quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O Peru Bêbado

Natal de 2008, francamente, foi delicioso. Não poderia ter sido melhor. As duas filhas que moram fora – uma na Espanha e outra no Ceará – encontraram-se aqui, em minha casa e, de certa forma, resgataram a família em sua inteireza. Fizeram como anos atrás costumavam fazer: conviveram. Simplesmente conviveram! Foi uma graça de Deus tê-las conosco, por muito pouco tempo, mas conosco. A mais velha, Fabiana de prenome, trouxe no ventre o filho primogênito, Pablo em espanhol, como convém ser a quem há de nascer em Madri. O porco, que cisca pra frente – e porco cisca? –, deu sustância à mesa e o bacalhau com batatas abriu o jantar bem cuidado. A alegria e o burburinho repetia os anos em que foram meninas e se esmeravam nas conversas e nas interrupções de quase interlúdios.

Já tínhamos cumprido a liturgia que precede a noite, o ritual das antecipações. A festa é boa por isso, pelo movimento dos preparativos, do antes das coisas, do ir e do vir no abastecer da dispensa. Foi sempre assim com a humanidade. Compramos o vinho, recomendado por quem de vinho entende, e o pão das preferências familiares. O queijo chegou de origens diversificadas, do Mercado da Encruzilhada, onde o tipo coalho faz sucesso e de uma loja de todas as finuras do Recife, o de cabra, sobretudo, mas aquele de manteiga também, dos gostos de toda gente, mas proibido no rigor da lei dos impedimentos nutricionais. Castanha do Pará e figo em conserva, mas ninguém dispensou a castanha de caju que de Fortaleza chegou. Acepipe tão nosso, em tudo regional. Um brinde dos convivas selou as afinidades parentais.
Mas o que existe de pitoresco em uma noite de Natal ou nos preparativos da ceia? Lembrei de meu tempos de menino, do peru que vinha como presente todos os anos e de como se engordava e se matava a ave que passou décadas adotada como típica da noite em que o Menino nasceu. O bicho ganhava peso às custas de uma farofa de bolão que se introduzia, goela abaixo, para que o animal pegasse peso e se prestasse, da melhor forma, à mesa. Na véspera, como de praxe, devia-se passar a faca no pescoço do penoso e prepará-lo para o degustar noturno. Isso era um drama, porque o peru não se entregava com facilidade e era preciso oferecer uma dose de aguardente bem calibrada para que durante a bebedeira se degolasse o justo. A minha avó, ciosa de seus compromissos culinários, gritava em voz alta para mim:
- Geraldo! Vá à venda de seu João e peça uma dose de aguardente. Explique que é para matar o peru, senão ele pensa que seu pai vai tomar.

Eu cumpria à risca a recomendação da avó paterna! Mas, essa era uma explicação completamente desnecessária, porque não havia dúvidas quanto à sobriedade de meu pai, dia por dia e hora por hora. Mas, se era para dizer, eu dizia e resposta, francamente, nunca me deram, senão a entrega do copo que oferecia nas mãos de seu Erasmo – dizia minha mãe que era um interessado no estabelecimento –, dele mesmo recebendo, sem delongas. Introduziam a bebida na garganta do bicho e passavam a faca no pescoço. Muitas vezes assisti o animal sair correndo, sangrando e completamente embriagado, trocando as pernas – coitado! –, sem destino, quase se pode dizer. Mas, daí a pouco entregava os pontos e morria, sendo despenado e levado ao forno em recipiente apropriado.
Hoje, tudo mudou e mudou completamente. Inventaram um tender e criaram um chester. Novidades da modernidade, substitutos do porco e suplente, em pleno exercício, do velho peru. Ninguém sabe mais o que é um peru bêbado, sem rumo, trocando as pernas como se gente fosse ou se gente pudesse ser. Ninguém sabe também como é um chester vivo e a esse propósito divulgo a fotografia que encontrei na Internet, de uma ave assim - um chester - vivo e bulindo. Havia quem acreditasse que sendo chester, só existiria morto ou não existiria, digamos.
Mas, dos meus natais todos ficaram os presentes de fim de ano que me dava o meu pai. Dentre todas essas lembranças, nunca esqueci dos passeios à rua da Aurora, à beira do Capibaribe, onde nos debruçávamos no caís e víamos de longe – de muito longe – o Governador na varanda do Palácio das Princesas. Passeios que terminaram, infelizmente, mas que permanecem vivos em minhas memórias. Certa vez, no amanhecer do dia 25, quando os meninos da rua recebiam os presentes da Fábrica TSAP, eu tirava de baixo da cama uma mannlicher – podia se dá arma de brinquedo no Natal –, com a qual dava tiros no nada das coisas. Usava rolhas de cortiça como balas e tinha a força do ar comprimido, mesmo frágil, no acionar do gatilho.
(*) - Crônica de Natal, resgate do meu ontem e do meu pretérito distante, bem distante. Texto que ofereço ao meu dileto amigo Roberto Monteiro, Bob por apelido e coronel por derradeiro, a quem, sem querer, acordei para uma consulta em minha grafia: "Como se escreve mannlicher?". E ele foi de uma atenção e de uma gentileza que só o
tempo de amizade pode explicar. Comente se desejar para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Se não desejar nada comente ou não se pronuncie, mas tenha um Feliz Natal e um Ano Novo de felicidades. Segue também oferecido a Juliana Moroni, amiga aqui das filhas, prestes a viajar para a China. Loura, como está, vai impressionar multidões.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Esculhambação Geral e Irrestrita

