não se inventar a narrativa por inteiro, mas lembrar fatos que se vivenciou, que soube por ouvir falar ou que tomou conhecimento de outra forma qualquer.

Pois é o escritor em “Inimigos”, conta que um médico da área rural, Dr. Kirílov, perdeu um  filho com seis anos de idade, vitima da difteria, o crupe, que a tantos roubou o existir terreno. Quando a criança ainda está em seu leito de morte, toca a campanhinha e surge o Sr. Abóguin, completamente desesperado com a mulher doente. A esposa desmaiara na sala de casa e como estava com visita cuidou juntamente com o forasteiro, o Sr. Paptchinski, e com ele deixou a mulher, enquanto trazia o médico. O profissional tinha perdido o filho e disso dá conta ao visitante, mas a insistência foi tão grande e os apelos tão fortes, que mesmo assim ele se dispõe a atender a senhora doente. Seguem na carruagem rumo à casa da infausta mulher. A surpresa, quando lá chegaram, foi muito grande, porque tudo não passou de uma simulação, para que ela fugisse com o amante, o Sr. Paptchinski.

Em outro conto, intitulado de “Angústia”, o autor conta a história de um cocheiro que também perdeu um filho e sofre com aquilo enquanto trabalha. Precisa desabafar com alguém e puxa o assunto várias vezes com diferentes interlocutores. Ninguém dá ouvidos, porque a desgraça do outro quase não interessa. Disse Nilo Pereira, em “Reflexões sobre um fim de século”, a tragédia humana é como um filme, terminado o enredo, passou também o sentimento. E o pobre do cocheiro termina contando seu padecer à sua égua. “A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono...”.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Cobras nas ruas do Nordeste


No Recife está tudo mudado, chove agora todos os dias e o aguaceiro tem hora pra chegar; chove pela manhã logo cedo e chove à noite, no momento do sono se apresentar. Se apresentar para os outros, porque pra mim, se houver apresentação, pode esperar a madrugada que eu desperto. É a insônia do despertar precoce, cujo incômodo impede, muitas vezes, do dia correr bonito, sem cochilo e sem madorna. Se assim não for, com toda certeza perco a manhã e perco a tarde. Não dá pra escrever e leitura nem pensar. Isso é ruim, tanto porque tenho muito o que rabiscar na virtualidade das coisas e tenho muito o que ler, com as obrigações que assumi. Valei-me Senhor! Dia desses até, briguei comigo mesmo e me mandei à sesta à força, sob o argumento de que sou um homem aposentado.
Antigamente, quando chovia fora de hora, como vem acontecendo ultimamente, minha mãe alertava: “É a chuva do caju!”. Isto é, a precipitação pluviométrica que vinha para facilitar a floração do cajueiro e daí por diante a gênese da castanha e da polpa. Mas, era coisa rara, uma aguada aqui e outra ali. O sol presidia o espetáculo dos dias e a praia era convidativa. Toró mesmo era a partir de maio. Em junho e em julho. Nesses meses é que aconteciam as cheias e eu fui um militante desses períodos, com assento na defesa civil de Pernambuco, que tinha o nome próprio de CODECIPE. Nem sei mais como se chama
Aí, na cheia de 1975, me mandaram passar a noite no Palácio do Governo. Fiquei lá fiando conversa a madrugada inteira, até que um engenheiro veio falar comigo: “Ei, você ai que fala muito. Você pode me ajudar nesse caso? É que há dois soldados guardando o leite, um deles não dispensa uma lata quando passa pelo depósito. O que faço?”. E eu, do alto de minha prosopopeia, disse: “Coloque um tomando conta do outro, enquanto um segue para a direita o outro volta pela a esquerda.”. E assim foi! Não desapareceu mais nada! Foi um santo remédio. Quando o dia estava pra amanhecer, um camarada chegou e me comunicou: “Você vai pra Limoeiro de helicóptero. Ordem do Governador.”. Pois diga a ele que eu não vou de jeito nenhum, porque não confio nessas gerigonças velhas que há por ai. E não fui!
Mas, há uma revista médica do século XIX, na qual há um estudo das temperaturas e das precipitações no Recife, sem falar na umidade e em outros dados interessantes. Escrevi sobre isso, citando inclusive que em 1943, o ano do estudo, em nenhum dos dias do ano a temperatura passou do 30°C e habitualmente o calor da cidade tem apontado números semelhantes a esse ou quase isso. Agora não, porque o tempo é da Primavera e as ocorrências do Inverno.
Pior tem sido em SP, onde está morando uma filha, um genro e um neto: não há água nem pra se lavar! Estou atento por aqui a essas injunções da natureza na terra da garoa, mesmo sabendo das rusgas com o Nordeste do Brasil. Mas isso é coisa antiga, vem desde o tempo das grandes valsas e eu, morando por lá nos anos setenta, lembro quando indagavam: "Pelas ruas do Nordeste anda cobra?" E a resposta: "Anda, claro, mas só morde paulista.". É isso ai! Um médico anestesista do Rio Grande do Sul, convidado a vir ao Recife, para fazer uma conferência, disse: "Não vou a essa terra de merda!". Não venha! Melhor assim!
 
