quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

As mulheres, o ano novo e as coisas

Sento na varanda do apartamento e olho para o infinito das coisas. O firmamento está azul, quase sem nuvens, como cabe ser em tempo assim, de calor abrasante no Recife. Lembro de ensaio científico que li em revista do século XIX, em cujo texto estão várias e diárias temperaturas no ambiente desta cidade dos rios e das pontes, no outrora dos anos. Os registros não ultrapassam os 28ºC no mês de dezembro mesmo. Agora – valha-me Deus do céu! –, o termômetro de meu carro acusa 32ºC à sombra o dia inteirinho. É o aquecimento global, dizem, que vem mudando o estado das coisas no planeta. Há geleiras derretendo e chuvas torrenciais desabando dos céus e como contrapartida, um calor de meter medo em qualquer um.
O tempo que se vive é o da finitude de mais um ano. Momento de parar e refletir. O que se fez? E o que se pode fazer no doravante dos dias? Eis a reflexão da hora! É! De minha parte, acredito que cumpri as metas do ano que se vai. Escrevi e publiquei, divulguei parte de minha produção literária e científica na Internet e assim, imagino, perpetuei o meu texto. Publiquei um livro e fiz um lançamento agradável. Recebi mais de 100 amigos e autografei igual número de volumes. Estou com outro volume no prelo e com toda certeza abro o ano com esse lançamento. Trato a propósito de “Aluizio Bezerra Coutinho – Um Sábio Pernambucano no Século XX”. Escrevi sobre esse professor que me ensinou nos anos 60 e me fez agora, nessa releitura de sua obra, fazer uma reflexão sobre esse exercício mágico da vida.
E o que não fiz? É! Não fiz muita coisa, posso deduzir. Deixei, tantas vezes, de ajudar àquele rapaz paralítico que pede esmolas em certa esquina do centro, nas proximidades de um banco. Uma preguiça enorme de tirar a carteira, quase sepultada no bolso de trás, exigindo-me levantar o quadril para a retirada do dinheiro, e a facilidade do “não”, têm me levado a negar, sem mais delongas, a contribuição. Não lembro, então, que estive ameaçado em minha condição de andar, de me locomover, acima e abaixo, sendo salvo por uma intervenção cirúrgica que me recompôs a coluna lombar. Mãos sacrossantas, digo sempre, salvaram-me o existir, com uma qualidade de vida, na qual há limitações, mas que me permite levar uma vida muito próxima do normal. Graças a Deus do céu!
Hei de fazer de 2010 o ano de todas as minhas redenções. Hei de buscar de volta a minha religiosidade, sem preconceitos e sem zangas. Quem sabe, acompanhar um pouco as homilias do novo Arcebispo e com ele enveredar por uma devoção diferente, sem pieguices e sem culpas. Sem necessidade de tanto pedido de perdão e de confissões intermináveis, como aquelas da adolescência, seguidas, quase sempre, dos carões e das expressões de espanto dos padres: “Outra vez! Não há solução para o seu caso!”. E eu era apenas um menino esbabacado ou embasbacado com as coisas do mundo ou com as coisas e as mulheres. Eu adorava as mulheres! Ainda as adoro!
E o que fazer com aqueles que me fizeram mal? Não tenho resposta para isso, ainda! À publicação da crônica, escreveu-me Luiz Lira, meu colega dos bancos de colégio - Colégio Nóbrega - com a seguinte recomendação: "Esqueça! Você é especial". Cresci em auto-estima e confesso, já esqueci!
(*) - Eis o derradeiro texto do ano. O de minhas reflexões em torno do tempo passado e a propósito do porvir das coisas. Ofereço a crônica, singela, mas sincera, a meu médico Geraldo Sá Carneiro, de cujas mãos recebi a benção do meu resgate. De igual forma, a Luiz Fernando Salazar de Oliveira e Paulo Almeida, colegas e amigos, médicos também. A meu ilustre primo Zé Luiz Delgado, cujas palavras, às vezes rígidas, me fazem refletir. Hoje mudo um de meus contadores de visitas, para que o ano de 2010 seja isoladamente contado. Comente o leitor neste espaço mesmo ou para os e-mails pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O Convescote da Afonso Pena

