quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Desrespeito à Autoridade

Trabalhei como médico de um Sindicato de trabalhadores e cheguei a ser Diretor do Serviço. Outros colegas, inclusive alguns – dois para ser preciso – que são leitores deste espaço, foram também funcionários dali, sendo um desses diretor, também, por um período. Havia uma convivência fraterna, pois nos encontrávamos fora do ambiente de trabalho, sobretudo às sextas-feiras, quando reuníamos o Bataclan, um pretenso clube voltado aos acepipes – camarão e lagosta –, degustados ao sabor de uma cerveja bem gelada. Vez ou outra, na casa de um colega designado, havia uma partida de dominó e ríamos às bandeiras despregadas. Na verdade, Bataclan era um nome emprestado de uma novela da Globo, tendo um sentido completamente diferente do nosso, vez que era o nome de um cabaré. Conosco havia uma pureza primitiva ou uma quase inocência.
Mas, o cotidiano era um número, pois driblávamos a vigilância, ombro a ombro, do Presidente, o Sr. Luiz Galhardo (nome fictício). O homem vivia prestando atenção a tudo e a todos, me chamando por qualquer razão. Certa vez, tendo passado por um consultório fechado, ouviu o típico e insubstituível ruído das pedras de dominó. Mandou, então, me requisitar e o fez enfurecido. Eu já sabia da reação e fui matutando uma saída. Sabendo que o homem cultivava certos hábitos conhecidos nas rodas da malandragem como taras, inventei uma história. E expliquei: “É, Senhor Galhardo, os meus colegas estavam discutindo um caso de perversão sexual e o dominó era uma barreira, para que não fossem ouvidas as considerações.” O homem ficou curiosíssimo, queria porque queria detalhes e eu com a minha habitual matreirice, apenas repetia: “Desculpe! Mas, é segredo médico!” Não havia nada, nem perversão, nem reunião de discussão. O que havia mesmo era um jogo de dominó para encher um intervalo. E eu cansei de dizer aos colegas: "Nos intervalos joguem! Mas, pelo amor de Deus, não façam barulho!"
Correu à boca pequena que um jovem colega ortopedista ia ser demitido e o motivo era muito simples, costumava andar com a camisa aberta, um cordão de ouro no peito e uma pulseira no mesmo metal no braço. Nesse tempo, o Governador de Pernambuco era um político jovial, habituado a esses adereços também, razão para defender o médico com a alegação de que era necessário que ele, o Presidente, mais habituado com a bajulação que com a reação, pedisse a saída, também , do mandatário maior. Com isso, o Galhardo botou o rabo entre as pernas e desistiu da demissão, mas nunca deixou de marcar o profissional. Foi quando aconteceu de outro ortopedista manifestar o desejo de se demitir. E eu: “Não agora! Você fica na reserva, quando ele disser que precisa demitir alguém, vai você!”. E assim foi feito, não sem a admiração ou a perplexidade do Galhardo: “Fica fulano e sai sicrano?”. Quase não faz! Tinha amizade ao demitido.
Depois, surgiu um novo o boato: eu seria demitido. Aquilo para mim seria péssimo. Eu ganhava pouco, mas o salário me servia, somava-se no final do mês ao que fazia na Universidade e ao que recebia do Estado. Montei uma estratégia junto ao colega Ptolomeu (nome fictício), pedindo que ele entrasse comigo no elevador e dissesse em alto e bom som que eu seria chamado para Secretário de Saúde. É que o jovem Governador estava de saída e outro assumiria, como é natural, sempre. Foi dito e feito. Em certa tarde, entramos juntos: eu, Ptolomeu e o Galhardo. Ptolomeu colocou o braço em meu ombro e disse com sua voz gutural: “Já soube da novidade: você será o Secretário de Saúde!”. E eu, mascarado, como faz qualquer jogador de futebol, sem aceitar bem a afirmativa, não negava. Deu certo, fiquei mais um pouco.
Mas, o diabo é que o gestor estadual decidiu por uma visita do Sindicato, eu fui chamado, porém julguei que seria uma temeridade comparecer e lá não fui. Quando o secretariado foi nomeado, o Presidente não hesitou e atirou forte: “Pensei que o senhor seria Secretário!”. Ao que respondi: “É! Não aceitei! Fiquei, entretanto, na retaguarda e vou orientar todas as decisões do ocupante. Acabo de chegar de Palácio.”. Um tempo a mais garantido! Até o dia em que mandou me chamar urgente e eu disse que tinha vários doentes por atender e assim que terminasse o procuraria. Fui demitido por desrespeito à autoridade. Bolas!

Crônica que vai oferecida ao meu ilustre colega Almir Peter, encantado para o infinito das coisas, Presidente perpétuo do Bataclan. Comentários para pereira@elogica.com.br ou para pereira@gmail.com