(*) Um texto bem humorado escrito sobre chuvas e cheias, mudanças edáficas e outras mudanças, como essas de agora, as do aquecimento global.
 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Os meus 70 anos

Esse negócio de fazer 70 anos é uma coisa meio diferente. Primeiro, porque o baque físico é notório e o penitente vai se sustentando a duras penas, pra não cair de vez. Eu mesmo faço Pilates duas vezes por semana e tome alongamento pra lá e pra cá. Faço aqui perto, no chamado ETC, uma espécie de shopping de bairro, mas um conjunto de lojas e de escritórios bem arrumado e bem disposto. Chego cedo, ai pelas 8 horas ou quase isso e tenho acesso à vaga de velho. Além da cara e da coragem, um documento grande com a palavra IDOSO me assegura o direito. Vejam só! Claro que ando de esteira elétrica todos os dias, chova ou faça sol e vez ou outra vou ao parque da Jaqueira, onde circulo com desenvoltura, ainda.
Só esqueci – aos 70 se esquece de tudo ou de quase tudo – de ir ao banco dizer que estou vivo, um compromisso que garante a aposentadoria a cada mês. Pelo geral, tenho comparecido aqui em Casa Amarela e quando o caixa me chama, com direito a ficha de idoso, comunico que vim dizer que estou vivo e bulindo. E assim vou recebendo o trocado a cada fim de mês ou começo do mesmo período. Mas, tem essa vantagem, a de não ter mais pudor com a idade, pois que antes, quando começaram a me convocar para essas prioridades do tempo, eu ficava meio brabo, negando os cabelos brancos. O meu bisavô e o meu avô paternos morreram aos 55 anos, pelo que já passei há muito dessa maldição.
A verdade é que a última crônica, a da idade, mereceu muitos comentários, alguns (poucos) no espaço mesmo do Blog e a maioria em mensagens de e-mails, como cabe ser com a modernidade das coisas. Uma irmã que sempre comenta as minhas crônicas, Maria Eliana, disse:
Geraldo: Aí está por você bem explanado. A gente ia vivendo sem pensar que as idades avançavam....E o tempo corria e corre para todos. Você sempre foi vitorioso, até na cirurgia em tempo de tantos e quantos avanços da Medicina. Eu estou em minha SOBREVIDA. Nunca havia pensado nesta sinistra palavra, já comemorando 4 anos no próximo dia 22 de novembro. Vamos que vamos.......quem sabe a Medicina avance mais ainda e o tempo de vida se prolongue. Escreveu muito bem. Abafei pensamentos e enfrentei a realidade... Bjss 
         É isso ai! Não sei se desejo prolongar o meu tempo neste mundo de Deus. Depende de meu estado, físico e psicológico, daqui a 10 anos. Será? Ninguém pode dizer se vai viver mais esses anos todos! Ainda tenho muito a fazer, essa é que é a grande verdade. Cada vez mais aparecem informações para que eu escreva e publique. Bom que tenho onde divulgar os meus artigos. Agora mesmo escrevo um ensaio sobre o meu bisavô, Vicente Ignácio Pereira, que foi médico no Rio Grande do Norte e escreveu um trabalho sobre Cólera. Pois esse ensaio terminou chegando em minhas mãos. Foi minha mãe quem guardou! E eu escrevo sobre isso!
         O meu colega de Universidade e vizinho de praia, onde fiávamos conversa e ríamos às bandeiras despregadas, figura que também comenta com frequência as minhas crônicas e que mudou agora a forma de se identificar, comentou: 
Bem disse Manoel Bandeira, em seu Evocações do Recife, ao referir-se à casa de seu avô: "...tudo ali parecia impregnado de eternidade". Mas, apenas, parecia. Para a criança, o tempo é o momento vivido. Somente ao nos aproximarmos do destino inexorável dos vivos, percebemos que ele caminha junto conosco. Mas esqueça isso. Continue vivendo sua vida vitoriosa. Ela tem sido profícua. Sou seu colega da equipe 70. Meu fraterno abraço. Silvio A. Costa (nova forma de me identificar) 
Eu também tinha grande ligação com o meu avô, mas não tinha essa veia de Bandeira, para cantar em verso o que sentia em sua casa da rua Montevidéu, 77, de cuja agonia demolitória fui testemunha. Derrubam as casas e ninguém indaga se há quem tenha lembranças guardadas naquelas paredes. E eu não a fotografei!

domingo, 19 de outubro de 2014

O meu tempo e os novos tempos

Eu não tinha feito ainda 70 anos de idade, como recentemente aconteceu (4 de outubro) e só agora estou refletindo sobre essa nova condição etária. Quando era mais novo, confesso, nunca parei para pensar na minha sétima década de vida, nunca. O ser humano não pensa nisso, vai vivendo, vai vivendo e quando menos espera a idade avança ou a idade chega. Nos anos da infância não havia tempo para imaginar esse futuro tão distante. As brincadeiras e os deveres ocupavam as horas todas. E na juventude também não, porque o ofício tomava conta dos dias, era um vaivém danado e a cabeça tinha que se dedicar à família, aos estudos de atualização e aos caprichos das injúrias orgânicas.