Eu não sou muito desses movimentos! Mas, ele ligou e convidou, ligou e lembrou, insistiu e novamente convidou, lembrou mais uma vez. No almoço encontrei Bob e Valéria também chamou; chamou e insistiu. Em casa não disse que sim ou que não, apenas comuniquei: “Moisés chamou para uma confraternização da rua Afonso Pena e adjacências!”. Deixei a decisão de ir ou de não ir para o momento. Quando a manhã do domingo esquentou e fez os termômetros marcarem 32ºC, decidi: “Vou ao convescote de Moisés!”. Como casei com mulher que nunca enjeitou passeio ou festa, obtive a concordância de pronto: “Vamos!”. Encontrei por lá mais gente do que esperava e confesso que fui recebido quase como um nobre do Império. Gente de lá, da Afonso Pena e gente de cá, da Sossego e da General Semeão, da Bernardo Guimarães e dos Pires. Todos nesse esforço sessentão de resgate do ontem das coisas.
Quem presidia o espetáculo do tudo era Zé Moraes, figura que pontificava nos anos sessenta e que continua sendo o atleta de hoje, jogando tênis e fazendo musculação, saltando em distância e se jogando nas alturas que aparecem, pulando obstáculos. Mas, havia outros, muitos outros, velhos amigos dos anos de calças curtas e dos tempos que se foram. Um desses, Ademir de prenome, já frequentou este espaço virtual, era o homem do “por quê?”. Aquele que indagava sobre qualquer que fosse o ato e ou o fato, razão para ter levado um soco de um pintor, depois de tanta pergunta sem jeito. No meio da confraternização, pra lá e pra cá, conhecia de um por um e sabia das histórias todas, tintim por tintim. Isso é que é memória, repetia-se a cada mesa.
Os Valadares, quase do mesmo jeito, esbanjavam vida e saúde, saudavam os que chegavam e reclamavam de quem ameaçava sair, almoçar e voltar pra casa, em busca da sesta dos hábitos. Um deles recebeu “Carrapeta”, fez as medidas antropométricas, concluindo que crescimento não tivera nessas três décadas pra trás. Também pudera! Ângela Barreto passeava acima e abaixo, trazia exemplares de seu livro – Em Tempo de Espera -, volume que trata de amores e de desamores, de promessas e de máscaras, de louvações e despedidas. A uns e a outros autografava um exemplar e agradecia a leitura. Li de um fôlego só! No mesmo diapasão, a nossa Myriam Brindeiro distribuindo a Agenda do Poeta, na qual pontifica gente da melhor espécie entre nós. E Fred Moreira? E Adilza? E Adilson? Todos por lá, num vaivém danado, do ver e do rever.
A família Diniz em peso. Marcos, o primogênito, começando na Internet, viúvo e noivo, noivo e viúvo. Murilo, o mago da relojoaria, esbanjando humor, mostrando os irmãos: Marta e Mércia, Moisés e Mozar. Quando no relógio de Murilo os ponteiros se abraçaram e ele gritou, em alto e bom som, o meio-dia, entrou Dinizinho (José Diniz Filho), que vinha com os cabelos desgrenhados, esvoaçantes, qual poeta que de longa cabeleira puxa o verso e faz a rima. Falou de Angola e de sua devoção aos pais. Disse da fotografia de ambos – de seu José Diniz e de dona Lilia – sobre a mesa de trabalho e da prece que faz quando precisa de um alento: “Pai e Mãe: O que faço agora?”. É! É sempre assim, a falta que fazem os pais, genitores de todas as horas! Sabendo ou não sabendo das coisas, são invocados e evocados, uma luz é o que se pede, porque todos são sábios no entender dos filhos.
Tive vontade de falar com Sônia, colega minha – de Fred Moreira também – nos bancos escolares, mas lembrei de episódio com outra companheira desses anos e de meu entusiasmo: “Foi minha colega no grupo escolar!”. E a resposta rude: “Não gosto quando você diz isso!”. Mas, Sônia não falaria assim, justificou Moisés. Pois, meu caro Moisés, diga a ela. Lembre desse tempo que se foi pra trás e ouça as suas considerações. Talvez lembre, ainda, de Vera Mendes ou de Elizabeth, a inglesa. De Silvio Romero e de Luiz Fernando. E Bob, coronel por derradeiro, escritor e bombeiro, professor e romeiro nas brenhas do sertão. Entrou com aquele jeitão, piscando o olho pra toda gente e trazendo a tiracolo Valéria de todas as animações. Abriu a sirene à chegada e só desligou quando saiu o último dos penitentes.

Eis ai, amigo leitor, o convescote da Afonso Pena.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O Natal dos Pássaros

