sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O pavão dourado

Quando o sol vai raiando no horizonte, em dias assim, de nuvens nos céus e chuva no chão, por aqui já me alevanto e sendo um domingo, como hoje, depois da leitura dos jornais, tenho tempo para os meus sonhos. Vejo no monitor a pureza virginal do editor de textos e enxergo n’alma os meus sentimentos e as minhas saudades. Descortino os anos e as décadas que se foram, encantados nas brumas das lembranças e vou preenchendo este vazio com vocábulos e frases que se juntam e se abraçam quase, para exprimir de meu imaginário os devaneios. 

Os velhos de minha infância morreram todos, carregaram com eles os afetos com que me tratavam e não deixaram o derradeiro afago. A minha avó paterna, Beatriz de prenome, gorda e matrona, escondia as peraltices com que preenchia o meu tempo de menino. A tia velha, Deolinda, nascida na noite de Natal, zangava-se quando se dizia que tinha a idade de Cristo. E a tia mais nova, viúva e mártir das imolações de um filho deficiente, não concordava com os meus amores domésticos, incertos e fortuitos, mas nunca denunciou as cenas que testemunhara. 
 
E o meu pai, que me viu nascer e crescer, que assistiu o meu desenvolvimento pessoal, também se encantou, foi morar nos confins eternos. Quase posso dizer que se despediu de mim, naquela noite derradeira de tanta insônia e tão sem graça mais. Tinha o que me dizer, ainda, mas deixou para um vespertino encontro, de cuja impossibilidade não foi culpado, entregou-se antes. Nada posso imaginar das suas intenções no aprazado diálogo pra logo mais, à tarde, senão algum comentário sobre as minhas crônicas no JC, como costumava fazer. Quem sabe?
 
E a minha mãe, que viveu 22 anos mais que meu pai, descansa agora numa campa do Cemitério de Santo Amaro. Naquele mesmo bairro, tantas vezes, esteve comigo numa feira que ainda hoje acontece na chamada rua da Feira. Era ali que comprava os gêneros alimentícios para a casa e me deixava sonhar com carrinhos de madeira que os artesãos faziam e vendiam por lá mesmo. Tantas e tantas vezes esteve comigo naquele cemitério, acompanhando o sepultamento de outros. De parentes e de amigos. Encantou-se e certamente desfruta das benesses que asseguram os padres. Não deve ter esquecido a expressão de seu uso comum: "Sem novidades!". Era o que dizia! Ainda tenho o impulso de ligar pra ela.
 
O meu avô, com o seu cabelo cor de prata, levava açúcar-cande nas manhãs de domingo, prometia o pavão dourado a quem raspasse o prato, mas nunca trouxe essa ave imaginária. E a minha outra avó, Laurinda, como se chamava, não teve mais tempo de me oferecer um retrato de meu bisavô, de quem tenho a sobrancelha, dizia. Agora, o denso traço negro de minha fronte esvaneceu, perdeu a cor e o viço, nada mais representa de genético ou de hereditário. Os meus tios e as minhas tias se despediram da vida, em maioria e estão nas distâncias infinitas, na outra dimensão, então. 


Vicente Celestino cantando "O ébrio"
E os mais simples convivas, aqueles das ruas e dos becos, dos labirintos da vila da tecelagem, em cujas ruelas experimentei o lúdico desse exercício do existir? Penso que se foram, em grande parte, viajaram, definitivamente, para as moradas eternas! Onde estará o cantor das calçadas de meu bairro, Sabará por apelido, que entoava em voz sonante: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco encontrar/Aquela ingrata...”? Seria essa a razão de suas incursões etílicas? A perda de um amor! Chorava assim a ingratidão que sofrera? Talvez sim ou talvez não!
 
O seu Pedro da banana cortou uma perna, do homem que vendia laranjas num saco de açúcar, bisbilhotando o generoso decote da tia, para ciúmes do sobrinho, não tenho notícias, tampouco do mascate, com a sua carroça de um azul desbotado, preenchida por gavetas, nas quais trazia a linha de cozer e o novelo do croché de minha avó. Do homem da galinha, a cavalo, com dois caçoas repletos dessas penosas sabáticas, sequer imagino o destino. E o vendedor de amendoim, com a farinha saborosa embalada em cônico invólucro de papel de embrulho? Não sei! Essa gente fez parte de minha vida e desapareceu por encanto!

 
Nilo Pereira entre os dois galgos na casa-
grande da usina São Francisco.
Desapareceram, da mesma forma, as pessoas com as quais convivi em criança, os amigos de meu pai. Todos ou quase todos! Sylvio Rabelo e seu irmão, Dácio de prenome, Mário Melo e Gilberto Osório, o mestre Ascenso Ferreira, um grandalhão, com um chapéu de abas largas e um vozeirão de arrepiar, com medo das caiporas: “...Ali mora o pai da mata/Ali é a casa das caiporas...”. O padre Sales, camareiro papal, celebrante agoniado de quinze minutos, somente, sentado no alpendre de casa a discutir e debater o embate eleitoral na faculdade, tornando-se diretor por dois mandatos, orgulhoso do cargo de Deão.
 
Mudaram os atores e trocaram os cenários!

(*) - Hoje é o dia consagrado a São Francisco, o padroeiro dos animais e o pai dos pobres. Por tudo isso é dia também dos bichos e da ecologia, além de ser o meu aniversário. Sendo assim, dedico esta crônica ao santo e a todos que têm trabalhado em prol do meio ambiente. É um texto da saudade dos que eram velhos nos meus anos de menino e morreram, mas não saíram de meu pensar. O leitor que desejar comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira.gj@gmail.com