Ontem voltava para casa com minha mulher e conversávamos sobre as mudanças todas do mundo. Tudo mudou, disse ela, referindo-se ao que vimos de transformação nesse mundo de meu Deus. Saíamos de uma padaria, onde tínhamos feito um lanche, a título de ceia. Isso não havia no Recife do antes e hoje está disseminado, com casas especializadas espalhadas pelos bairros residenciais e também nas cercanias do comércio. E os bancos? Deixaram a condição anterior de estabelecimentos personalizados para se tornarem comunitários. Hoje, as máquinas assumiram as funções dos antigos bancários, que estão resumidos nos interiores das agências a consultores e captadores financeiros.  

Foi ela quem lembrou outra mudança nos hábitos e nos costumes da cidade: o tipo de moradia. Agora, mora-se em apartamentos, conjuntos habitacionais que juntam de uma só vez, quase cinquenta famílias. Mas, não existe mais quintal ou não se brinca nas ruas, como sucedia outrora. Até a geração de minhas filhas isso era possível, porém o tempo e a violência mudaram esse comportamento. Não se pode mais! E o extraordinário desenvolvimento da técnica, em todos os sentidos. Eu, por exemplo, fui operado da coluna pelas mãos maviosas do Dr. Geraldo Sá Carneiro – o Dr. Geraldinho – e duas hastes de titânio foram postas em minhas costas e eu estou andando e bulindo da melhor forma. Hei de comemorar os 10 anos de operado a 4 de maio!

É! A expectativa de vida aumentou! Gente como eu já poderia ter morrido, se a técnica não tivesse alcançado o ponto que alcançou. Os exames estão cada vez mais sofisticados; as tomografias e as ressonâncias têm acesso a tudo e mais um pouco. A Tomografia por Emissão de Pósitrons (o Pet Scan) revolucionou a oncologia e hoje se pode muito bem, não apenas diagnosticar, como também fazer o estadiamento do tumor. Os meus cadernos do último ano de medicina não servem mais pra nada, estão defasados, desatualizados. Nada se aplica mais!

Imagine o leitor como ficará um doente do estômago hoje, depois da invenção da endoscopia. Não fará mais a radiografia do órgão, uma seriografia, como se dizia antes. E ninguém terá mais o trabalho de identificar uma úlcera a partir da imagem de uma chama de vela. Nem vela se usa mais! E os stents cardíacos, que permitem uma sobrevida que não se tinha no passado, mesmo com as pontes?