Difícil buscar inspiração neste Natal, tempo de confraternização e tempo de paz: minha mãe está muito doente. Foi assim há 17 anos passados com o meu pai. Um fim de ano conturbado. Quando chegamos em casa dele, como fizemos vezes seguidas, não quis descer do quarto, não aguentaria mais a agitação daquela terminalidade, a do ano e a sua própria. Voltamos para casa e improvisamos uma festinha para as meninas, quase crianças ainda. Ouvimos o badalar das horas e brindamos ligeiramente a passagem do ano. Agora, não adianta mais insistir, não há como buscar no imaginário cenas que possam resgatar o bom das coisas ou o espírito não consegue sentir o enlevo do momento. Quem sabe possa repetir um passeio que fiz pelo rio Capibaribe e vendo o Recife à noite, reescrever a crônica de 2007. Talvez! Ou apenas olhar e ver a fotografia de meu Blog mesmo, publicada naquele ano, colhida durante um passeio de barco..
Hoje pela manhã, logo cedo, quando saia de meu exercício matinal num programa de hidroginástica que tenho como se fosse uma religião, vinha lembrando o quanto foram gostosos os meus finais de ano. Os passeios que dava pelas ruas iluminadas da cidade, levando as três filhas, cada qual que fizesse a sua observação, caracterizando a peculiaridade do instante. Fabiana, a mais velha, quando muito pequenina, ficava deslumbrada com o bueiro da fábrica da Tacaruna iluminado e dizia, em seu verbalizar iniciante: “A cacauna painho! A cacauna painho!”. Nunca esqueci isso! Agora, mãe como é, há de trazer o filho, meu neto, para ver também a terra em que nasceu e se criou. Pras bandas da Espanha, o frio está gelando os ares, por isso mesmo há um lugar certo para o Papai Noel. Por cá não, faz um calor acima dos 30º C e só cabe mesmo a tropicalidade da roupa e a afetividade do gesto.
O tempo passa, os filhos crescem e se vão, os pais envelhecem e morrem. Mas, é preciso conservar o espírito de fraternidade que preside a cena desse tempo mágico. Nota-se em todo canto, até nos elevadores, que os semblantes estão mais descontraídos, há mais facilidade na comunicação e o gesto se faz mais espontâneo também. Toda gente comunga dessa despedida do ano; cristãos e judeus, aqueles que professam a fé dos terreiros e os espíritas, cujo culto contempla as almas desgarradas da matéria e a reencarnação. Na ceia, a tradição de séculos e mais séculos é repetida, o peru ou o porco se apresenta à degustação da família. Mas, infelizmente, a minha mãe não precisa me mandar à venda da esquina, com a recomendação: “Vá comprar uma dose de aguardente! Mas, avise que é para matar o peru, se não vão pensar que seu pai bebe!”. E o meu pai, quando muito servia-se de uma sangria, maculando a pureza do bom vinho português.
Nesse tempo assim, de minhas oscilações do humor, os pássaros conseguem me alevantar a alma. Ontem, em uma de minhas caminhadas pelo Parque da Jaqueira, não resisti e sentei em banco de cimento duro e fiquei absorto, observando o saltitar de um sanhaçu num galho próximo. Que beleza! Que coisa linda, meu Deus do céu! Ao longe, um sabiá-laranja cantava os acordes de minha infância. Trinava bonito e repetia o canto, chamando, com toda certeza, a fêmea para o êxtase dos dias de agora. Se fosse em Aldeia, teria comprado um mamão passado, dizendo ao vendedor do mercado: “Amigo! Quero um mamão podre!”. E o vendedor, em sua perplexidade, nunca deixou de indagar: “Por que podre?”. Não é podre, é passado, sempre digo! Lá ainda chegam o João Moleque e a Maria Mulata. A lavadeira e a guriatã. Todos das atenções do meu ilustre amigo Roberto Harrop, mais sociólogo que antropólogo. Oh, amigo, as lavadeiras de meus anos lavavam do Cristo a roupa, por isso, a minha avó paterna não as deixava pegar.
E os canários? Aqueles de penugem amarela, tão doirada quanto a cor que reluz! Foram, também, de meus tempos de menino? Onde estão Harrop? Pousavam no terreiro de casa, a mesma casa de minha mãe no hoje dos dias, caiam, vez ou outra, no alçapão de rede e iam parar no viveiro de casa, no qual amansavam os abarrancados e mudavam as penas os jovens passarinhos. Eis o Natal dos Pássaros e o meu Natal.



(*) - Ofereço o texto a Roberto Harrop, amigo meu de Aldeia, vizinho ilustre daquelas plagas. Uma crônica quase toda sofrida, para um tempo de paz e de tranquiliade; crônica de meus humores oscilantes, às vezes animados e tantas vezes tristonhos, melancólicos. Afinal, a minha mãe não está bem Pela beleza dos pássaros, desses do Blog e daqueles dos meus caminhos em Aldeia, ofereço o texto a Roberto Harrop, na esperança de vê-lo fotografar um canário amarelo em determinada relva do bosque.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Os Gemidos de Bruna