Ainda ressoam em meus ouvidos as vozes todas dos meus 40 anos de formado, numa festa sem par, em Suape. Ou as minhas retinas ainda guardam as imagens dos sessentões todos que compareceram, as brincadeiras quase adolescentes e o riso frouxo, solto, como se fosse a sonoridade de um batuque alegre, resgatando pretéritos e renovando esperanças. Que beleza! Os chorinhos vieram comigo em CD da banda e as fotos antigas, algumas com o amarelo do tempo marcando as distâncias, também. Trouxe, da mesma forma, as minhas saudades de toda gente, dos companheiros de uma década mágica, a de sessenta, colegas de sala de aula, convívios e convivências impagáveis, suficientemente capazes de serem assim revividos. Gostei que me enrosquei – lembra a minha avó – das histórias de Ataíde, hepatite por apelido e ataúde por cognome, com uma memória digna de sua juventude. Arre! Diria minha tia velha!
Sentei e fui anotando o que me dizia o homem de todas as memórias, copiei em papel reciclado, como cabe fazer e passo ao leitor condescendente. Contou que o Tampa - de - Chaleira, de quem se ignora o destino, indagado pelo professor de bioquímica sobre a importância do Acetil Coenzima A (Acetil-CoA), respondeu, de logo: “É tão importante que não pode ser dito em qualquer lugar!”. Não precisa adiantar que foi reprovado e condenado à segunda época, como era praxe fazer. O nosso Araripe, desaparecido, de igual maneira, dos encontros, precisava ter retirado o estômago de seu cadáver para ter acesso ao pâncreas, como não o fez, foi interpelado pelo lente de anatomia: “E você ai? Onde está o seu pâncreas?”. Não titubeou: “Professor! Marretaram o meu pâncreas!”. Ora, quem iria furtar o precioso órgão de tão ilustre psiquiatra?
Em certo casamento, ia chegar o “Nego Jomar”, mas avisaram ao porteiro do prédio que o “Sr. Macaquinho” deixaria uma lembrança e como tal deveria ser tratado. No fim das contas, quem chegou foi Sulamita – apelido de um colega e nome de uma professora –, obtendo do nunca atencioso porteiro o recado destinado ao “Nego”: “Obrigado seu macaquinho!”. Foi um deus nos acuda e o convidado negou-se, peremptoriamente, a participar da cerimônia matrimonial, retirando-se em sinal de profundo e grande protesto. Disso, contam, nunca esqueceu! Pior com Albino, na prova oral de Dom Pixote: “Meu filho! Qual o alcalóide derivado da noz moscada?” E ele, inadvertidamente: “Está na ponta da língua e não sai!” O catedrático não perdeu tempo: “Engula, miserável, é estricnina! Você morre!”.
Por fim, o grande mestre Bezerra Coutinho, a um passo do centenário, se vivo estivesse e por aqui viesse, indaga ao nosso psiquiatra Araripe, como já comentei desaparecido dos convescotes habituais, que dormia a sono solto na aula: “Moço? O que é o choque?”. Referia-se à uma das situações mais graves em medicina, aquela da queda brusca da pressão arterial e de um comprometimento cardíaco imediato, assim como risco cerebral indiscutível. E o colega, com a sua inteligência habitual, foi acordando e dando uma explicação a seu modo: “Choque, meu caro professor, é uma esculhambação eletrolítica!” E o pior é que é mesmo, o sódio, o potássio e o cloro, além de outras substâncias vitais, sofrem um abalo mais que significativo na concentração e o caos se instala. Instala-se um desequilíbrio entre os ácidos e os sais do organismo. É uma esculhambação geral e irrestrita.
Arre! Diria a tia velha!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Jia, Ovelha e Pluto.