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Perpétuas Lembranças

Quando o sol vai raiando no horizonte, em dias assim, de nuvens nos céus e chuva no chão, por aqui já me alevanto e sendo um domingo, como hoje, depois da leitura dos jornais, tenho tempo para os meus sonhos. Vejo no monitor a pureza virginal do editor de textos e enxergo n’alma os meus sentimentos e as minhas saudades. Descortino os anos e as décadas que se foram, encantados nas brumas das lembranças e vou preenchendo este vazio com vocábulos e frases que se juntam e se abraçam quase, para exprimir de meu imaginário os devaneios.
Os velhos de minha infância morreram todos, carregaram com eles os afetos com que me tratavam e não deixaram o derradeiro afago. A minha avó paterna, Beatriz de prenome, gorda e matrona, escondia as peraltices com que preenchia o meu tempo de menino. A tia velha, Deolinda, nascida na noite de Natal, zangava-se quando se dizia que tinha a idade de Cristo. E a tia mais nova, viúva e mártir das imolações de um filho deficiente, não concordava com certos e fortuitos amores domésticos, mas nunca denunciou as cenas que testemunhara.
O meu avô, com o seu cabelo cor de prata, levava açúcar-cande nas manhãs de domingo, prometia o pavão dourado a quem raspasse o prato, mas nunca trouxe essa ave imaginária. E a minha outra avó, Laurinda, como se chamava, não teve mais tempo de me oferecer um retrato de meu bisavô, de quem tenho a sobrancelha, dizia. Agora, o denso traço negro de minha fronte esvaneceu, perdeu a cor e o viço, nada mais representa de genético ou de hereditário. Os meus tios e as minhas tias se despediram da vida, em maioria e estão nas distâncias infinitas, na outra dimensão, então.
E o meu pai, que me viu nascer e crescer, que assistiu o meu desenvolvimento pessoal, também se encantou, foi morar nos confins eternos. Quase posso dizer que se despediu de mim, naquela noite derradeira de tanta insônia e tão sem graça mais. Tinha o que me dizer, ainda, mas deixou para um vespertino encontro, de cuja impossibilidade não foi culpado, entregou-se antes. Nada posso imaginar das suas intenções no aprazado diálogo pra logo mais, à tarde, senão algum comentário sobre as minhas crônicas neste JC, como costumava fazer. Não use esse advérbio ou esse adjetivo, poderia ser! Quem sabe?
Desapareceram, da mesma forma, as pessoas com as quais convivi em criança, os amigos de meu pai. Todos ou quase todos! Sylvio Rabelo e seu irmão, Dácio de prenome, Mário Melo e Gilberto Osório, o mestre Ascenso Ferreira, um grandalhão, com um chapéu de abas largas e um vozeirão de arrepiar, com medo das caiporas: “...Ali mora o pai da mata/Ali é a casa das caiporas...”. O padre Sales, camareiro papal, celebrante agoniado de quinze minutos, somente, sentado no alpendre de casa a discutir e debater o embate eleitoral na faculdade, tornando-se diretor por dois mandatos, orgulhoso do cargo de Deão.
E os mais simples convivas, aqueles das ruas e dos becos, dos labirintos da vila da tecelagem, em cujas ruelas experimentei o lúdico desse exercício do existir? Penso que se foram, em grande parte, viajaram, definitivamente, para as moradas eternas! Onde estará o cantor das calçadas de meu bairro, Sabará por apelido, que entoava em voz sonante: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco encontrar/Aquela ingrata...”? Seria essa a razão de suas incursões etílicas? A perda de um amor? Chorava assim a ingratidão que sofrera? Talvez sim ou talvez não!
O seu Pedro da banana cortou uma perna, do homem que vendia laranjas num saco de açúcar, não tenho notícias, tampouco do mascate, com a sua carroça de um azul desbotado, preenchida por gavetas, nas quais trazia a linha de cozer e o novelo do croché de minha avó. Do homem da galinha, a cavalo, com dois caçoas repletos dessas penosas sabáticas, sequer imagino o destino. E o vendedor de amendoim, com a farinha saborosa embalada em cônico invólucro de papel de embrulho? Não sei! Essa gente fez parte de minha vida e desapareceu por encanto!
Mudaram os atores e trocaram os cenários! Vou fazendo a minha parte, somente!

(*) Um texto muito antigo, um tanto nostálgico, lembrando das pessoas com as quais convivi e que se transferiram para as distâncias eternas. Confesso que sou favorável àquele escritor - creio que Origenes Lessa - que insiste em recomendar como pano de fundo da escrita o sofrimento. Já escrevi bem, quando sofria, agora que não tenho sofrido mais está difícil criar. É o que sinto!
 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Globalização e cultura