Manassés, que sabe dessa história e de outras mais, depois de ter lido a crônica passada – Os seios de Otília –, apareceu aqui por casa. Sentou-se no alpendre e pediu a lagosta que trouxera já cozida, por isso mesmo ao ponto, acompanhada de uma cerveja bem gelada. Abriu a boca no mundo e tome a falar do povo que conhecera, da mulherada, sobretudo. Indagado como ia passando a protagonista do relato que tanto agradou aos meus leitores (Otília), disse que estava perto dos 80 anos de idade, mas lépida e fagueira, satisfeita da vida e viúva outra vez, depois que “matou” dois penitentes neste mundo de Deus. O seu Cícero dos começos e pai de suas filhas e o senhor William, que assumira a mulher ainda com o corpo bem dividido e com a aparência conservada. Contou que, recentemente – já se vão uns três anos -, recebera da parte dela uma ligação telefônica, na qual dizia que estava vivendo com um rapaz, figura dos seus 35 anos. Como ficara só na vida, sem companhia que fosse, com as meninas casadas, encontrou esse companheiro, antes um motorista de taxi, agora desempregado, apenas. E a Manassés, que sabia muito prestativo, pedia fosse o quase marido operado em hospital público. O meu amigo não hesitou e de logo perguntou:
- A senhora casou, dona Otília?
- Não, meu querido, eu me juntei!
- E ele vem dando conta do recado?
- Claro e muitíssimo bem! Mas, o que preciso é conseguir a cirurgia da vesícula.
E o Manassés conseguiu!
A verdade é que o homem tem histórias que o diabo duvida de costas. Antes de se prender às peripécias da família de Otília, de suas incursões e das incursões filiais, lembrou de um episódio da Festa da Mocidade, com duas empregadas domésticas de minha rua: Coqueiro e Maria Branquinha. Coqueiro era negra, tinha o cabelo de tal forma encarapinhado, que o tufo piloso fazia a cabeça parecer o topo dessa árvore que no Nordeste é de tal forma abundante que faz a sua gente tomar a água de seu fruto como se potável fosse: o coco. E Maria Branquinha o leitor já imagina como era. É que os colegas de adolescência se juntaram, reuniram os trocados e pagaram um anúncio no posto de rádio. Dizia, mais ou menos assim: “Atenção! Atenção Geraldo Pereira! Coqueiro e Maria Branquinha, em nome do Sindicato das Domésticas, enviam beijos e abraços!”. Ora pau! Eu sentado, de namorada a tiracolo, passei momentos de intranquilidade visível. Mas, é assim mesmo!
Mas foi ele, ainda, Manassés, quem contou de Bruna uma passagem no mínimo curiosa. Estava ele vagando pela rua em que morava, batendo perna, se dizia, quando viu a menina correndo aos gritos para dentro de casa. Dirigiu-se pra lá e foi recebido por Otília estupefata: “Não sei o que houve! A menina estava bem! Conversava com Aparício e saiu correndo, gritando desse jeito!”. O meu dileto amigo, solidário como é, de nome hebraico, cujo sentido é esquecer – E ele não se esquece de nada –, foi acudir a moça in loco, indagando: “O que há Bruna?”. E resposta não obteve, senão os gritos: “Ai!, Ai!, Ai!, Ai! Ai! Ai!”. O que é, indagava ele? Nada, respondia a menina, mas não parava com tanto Ai! Cinco, seis ou sete Ai! De cada vez, em ritmo cadenciado.
O namorado, vendo a cena, sendo ele o protagonista daquele filme, escapuliu de fininho, como se nada tivesse acontecido. E os gemidos foram espaçando, espaçando, até que ela amoquecou, relaxou, deixou-se ficar ali mesmo, enfraquecida como estava. Daí por diante Manassés não sabe mais se as crises reapareceram, se continuaram sendo diante do namorado que virou noivo e depois casou ou se desapareceram. A verdade é que nunca mais a ouviu gemer.

Mas, daria tudo para ver e ouvir, outra vez, os gemidos de Bruna!
(*) - Ofereço o texto, metade verdadeiro e metade ficção ao meu dileto amigo, colega de turma e meu chapa: Ataide. Ás vezes conhecido pelo apelido de Ataúde e às vezes chamado pelo cognome de Hepatite. Três nomes em um só. Figura que encontrei, casualmente, numa loja, fazendo compras com a mulher. Grande contador de histórias ele, mas de outras histórias, das que foram vividas nos tempos da faculdade.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Os Seios de Otília