Na manhã de 8 de dezembro, nos 40 anos exatos da formatura, alguém poderia ter dito, como Carlos Drummond de Andrade: “E agora, José?/A festa acabou,/A luz apagou,/O povo sumiu,/A noite esfriou,/E agora, José?/E agora, você?”. Dessa forma, quase repetiria a paródia do verso, distribuída em 1968 pelo laboratório Carlo Erba, com o prenome do personagem substituído por doutor: “E agora doutor?/A festa acabou/...”. Ninguém disse, porque de nada serviria repetir terminalidades. Antes, todos se reuniram no pequeno auditório para uma retrospectiva dos anos. Assim, o velho relógio foi marcando, com uma foto após a outra, a passagem das quatro bem contadas décadas. Todos gostaram do encontro, e disso reclamação não houve, senão a de Ricardo Fofa – Richard Fofa –, insatisfeito com a carta de vinhos, pois que se acostumou com bebidas finíssimas, por mais de R$ 500,00 a garrafa. Valha-me Deus!
Tudo começou com a celebração levada a efeito pelo padre Francisco Caetano Pereira, interessante figura do clero local, conhecedor de Aristóteles e de Voltaire. Homem versado nos segredos da filosofia e nos meandros da teologia. Falou dos sonhos que preencheram a juventude e da realização de todos ou de quase todos no hoje dos dias. E disse do tempo que se esvai com a passagem do presente; presente, aliás, que precisa ser vivido intensamente, sem dispensar o passado e sem desconsiderar o futuro, que a Deus pertence. Não deixou escapar a pitada graciosa e ao mesmo tempo irônica, das esperas nos consultórios médicos, sobretudo se o atendimento for por ordem de chegada. E é isso mesmo! Ali, naquela sala transformada em templo, de mãos dadas, os maduros concluintes de quarenta anos atrás rezaram aos céus, pedindo paz e amor, como faziam os antigos hippies.
Alguém tomou um velho papel, carcomido pelos anos, e pediu a cada um dos presentes que assinasse, indicasse o apelido e registrasse o endereço eletrônico. Talvez com isso tenha repetido o gesto dos professores de outrora, aos quais nunca se deu o direito de conhecer os jeitos modernos da informática. Baré, de todas as distâncias amazônicas abriu a lista e vieram os demais: Cláudio Catarro e Silvio Histologia, Jacaré e Espantalho, Hepatite e Estrelinha. Mas, quando se pediu o nome e o cognome de Marcelo Macaco, Jia, de pronto, intercedeu, pedindo fosse modificado o apelido para Mico Leão Dourado, haja vista o alvo da cabeleira e o branco do bigode. E assim foi! Pluto se fez presente e acompanhado de Ovelha, de Pato Feio e de Bochecha quase entoam um cântico de despedida, não fosse a ação imediata de Jia, que abriu a boca de batráquio bem criado e deixou nos ares a voz anfíbia das melosas cantigas do passado.
Ataíde, cujo apelido mais forte era hepatite, foi conhecido, também, como ataúde. Homem de uma memória prodigiosa, capaz de resgatar grande parte do discurso de paraninfo do mestre Zappalá, saiu-se com essa:

Marcos (Espantalho), ao tempo de estudante, tinha pouco dinheiro no bolso e por isso, não hesitou em fechar o rombo no sapato com um esparadrapo, cobrindo o remendo com a conhecida tinta Tic-Tac. Vai entrando no clube com a namorada Nina e de súbito pisa numa ponta de cigarro. Dá um salto se defendendo da queimadura e quase não espera a pergunta:
- O que foi isso?
Mas, responde prontamente:
- Muita animação para entrar no salão.
E a festa prosseguiu com Jia se transformando em parasita de Ovelha. Não largava o ovino por nada nesse mundo. Foi a primeira vez que um batráquio passou a viver dependente de um ovino.

E a mulher de Pluto, que cachorra não é, diante de tanta brincadeira e de tanta alegria, expressou o seu pensamento: “É muita vida!”.



(*) - Primeira de algumas crônicas que pretendo escrever, depois da festa dos 40 anos de formado. Experiências do hoje das coisas e histórias do ontem do tempo. O pitoresco dessas passagens, na palavra de velhos companheiros dos bancos de Universidade. Comente, se desejar, para pereira.gj@gmail.com ou para pereira@elogica.com.br Se nao quiser, nada escreva e nada diga. Mas, leia!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Uma Carroça Cheia de Livros