Na perspectiva das mudanças todas que o mundo experimenta e dos danos que já está trazendo no campo social, há o risco que poderá trazer à cultura e às artes. Imagine o leitor as consequências da veiculação da produção intelectual de países desenvolvidos no combalido Terceiro Mundo, tão desprovido, já, de recursos no campo do humanismo! Se as coisas partissem dos berços que forjaram a civilização e permitissem o conhecimento das obras clássicas, por exemplo, no campo da literatura e da música, como da pintura e da escultura, por certo, os ganhos estariam garantidos! Mas, se a importação cultural predominar, como se pode esperar, na ótica de países diferentes, novos, embora postos no patamar dos desenvolvidos, numa tentativa de difundir o que se chama de pop e outras denominações do inteiramente estilizado, vai ser o caos! Globalização, entretanto, não deve ser sinônimo de uniformização e não é preciso, pois, perder a identidade para partilhar da pós-modernidade!
As inúmeras antenas parabólicas no interior de Pernambuco representam, ao que parece, uma antecipação do processo de mundialização da cultura, uma uniformização nacional, já, em tudo não desejável, haja vista as diferenças significativas entre as regiões do Brasil. Ora, dia desses, em cidade do Agreste, distante três horas, se muito, do Recife, ouvi uma indagação a propósito da Capital e à minha resposta, o interlocutor de ocasião desculpou-se: "Não assisto mais os canais locais!". E não se assiste, mesmo! Antes, o receptor das casas interioranas e do nosso mais do que belo arquipélago de Fernando de Noronha captam sinais de outros estados, quando não transmissões alienígenas! Dessa forma; podem manter contacto com o resto do mundo e ignoram os acontecimentos próximos! Lembra um pouco os tempos do antes, de uma censura velada às emissoras de rádio e de televisão, quando se procurava a sintonia estrangeira para se ter o noticiário negado na prática. A diferença do hoje é o estado democrático em que se vive, se pensa e se escreve, até! E mais fácil, então, admirar o samba e a música da Bahia ou o Boi do Pará, que o Frevo de Bloco!
Certas manifestações folclóricas, mesmo que herdadas da colonização, como as quadrilhas de São João, que encantaram a vida de tantos e serviram para o encontro de muitos, surgem na telinha da forma mais estilizada possível, com ritmos diferentes e roupas adaptadas ao tempo da metamorfose! O Carnaval fora de época, também, chega como se fosse a indústria da baixa estação, enche a Av. Boa Viagem de trios elétricos, que tocam, da maneira mais ensurdecedora que já se viu no Recife, acima de todos os decibéis suportáveis, músicas que fazem sucesso em Salvador. Há, por trás de tudo isso, um esquema comercial de fazer inveja a qualquer negociante da cidade, com a indumentária nomeada por estranho vocábulo - "Abada" -, sendo vendida a prestação e representando a senha para a entrada no respectivo trio. E a rapaziada compra, se compromete e paga, depois desfila ali, entre os seguidores do "Recifolia". O "Axé Music", que mistura um pouco de tudo, faz sucesso, pois, na capital do forró e desbanca a sonoridade melodiosa de Nelson e de Capiba, pelo menos por uns dias!
Ora, nestas paragens em que pontificou e pontifica gente da melhor estirpe, entre escritores e poetas, os quais cantaram a beleza dos rios e a grandiosidade das terras, além dos amores e das dores, em prosa e verso ou nestas paragens de compositores e de pintores, de produtores da sétima arte, premiados, sempre, não se pode apagar a chama do inteiramente humano! É necessário, sobretudo, estimular a criação, fazer como, recentemente, fizeram a Prefeitura da Cidade do Recife, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Colégio Contato, de cuja junção de forças nasceram três prêmios, também, para o cinema pernambucano. Ou é preciso fazer como acaba de propor a Companhia Editora de Pernambuco à UFPE, a reedição de um volume no qual estão as principais riquezas do folclore, à semelhança da iniciativa anterior, do Voz Poética, um conjunto no qual estão Ascenso e Manuel Bandeira, Cardozo e Mauro Mota, Gilberto e João Cabral, além de Olegário Mariano, declamando amores. E os cantadores populares, repentistas do mote, que nas feiras improvisavam o verso? Estão sucumbindo à força das novidades do tempo!
É necessário, também, resgatar as velhas estórias contadas pelas nossas avós, substituídas - que pena! -, pelos desenhos animados e as cantigas de ninar, que embalavam as crianças de colo, no entoar de loas assim: "Geraldo vá dormir/Que eu tenho o que fazer/Vou lavar/Vou engomar/A roupinha pra você/Esse menino não é meu/Me deram pra eu criar/Obrigação de quem cria/É menino acalentar".

Um texto de meu recente livro - Textos esparsos, crônicas dispersas -, escrito há muitos anos e guardado por minha mãe, que cuidou em arquivar tudo, dando-me de presente uma quantidade grande de crônicas e de artigos, os quais pude reunir em volume que lancei faz menos de um mês.

sábado, 27 de setembro de 2014

Uma babá sofrida

Eu me surpreendo, às vezes, pensando que a justiça divina nem sempre funciona de forma adequada. E isso vem me incomodando de uns dias para cá, depois que vi uma mulher adoecer, em plena juventude, acometida por um câncer aos 31 anos de idade. Uma pessoa que não fazia mal a ninguém, que vivia seu cotidiano de forma singular, pois que sendo moradora da Ilha do Maruim, habitando um casebre insalubre, nunca deixou de cumprir com as suas obrigações, nunca deixou de trabalhar da forma mais ávida que se puder imaginar, fosse como babá ou como simples faxineira.

Foi babá de meu neto Pablo, sendo mais do que cumpridora de seus deveres, porque se mostrou extremamente afetuosa, dedicando-se à criança como se fosse uma segunda mãe. Mulher que se despediu dele, de Pablo, quando viajou para São Paulo, chorando um pranto saudoso e recebendo dele um forte abraço, de quem talvez antecipasse um adeus que não gostaria que acontecesse tão cedo. Passou a ser a faxineira de minha casa e arrumava a minha biblioteca de tal forma bem, que os meus colegas a tratavam por bibliotecária. Era capaz de localizar um livro ou um trabalho impresso com a facilidade dos que fazem as coisas com amor.

Pois é, doente, fizemos tudo por ela! Fomos buscar a melhor assistência do SUS, nas dependências do IMIP. E ela foi fazendo os exames e piorando, até que conduzida ao Hospital Miguel Arraes, obteve ali uma atenção médica de primeira qualidade. Mas, não houve como resolver o caso! E as minhas indagações existenciais passaram a me incomodar mais e mais. Não, não é de Deus essa desejada misericórdia! É dos homens, dos governantes a obrigação de assegurar às pessoas os meios necessários à sobrevivência de todos. E, infelizmente, a sensibilidade dessa gente passa longe. Só lembram do próximo quando as eleições se aproximam e não garantem, sequer, os meios necessários à prevenção dos que estão nesse banquete da existência terrena.