A casa entrava em polvorosa, quase se pode dizer, quando seu Cícero chegava fedendo a cerveja e sujo com molho de carne guisada. Entrava gritando e sentava à mesa esbravejando. Muitas vezes se ouviu, nos arredores daquele sobrado, pornografias ditas pelo homem enfurecido. Mandava que se recolhessem todas, a mulher e as duas filhas. Ninguém tinha liberdade e só abriam aquele portão de ferro pesado para um destino considerado nobre e digno, isto é, a escola das meninas e a igreja da esposa. Fora disso, nada! Era um ciúme doentio. Disso não se duvidava e nas esquinas era comum o comentário: “Brites e Bruna não aparecem nas janelas!”. Mas, a rapaziada do bairro não dispensava uma graça ou um galanteio, quando se dirigiam ao colégio: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça/É ela menina que vem e que passa...”, diziam, imitando Tom Jobim e lembrando da Garota de Ipanema.
Eram moças, realmente, atraentes. Tinham os traços parecidíssimos e os corpos quase iguais. Mocinhas arabizadas, mouras, no melhor estilo das descrições de Gilberto Freyre. Baixinhas e de formas protundentes, de largas cadeiras e bustos pequenos, mas firmes e fortes. O diabo atenta gente assim, presa pelos grilhões do ciúme e vez ou outra a meninada tinha o que contar das moças que viviam trancadas. Vezes e vezes, o vizinho de frente, Chico por apelido, subia na mangueira de casa e diante do sobrado antigo via Brites em trajes menores, de calcinha e sutien no espelho do quarto. Era uma sensação tão forte, mas tão forte, que certa vez ele quase caiu da árvore. Desceu às carreiras, quando ouviu o grito da mãe: “Chico, menino danado! Vem comprar o sal da comida!”. Correu e comprou! Na volta subiu outra vez e lá continuava a garota, no quarto ainda, vestindo e tirando a roupa de suas intimidades. E a cena repetiu-se muitas vezes.
Sucede que Brites vira o olheiro de ocasião e tempo não perdera – o diabo atenta mesmo – tirou o sutien pespontado que usava e ficou com os dois pingentes expostos. Virou-se para o observador de ocasião e andou dois ou três passos, pra lá e pra cá, balançando os berloques em movimentos pendulares, como cabe fazer uma mulher assim, vistosa e bem parecida. Chico tremia feito vara verde no galho da mangueira, perplexo com a beleza da mulher. Mas, como todo homem que se preza, queria ver mais e mais, queria tocar e alisar, apalpar enfim aquele corpo tão bonito e tão tentador. Não podia, porque seu Cícero, o português encapelado, bêbado e teimoso, parecia um cão feroz diante de qualquer tentativa de aproximação. Nem conversa queria, fosse mulher ou fosse homem. Temia namoros e afetos, afagos jamais e o libidinoso da idade que fosse para as cucuias de costas.
Bruna de nada sabia e como fora sempre a mais contida, ficava no ora veja e dela ninguém via nada. Foi ela, no entanto, quem arranjou um namorado primeiro. Chegou Aparício em sua vida e a paixão tomara conta dos dois. Era um alvoroço na hora de seu Cícero chegar, um corre-corre danado. Esconde pra lá e escapole pra cá, o rapaz correndo feito um louco de volta pra casa e ela saltando o muro baixinho, correndo pra sala. Um horror! Naqueles anos da década de sessenta o namoro era contido, levava meses seguidos para se pegar na mão, outros meses mais para enlaçar a namorada e anos para se beijar na boca. Sucede que nessas circunstâncias, de namoro muito escondido e de um pai assim, levado da breca, como seu Cícero, o diabo também atenta e as coisas andavam mais rápido. Aparício, então, já estava em estágio bem adiantado do processo, a sua mão entrava pelo vestido e abordava a velha combinação dos costumes da época, suspendia o porta-seios e bolinava com todo cuidado a moça Bruna, recatada e pudica. Ela tinha os mamilos mais lindos que o menino já vira, eram medalhas militares intocadas.
Um dia qualquer, estava o casalzinho em abraços e apertos no muro de casa, ele com a perna direita posta no muro, onde se encostara e ela caída sobre o seu corpo. Quando o algoz apareceu na frente foi um rebuliço, mas de uma hora para outra a família toda se revoltara e resolvera enfrentar a fera. Pegaram o homem pela breca, deitaram no passeio de acesso ao alpendre e deram-lhe uma surra de que não se tem notícias em todo o Recife do antes. O penitente, não teve dúvidas, pegou um saco velho, com o qual imitava o papai-noel nas festas de fim de ano, encheu com os seus pertences e ameaçou: “Vou embora dessa merda! Aqui só tem doido!”. O namorado que avançara o sinal foi saindo de fininho e desapareceu na primeira esquina. Nunca mais voltou! A constelação parental, porém, diante da retirada do carrasco que comandava os destinos da família, bateu palmas em conjunto e o homem, também, nunca mais voltou.
O que ninguém sabia era que Otília, a mulher contida e submissa, acostumada aos gritos do marido e ao esbravejar daquela fera tantas vezes enfurecida, também trocava de roupa com a janela aberta e Chico vira inúmeras vezes os seios da mulher. Ela tinha um prazer desusado em mostrar o seu busto ainda rijo àquele menino quase imberbe, que lhe via do galho mais próximo da mangueira. E ele, na safra da manga-rosa, nunca descuidou do presente generoso. Não dizia, porque também não podia, mas aquelas frutas rosadas eram os seios de Otília. E ela, também, sem expressar seus desejos agradecia de bom grado e dizia: “Um dia vou lhe recompensar!”. Se recompensou, o leitor há de saber depois, noutra semana, se dessa crônica se agradou.
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sábado, 28 de novembro de 2009