Mestre Ariano Suassuna diz que toda cidade tem sempre um amalucado de plantão. Certa vez disse ao paraibano ilustre, pernambucano por adoção, que vinha usando a afirmativa dele em relação aos bairros do Recife. E é assim mesmo: há um desajuizado em cada esquina. Era dessa forma nos meus anos de menino e continua sendo agora, na maturidade dos meus anos. Aliás, quando eu era adolescente e depois rapaz, no viço da idade, então, existiam por lá, em minha rua, na localidade conhecida como Pombal, limites - já disse isso - da Boa Vista com Santo Amaro das Salinas, pelo menos três desses figurantes especiais e ao mesmo tempo enigmáticos: Sabará, Gata Preta e Piuí. Cada qual tem uma história a ser contada, um fato a ser relatado e uma ocorrência para o riso frouxo do leitor.
Começo por Piuí, que sendo o derradeiro da lista, talvez tenha sido o mais peralta desses todos. Tinha vindo das bandas de Palmares, conterrâneo, portanto, do Papa Berto I, Sereníssimo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Sertaneja. Quando menino, apanhara feito o cão. Costumava dizer que o pai lhe punia com: “Couro, couro, couro, couro...”. Um horror! Gritava em minha porta e pedia o café com pão do desjejum, chovesse ou fizesse sol. Com isso, sentava no jardim e ajudava à babá na alimentação de minha caçula, Carol por apelido. Ameaçava beber a mamadeira e a criança tomava o leite de um gole, quase. Gostava de circo e me fazia pagar a sua entrada ao primeiro sinal de uma lona sendo armada e um palhaço gritando pelas ruas: “Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor!...”. Recebia o dinheiro e assistia do começo ao fim. Depois, cuidava em me contar tintim por tintim tudo o que vira.
Mas, certo dia, chega a noticia de que o nosso Piuí, muito conhecido, aliás, na Universidade Católica, tinha morrido. Fora executado, contaram, sob uma marquise qualquer da rua do Sossego – ah, lugar sem sossego! –, o que fez muita gente chorar e até Missa de 7º dia acertaram com o vigário do lugar. O artista plástico Paulo Brusky me telefonou às lágrimas, citando um artigo que publiquei no Jornal do Commercio. Foi um auê, um fusuê danado! As coisas continuaram no ritmo de todos os dias e numa ocasião qualquer, voltava do Agreste, quando me deparo com a figura na Encruzilhada de São João, onde toda gente pára e faz um lanche. Às vezes uma galinha de cabidela e outras vezes uma carne de sol bem torrada. Não me contive: “Piuí! Você não tinha morrido?” E ele, alheio às coisas do mundo: “E morre? Morre?”. Insisti: “Piuí! Você ressuscitou?” Mas, a resposta foi a mesma: “E morre! Morre!”.
De Gata Preta, confesso, sei de poucas, mas o meu fraterno amigo Moisés Diniz socorreu-me por telefone. Contou que Gata vem do tempo em que existia a Fábrica TSAP, onde lavava os carros do estacionamento. E os funcionários foram dando apoio ao penitente, até que ele entrou numa banda de Moacir. E terminou, de tanto manusear o pandeiro, quebrando o instrumento, razão para se cantar, a torto e a direito: “Gata Preta vai pagar o pandeiro de Moá!”. E o nosso felino, tão humano como era, quase enlouquece com a ameaça da galera. Moisés tem um repertório de personagens e de histórias que daria um livro e muitos e muitos Blogs. Falou de Seu Guarda, de Jacaré e Cobra d’ Água, como de outros tantos. Até lembrou que à época, havia tanta tranqüilidade, que o nosso guarda noturno era um anão, Zé Alves, funcionário uniformizado da Prefeitura, guarda municipal, então. Valha-me Deus!
De todos, Sabará era mesmo o de maior significação, pela forma como falava e pelas tiradas do dia-a-dia. Acordava muito cedo e não dispensava a lapada madrugadora. Quando chegava na esquina já passava das 9 horas e nunca deixou de cantar: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco esquecer/Aquela ingrata que me amou/E que me abandonou...”. Eu saia para a Faculdade pelas 13h30 e várias vezes ouvi a observação do homem: “Esse ai vai para a escola com um livro grosso na mão. Quando eu estudava, ia uma carroça de cavalo atrás de mim com os livros do dia.!”. Divulgava que sabia de tudo e de todos e à primeira pergunta, fosse de que natureza pudesse ser, largava a resposta: “No livro que eu estudei essa página caiu!”.

E por ai vai!
(*) Uma crônica de final de ano, dias antes do 8 de dezembro, aniversário de 40 anos de minha formatura, razão para oferecer aos meus colegas de turma. Mas, ofereço, também, ao Papa Berto I, Sereníssimo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Sertaneja, citado no texto. Desejando comentar, não hesite, o faça para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Caso contrário não comente, abstenha-se de tudo e de todos.