Uma coisa é pertencer às elites econômicas no Brasil e outra é estar dentre os que precisam e são desvalidos. Essa gente há de pagar pelo descaso com os outros na eternidade das coisas, já que por aqui não se submetem sequer ao judiciário.
 
(*) - Texto escrito há cerca de 15 dias, quando a babá de meu neto Pablo e ultimamente faxineira de minha casa se ultimava no Hospital Miguel Arraes, onde, aliás, teve toda assistência possível. A crônica, publicada no Jornal do Commercio a 20 desse mês corrente, é a expressão da minha revolta, diante da falta da mnecessária prevenção para toda gente neste País infestado de corrupto. Se Jaislane Tertuliano tivesse acesso a medidas dessa natureza, precoces e efetivas, não teria fechado os olhos ontem, 26 de setembro.
 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Prefácio - Textos esparsos


 


José Arlindo Gomes de Sá(*)
 

Com a cunhada
 O homem nasceu para a eternidade e não obstante o silêncio, a ausência, a aparente escuridão do túmulo, ele perfura todas as barreiras do tempo, num desafio vitorioso sobre o finito. O poeta do acontecimento é assim: perene, porque consegue permear o que escreve daquilo que existe de eterno em si mesmo. Cabe a nós sabermos deixar florescer o cronista como se fossemos tão-somente uma terra arada pela própria vida que não retêm em si a semente, mas que oferece condições para a roseira florescer e desabrochar. Geraldo Pereira sempre esteve entre nós, presente nas suas crônicas qual semente latente na nossa terra. Hoje, aflora em sua plenitude nessa produção literária cuidadosamente preservada. E nós, certos de estarmos cumprindo passo a passo o compromissoPREFACIO com o nosso tempo, mas também como nossa gente, somos apenas a terra arada pela vida em favor dos frutos nordestinos. 



Geraldo Pereira sempre viveu na capital e esses Textos Esparsos me trouxeram
 

recordações gratas, que as páginas escritas me avivaram como um sopro em cima de brasas quase extintas. Ao descrever uma visita a uma cidade sertaneja à margem do rio São Francisco, na crônica Os encantos de Petrolina, me veio à memória, lá pelos idos de 1972, o dia em que eu estava atarefado no trabalho cotidiano da Fundação SESP em Floresta, minha pequena cidade pajeuense e navieira, quando alguém anunciou em tom solene: "Está aí um senhor que quer vê-lo. Ele deu a entender que se trata de um assunto muito sério". Qual não foi minha surpresa ao avistar Geraldo Pereira com a tão conhecida matreirice nos corredores da faculdade! Refeito do sobressalto e da satisfação do reencontro, ele me revelou o objetivo de sua passagem por ali nos carrascais do rio Pajeú e do riacho do Navio: "Vim conhecer a serra do Umã, onde os índios estão adoecendo de leishmaniose".
Fátima, eu, Geraldo e sua  filha Patrícia Pereira. Se o autor tem lastro literário e é reconhecido como escritor, crônicas suas consideradas mais significativas, pelo assunto e pela qualidade estética, são selecionadas para virar livro, como é o caso destes Textos Esparsos. Para Geraldo Pereira, a crônica vem sendo ao longo dos anos, sua forma de testemunhar acontecimentos da vida do seu cotidiano, de pessoas anônimas ou dos familiares que cruzaram seus dias de filho, irmão e amigo atento, além de reminiscências da meninice, do estudante e do professor, um tipo de vida que se tornou visível pelas suas poesias dos acontecimentos, seja no lirismo das ruas da infância e da adolescência, seja no ambiente da magnificência da Reitoria da UFPE. Ele busca a inspiração de seus textos na memória e, principalmente, na observação direta do cotidiano, onde se dá, concretamente, a experiência humana.
Foto: Patrícia, Júlia, Zaina, Carol e eu.
A minha neta, as filhas, a esposa e a
cunhada
 Em alguns momentos lembra o inconfundível Luiz Fernando Veríssimo com seus toques de humor e acaba provando que, sim, a vida pode ser lida e vivida ao mesmo tempo. Em outros, revive um dito de Manuel Bandeira: "Nunca brinquei com os moleques da rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo". E Rubem Braga, que abordava os assuntos do dia-a-dia, falando de si mesmo, de sua infância, de sua mocidade, impressões de caminhadas e assim impregnava tudo que escrevia de um grande amor à vida, a vida simples, não sofisticada. As crônicas Vazio ecológico e Globalização e cultura tem esses atributos. Há décadas que Geraldo Pereira vem desempenhando o ofício de cronista, razão pela qual esses textos redigidos de forma livre e pessoal vinham sendo zelosamente colecionados como preciosidades por sua mãe e que somente vêm à tona agora para surpreender, divertir e deleitar a nós leitores.
Academia Pernambucana de Letras. Identificamos a variedade dos assuntos, sem que se mostre superficial; o conhecimento dos temas, mesmo os que não estão relacionados com o médico e professor emérito; a linguagem límpida, simples e moderna; a agudeza da observação psicológica; a perspectiva social; a nitidez das imagens e o ímpeto raciocinante.
Eu com minha cunhada Zaina Pereira e o casal Arlindo e Tânia.
Mª dos Anjos, Zaina, Zé Arlindo
e Tânia
 Há, também, nesta coletânea, histórias pitorescas e belas, episódios cômicos.E, neles, o autor ri de si mesmo. Essa atitude sinaliza a maturidade do escritor. Somente uma pessoa muito segura de si mesma, de sua arte de escrever e de sua serenidade, tem condições de se expor ao leitor, revelando inclusive suas fragilidades. Fica ao alvitre do leitor descobri-las em crônicas como estas: Uma alameda da saudade e Exílio de sentimentos. 