Matemático a Postos

Um doido é um doido, nada mais que isso, não se pode confiar. Pois é, já vi o mestre Ariano Suassuna dizer – já disse também por aqui – que em todo lugar que se preze há um doidinho de plantão. É verdade! Na rua em que morei havia um com o cognome de “Por quê?”. É que passou a vida inteirinha – nem sei dele agora – indagando das pessoas as razões e os motivos de tudo. Até que certa vez, encontrando um pintor que caiava as paredes da velha fábrica TSAP, perguntou: “Estás fazendo o quê?”. Ao que o trabalhador solícito respondeu: “Estou pintando a parede!”. Mas, o nosso protagonista de agora insistiu: “Por que estás pintando a parede?”. O homem do pincel de forma paciente acedeu em responder: “Porque o dono mandou!”. Ouviu, todavia, nova indagação: “Por que o dono mandou?”. O pintor não teve dúvidas, desceu da escada tesoura em que estava e deu uma mãozada no figurante dessa história, pelo que ficou o dito pelo não dito. O menino – era um menino! – voltou para casa chorando.
Pior do que isso foi o chamado que recebi para atender um doente em hospital de psiquiatria. Tinha chegado com um distúrbio do comportamento – urinou na sala de casa –, sendo internado por isso. Mas, não acordava de jeito nenhum! Entrei no quarto e dei o diagnóstico pelo cheiro do ambiente. Parecia que tinham impregnado o lugar com vidros e vidros de amônia. Era como se aquilo lá fosse um banheiro, no qual a higiene era precária ou nula. Tratava-se de um coma hepático, o paciente fora operado e tinha feito uma anastomose – ligar um vaso a outro – da veia porta à veia cava. Essa anastomose porto/cava era também conhecida por porto/cova, porque os doentes morriam com elevada frequência. Tirei a aliança para lavar as mãos e a esqueci na pia do hospital. Veio um doente qualquer e levou a argolinha de ouro. Era noite alta e quando cheguei em casa contei a história. Não precisa dizer que ninguém acreditou na minha versão. Lembrei de um médico que flagrei no Parque 13 de Maio, no interior de um carro da marca Skoda fazendo um esforço enorme para tirar a sua aliança da mão esquerda, enquanto fiava conversa com uma normalista. Quase ajudo!
Noutro hospital, assim que entrei e comecei a falar, uma mulher que estava tomando banho gritou: “Doutor! Case comigo!”. Respondi com uma evasiva qualquer e continuei o que precisava fazer. Fui surpreendido depois com um abraço dessa criatura, a qual completamente nua me agarrou e me molhou dos pés à cabeça. “Case comigo! Case comigo!”. Era só o que dizia. Calma, minha senhora, expliquei, preciso juntar as minhas coisas, para seguirmos juntos e casarmos na primeira igreja do caminho. Desse jeito me livrei do momentâneo assédio. Veja só o leitor! Essa história de querer casar a todo custo vi e ouvi muitas vezes, quando ia a um desses hospitais, sobretudo no Hospital da Tamarineira, onde havia um recreio, um pátio no qual as internas se juntavam e perambulavam, algumas nuas em pelo e outras quase assim, mas gritando muito: “Case comigo! Case comigo!”. Que psicose era essa, não sei!
Mas, eu estava no 5º ano de medicina e apareceu na sala de aulas, no chamado “teatrinho” um camarada estranho à turma, doido varrido. Nesses momentos, da forma mais natural possível, um grupo se acercou do novato e passou a puxar conversa. “Quem era? De onde viera? O que queria? O que fazia?”. Do primeiro ao sexto ano, dizia, com toda ênfase, sabia de tudo. E ia demonstrar a sabedoria dele: “Atenção colegas! Atenção colegas! Dois mais um é igual da três e três menos um igual a dois, pelo que se obtém o primeiro número!”. Ou seja 2+1=3 e 3-1=2 Há quem possa com uma coisa dessa! Era um matemático a postos, então!
Uma crônica de algumas vivências e de outras convivências. Comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