Enluarado pela magia e apaixonado pela fauna e pela flora do meu sertão, li e reli com prazer uma crônica emblemática: Asa branca. Luiz Gonzaga cantou este pássaro pelo simples fato de que ele representa a saga dos retirantes da seca do Nordeste, mas, na minha opinião, a ave mais representativa das terras sertanejas é o casaca-de-couro. Não sou o único a defender a preferência por esta ave. O poeta Carlos Severiano Cavalcanti, em seu belíssimo livro Sertanidade, fez com maestria esta glosa: "Casacas-de-couro em bando \ Fazem festa no sertão". Ao escrever que "escutar a ave canora, \ poetisa do braseiro, \ com o canto condoreiro, \ nossa tristeza minora", ele está se referindo a única ave que gargalha que se conhece. O casaca-de-couro encanta pela sua penugem semelhante à vestimenta do vaqueiro. É comovente acordar no sertão com seu canto orquestrado. A sensibilidade fica aguçada neste momento que emociona porque, ao contrário da asa branca, que bate asas do sertão, o casaca-de-couro permanece alegrando o nosso viver sofrido durante a estiagem. E então, ouvi também o canto, o gemido, a voz, o berro, o gesto do sertanejo rasgando os ares dos carrascais na leitura da crônica Um nordestino sofrido. Em Uma sociologia da madrugada me fez lembrar e sentir o cheiro que vinha da padaria do beco do Pajeú, quando seu Amaro saía, ainda no primeiro clarão da barra, oferecendo seu produto, rua abaixo e rua acima: "Olha o pão quente, queimando a gente rapaziada! Olha o pão de seu Amaro!"

Os textos de Geraldo Pereira passam pelo tear de acurada sensibilidade, com fusos tecendo os encantamentos. Portanto, a mim, como colega que teve a felicidade do seu convívio, com a permissão que me foi concedida de prefaciar os Textos Esparsos, só me resta recomendá-los com o mesmo zelo de quem os conservou por muito tempo no baú das coisas inseparáveis.

(*) – José Arlindo Gomes de Sá é médico, poeta, Presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de Pernambuco

sábado, 6 de setembro de 2014

Textos Esparsos - Apresentação

Este livro traz de minha mãe o carinho; o carinho porque está composto, todo ele, por crônicas que foram guardadas por ela ao longo de muitos anos, de décadas. Eu sabia que ela tinha esse cuidado com os meus textos, que eram publicados no Jornal do Commercio do Recife. Mas, não sabia que tinha tal quantidade de artigos, que poderiam resultar até em livro. Nem ela própria tinha essa impressão, a de que esse material assim arquivado serviria ainda para uma publicação que reunisse todo esse esforço, mais dela que meu.
Pois é, amigo leitor, a minha mãe (Lila Marques Pereira), encantou-se em 2013, no mês de agosto, de todos os azares. Já tinha 94 anos na conta das gentes com quem viveu. Passou 4 anos – longos anos – acamada, sob o cuidado sempre muito próximo da filha mais nova, minha irmã caçula, mais nova que eu 10 anos, Fátima de prenome. Foi Fátima quem desarquivou tudo isso e me enviou numa grande caixa de papelão. Quando fui revisar, encontrei muita coisa que não tinha ainda divulgado em livro e resolvi enfeixar nesse volume que ora vai a lume.
São crônicas, muitas delas com humor, porquanto o meu estilo de escrever contempla sempre a graça e as frases engraçadas. Mas, tem o sério, o reflexivo, o contemplativo, seja pelas palavras que dediquei à minha mãe, sobretudo nos anos fechados de sua vida, aos 70 e aos 80, mas também as minhas dores quando de seu encantamento, seja pelos textos escritos com a reflexão social de que me tomo, diante das grandes questões da minha gente, de meu povo. Entendo que um espaço de jornal, capaz de acolher o texto de quem teve acesso às letras e à cultura, mesmo que insipiente, não pode ser desperdiçado e precisa atender aos relamos da sociedade.
É um livro, pois, dedicado à minha mãe e de certa forma escrito por ela, porque sem ela não teria o prazer de lançar o volume.
 