As Mesmas Águas Transbordo

Confesso ao leitor que já vi de tudo nesse mundo de meu Deus. Vi o que o diabo duvida de costas, sobretudo no campo da parceria conjugal. É que morei no bairro de Santo Amaro das Salinas, onde havia uma vila operária e ali residiam os meus amigos de menino e as minhas amigas desse mesmo tempo. Pois foi justamente por lá que assisti um doido se meter na vida de um casal, imiscuir-se na moradia dessa família e dividir o leito conjugal com os dois parceiros de cama. A turma nunca dispensou uma gozação em cima do caso e de logo apelidou o homem de seu Cornélio, caçoando com a pobre criatura, cujo sofrimento ninguém cuidou em se incomodar. Depois, ficou o dito pelo não dito, porque com doido não se brinca, nem depois que ele tira o time de campo.
Mas vi, também, o grande amor de Cururu Pei Pei por uma das moradoras do lugar, por uma moça bonita e bem parecida, bem feita de corpo, com um rosto belo e um corpo arrumado. O nosso batráquio foi rejeitado pela família e a jovem namorada encerrou a aproximação, a qual, à época, era bem diferente dos tempos que correm. Foi quando apareceu o Lambreta, que se encantou pela jovem bem parecida e bem feita de corpo, recebeu da genitora viúva a desejada aprovação e terminou noivando com a penitente. Antes de casar, no entanto, fez uma despedida de solteiro pra ninguém botar defeito, reuniu toda gente em bar conhecido no Recife, nos domínios do Parque 13 de Maio, com o sugestivo nome de Cabana. Foi uma farra nunca vista nos limites da localidade.
Quando a manhã ia chegando, encobrindo as trevas, era o Dia de Finados que se anunciava e eu não perdi tempo: “Tinha uma promessa a pagar no cemitério!”. Inventei isso, porque precisava de uma saída honrosa para me retirar, mas a turma – hoje seria galera – não me deixou comparecer sozinho ao campo santo e toda gente se levantou atrás de mim, em verdadeiro préstito pelas ruas ainda escuras, em direção do lugar sagrado. Chegamos lá todos juntos e o velho portão de ferro ainda estava fechado, mas eu que me encontrava prestes a pagar uma promessa, cujos detalhes não tinha de cabeça, inventei para o porteiro a minha necessidade de entrar urgentemente, em função de graça alcançada. O homem abriu a exceção e nós perambulamos entre as alamedas que amanheciam com o dia, até que ficasse paga a dívida com os céus.
O nosso Zé Umbigo de Banana Oca fez pior, preparou o casório, não chamou ninguém para a cerimônia e muito menos para a despedida de solteiro, a qual, como imagino, sequer sucedeu. O padre marcara a união para as 18 horas, rigorosamente, chovesse ou fizesse sol. Sucede que às 14 horas decidiu-se por me consultar – eu já estava no final do curso médico –, razão para interromper a minha sesta, o que mais prezo na vida. Desci de meu poleiro, pois que dormia em cama de beliche e ouvi a sua dúvida: “Como proceder com a noiva durante a lua de mel?”. E justificava a indagação com a explicação de que consultava um amigo quase formado já. Ora, eu não sabia de nada dessas coisas, era solteiro e naqueles anos não se podia ter experiência de coisíssima nenhuma. Recomendei que mantivesse a calma e não fosse com muita sede ao pote. A verdade é que parece ter dado certo, pois foi logo pai de duas filhas bem afeiçoadas.
Quando de meu casamento, a igreja foi decorada por minha sogra e eu fiquei por lá bisbilhotando as coisas. O sacristão era uma figura ótima e eu resolvi elogiar a sua performance, dizendo: “O senhor é um grande sacristão!”. Ele gostou do elogio e quis retribuir, verbalizando em alto e bom som: “As mesmas águas transbordo!”. Isto é: da mesma forma, do mesmo jeito. Eu adotei a sua resposta como mote e sempre que posso agradeço desse jeito: Como dizia o sacristão da igreja da Soledade: As mesmas águas transbordo.
Desejando comentar use o espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com O meu livro - Histórias Pitorescas de um Reitor - está à venda na Livraria Cultura, na Livraria Saraiva e nas lojas da Imperatriz.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Palavreado Matuto

O linguajar interiorano típico, aquele que estava habituado a ouvir nos meus anos de menino e nos meus tempos de adolescente, convivendo com as empregadas de casa, em grande maioria tangidas do massapé garanhão, para repetir o que diz o sociólogo de Apipucos (Gilberto Freyre), desapareceu, terminou vencido pela padronização das palavras e das frases do falar global. Empregadas tangidas, sobretudo, por se perderem nos folguedos da bagaceira, onde prevalecia a força do mais forte e vencia a sensualidade da beleza ou a astúcia das manhosas desde o congênito da vida. Não vejo mais quem diga “vosmecê” ou não ouço mais ninguém dizendo “e a pois”. Pior ainda o velho “pro quê” das indagações matutas. Ou então: “Avia menino! Vai “precurar” o brinquedo perdido!”. Ou ainda: “Deixa de ‘avexame’ menino danado!”.
Quando era jovem médico no Hospital Pedro II, o mesmo de meu parecer no Conselho Estadual de Cultura, tombando-o e o mesmo de um trabalho científico que venho brunindo faz mais de um ano, ouvi muita coisa que não se escuta mais. Não raramente a doente matuta abria o diálogo dizendo: “Sinto um incômodo na mãe do mundo!”. E eu não sabia, de começo, que a “mãe do mundo” nada mais era do que o útero, o depositário sagrado da vida. Quando o padecer era mais adiante, não hesitavam em verbalizar: “Estou doente das partes mais vergonhosas!”. Oh! Quanta ingenuidade ou quanta pureza ou quanto pudor para expor a própria doença! Que vergonhoso que nada, quase dizia!
Um homem, certa vez, me procurou no ambulatório e expressou em alto em bom som: “sofro da tripa gaiteira”. Era uma criatura acometida de uma mazela retal, para quem foi indicado fazer uma endoscopia, procedimento que estava nascendo entre nós, vindo das terras distantes do sol nascente. Preparado o paciente, devidamente internado, como cabia fazer à época, foi levado à sala de exames. O profissional encarregado do exame fez uma curta exposição do que sucederia e ouviu do penitente uma justificativa de que: “No meu, doutor, ninguém vai mexer não! Aqui, só a terra há de comer!”. E assim foi, não se fez o exame e anos depois a terra realmente comeu. Vizinho seu de cama concordou com o procedimento, mas no meio do exame eliminou um certo volume de gás na face do médico ainda inexperiente. O profissional era meio agitado do juízo e não teve dúvidas e deu-lhe um safanão nas nádegas, ao que ouviu: “Doutor! Não tive culpa! Saiu sem querer!”. E foi mesmo! Saiu sem pressentir!
Naquele tempo - terminei me habituando -, os pulmões eram chamados de “bofes”, o baço apelidado de “passarinha” e os intestinos de “tripas”, não sendo incomum o velho “nó nas tripas”. Eram nomes vistos nos matadouros ou denominações costumeiras da culinária doméstica. Por isso, chamar o cérebro de “miolo” não admirava. Os “miolos” doíam que só, sobretudo depois de uma carraspana no bar da esquina. Mas, servia-se à mesa um prato delicioso: “miolo de boi”. Era um prato extremamente apreciado e o meu pai não dispensava a iguaria, justificando o quanto valia para a memória humana. Rico em fosfato, dizia. Com se o bicho tivesse mesmo lembranças duradouras! Com as “oiças” doentes, a velha Dona Mimi ouvia mal e às vezes não compreendia o que sentiam os meninos, para que a sua reza, com o galhinho de matruz colhido no jardim de casa, fizesse o efeito desejado. Fazia com o verde do mato uma cruz na cabeça, outra no tórax e mais uma no abdômen. O galho murchava, como fazem todos os vegetais retirados do caule, e a fisionomia da mulher iluminava-se de um quase gozo, o gáudio da vitória. Ó Dona Mimi! Quanta ingenuidade junta!
Eis o palavreado matuto. As crenças e os rituais da gente simples.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Cego da Gota Serena