 
(*) Esta é a Apresentação de meu livro - Textos Esparsos-Crônicas Dispersas -, que será lançado brevemente, a 11 de setembro, a partir das 19 horas, na Academia Pernambucana de Letras. Um volume que está dedicado à minha mãe, pois que foi ela quem colecionou as crônicas assim publicadas. Com esta Apresentação, reforço o convite aos leitores do Blog, aos familiares, aos colegas e aos amigos. Espero a todos nessa noite de convívios e confraternização.
 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Uma Sociologia de Bairro

Com atenciosa e até afetuosa dedicatória, recebi de Evaldo Donato e Paulo Caldas um livro escrito a quatro mãos: No Tempo do Nosso Tempo - Uma Volta aos Anos 60. São crônicas que retratam a juventude de Água Fria, na sexta década do século XX, abordando a intensa convivência ali, em subúrbio distante, ainda, naqueles anos das grandes revoluções dos costumes e dos hábitos, das mudanças, enfim, a transformarem e a transtornarem, até, o povo pacato do Recife e do mundo inteiro.
 
A leitura dessas evocações, de jovens que viveram, intensamente, o tempo de ouro da existência humana mostra, claramente, o quanto houve de marcante em interregno tão pequeno de tempo! Capítulos de uma sociologia do arrabalde, tomado pelas modificações trazidas no pós-guerra e influenciadas pelos movimentos contemporâneos que fizeram o mundo mudar sob todas as óticas, derrubando tabus e quebrando regras, flexibilizando,então, o comportamento. Há reminiscências, como expressa a dedicatória, que ultrapassam o simplesmente individual, para assumirem papel diferente, o das lembranças de uma coletividade; de uma geração toda.
Foi assim que me lembrei dos automóveis que circulavam na cidade, do antigo Nash e da Rural, como do velho Jeep e do Gordini ou do Sinca Jangada, encantando a gente nova com a modernidade das linhas! E o Candango, rústico e grotesco! Mas, lembrei, sobretudo, dos jornais de bairro ou de rua, que circulavam mimeografados, manifestando, já, algumas vocações que se tornariam depois, senão jornalistas do batente, escritores bissextos ou cronistas, a ensaiarem com o cotidiano da vida, a voz do espírito, que não cala, quando a saudade emerge! Foi dessa forma que comecei a escrever, uma singela publicação de meu lugar, usando pseudônimo diferente, o meu sobrenome ao contrário: "Arierepe". Nem sei mais do nome daquele conjunto de páginas que circulavam a intervalos incertos e muito menos dos meus escritos! O que diziam ou o que expressavam!
Há detalhes, todavia, mais que interessantes, como aquele do Livro de Ouro", que circulava, de mão em mão, buscando assinaturas dos remediados da rua , para angariar fundos e financiar o time de futebol. Ou da rifa, que tinha papel assemelhado e permitia aplicar os recursos na chuteira e no padrão de camisas, na bola de couro nova e nos unguentos, que bem massageados traziam de volta a força do chute a gol ou a defesa bem feita do goleiro dantes machucado. Ou serviam para custear o pavilhão do clube, bordado e rebordado por costureira de nome! E as turmas se organizavam assim, em jogos de todo tipo, incluindo, como está no livro, as partidas de botão, disputadíssimas, reunindo a muitos em torno de um campo bem encerado. Peças fabricadas, algumas, na Casa de Detenção ou forjadas no torno, diretamente, pras bandas de Paulista, quando ficavam mais apropriadas ao drible e à finalização da jogada ou os botões de capa, vendidos no centro urbano, submetidos a uma operação que os tornasse mais presos à madeira e assim pudessem mandar ao filó a bolinha de cordão bem enrolada.
 
E as festas de todos os tipos? O Carnaval e o São João, o Natal e o Ano Novo! Ou os assustados, que marcados com a antecedência necessária, juntavam meninos e meninas, rapazes e moças, proporcionando os encontros e assinalando começos. Dessa maneira me iniciei por cá, com a musa dos meus dias de hoje, em aniversário de casa, com a mesa decorada pelo bolo confeitado e as garrafas de guaraná Fratelli Vita dando um toque regional ao inteiramente universal, a aproximação das criaturas. Beijos que foram roubados num rodopio qualquer na sala de visitas, de jantar também, pactos selados há mais de trinta anos pra trás, que resistiram ao tempo e vão marcando a sucessão da existência, na vida de mais três, que estão virando seis. Três filhas: Fabiana, Patrícia e Carol! E ninguém pode reclamar da falta de histórias, nesse recesso que é o meu lar.
Muito grato aos autores.

(*) Um texto antigo, incluído em livro a ser lançado muito, brevemente, no dia 11 de setembro, na Academia Pernambucana de Letras, reunindo crônicas que foram guardadas por anos a fio por minha mãe. Trata-se de um artigo criado depois que os autores me enviaram um exemplar. Lembranças de velhos costumes e de antigos objetos, a exemplo dos botões de mesa, alguns de chifre, torneados ou não, e outros de capa.