Chegou para trabalhar já passava mais de trinta minutos da hora aprazada, do costume de todos os dias; mas, enfim, chegara. Naquela noite estava, particularmente, atarantado, tinha assistido à aula sobre tétano na Faculdade e aquilo o incomodava terrivelmente: era um hipocondríaco de livro. Soube de sua angústia e esperei pela chegada do chefe, a quem fui receber à porta do Centro de Saúde Gouveia de Barros. Contei o ocorrido e pedi que fizesse uma fisionomia de admiração, indagando-lhe o que havia. Vale a explicação de que a doença (tétano) provoca um riso especial, considerado nos compêndios de propedêutica como um “riso sardônico”. Foi assim: “Mas, o que há com você Vivaldi? Que riso é este?”. E o grande Vivaldi, diante de tanto espanto, de tanta surpresa, ficou de pé, levantou os dois braços e gritou em alto e bom som: “Estou com tétano!”. Quase enlouquece com as nossas dúvidas.
Era uma figura comum, igual a todos os outros estudantes de medicina, mas tinha essa peculiaridade, a hipocondria que o levava ao desespero, bastava estudar uma doença nova. Dizem que depois de formado, tendo ganho um bom dinheiro pras bandas do Maranhão, transformou-se em fazendeiro e hoje vive contando as cabeças de gado nos vários currais de que dispõe. Certa vez, porém, estudando em casa de um colega, na companhia de outros companheiros do curso, cismou que tinha engolido um pedaço de vidro da garrafa de coca-cola. A turma, matreira, como era, quebrou o bocal do recipiente e um deles perguntou alto: “Quem foi que quebrou a boca da garrafa de coca-cola?”. Só podia ter sido ele, Vivaldi. Repetiu, então, o gesto, de pé, com os braços levantados, deu o seu grito de guerra: “Engoli um pedaço de vidro!”. O grupo não fez por menos, levou o colega ao pronto socorro e assistiu de camarote o médico fazer radiografia de todo tipo, contanto que ficasse provado que o bocal não estava em seu estômago.
Os colegas se reuniam sempre para estudar e numa ocasião qualquer, um deles decorou parte do texto, enquanto outro apagava a luz. O nosso protagonista, de imediato, alertou: “Faltou luz!”. Mas o interlocutor que estava lendo o assunto da noite continuou falando e ainda insistia com Vivaldi: “Cala boca Vivaldi! Acompanha a leitura!”. O homem – pobre homem! -, gritou a plenos pulmões: “Estou cego!”. Foi uma risadaria geral e a ridicularia tomou conta do lugar. Vivaldi quase dá em gente com a raiva da hora.
Era assim o nosso colega das noites de trabalho no Centro de Saúde. Adoecia com toda doença que estudava, como se fosse ele mesmo o primeiro cobaia dos males desse mundo de Deus. Cego da gota serena, como dizia Virgínia, empregada lá de casa, vinda das brenhas dos Palmares e perdida na bagaceira.
(*) - Uma crônica oferecida aos meus colegas do Centro de Saúde Gouveira de Barros, inclusive Vivaldi (nome fícitício). Desejando comentar, não hesite, o faça no Blog mesmo ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Mal Amada: Bonita e Bem Parecida

Amigo meu, colega de batente, passou a fazer o que os sociólogos chamam de observação participativa, expressão que aprendi faz pouco tempo, com leitor desse espaço virtual, mesmo, versado nessas coisas das ciências sociais. Explicou que fica em Gaibu, sua praia preferida e ali desenvolve as suas aptidões investigativas. Gaibu é palavra de origem indígena, Tupi, significando vale do olho d’água. Ignoro se por lá existe água jorrando aos borbotões! Certamente que sim! Mas, na condição de pesquisador desse cotidiano quase líquido, tem identificado e analisado os “farofeiros” do lugar. Vale explicar que essa gente “farofeira” vem de longe, às vezes até para ver o Oceano Atlântico pela vez primeira. Trazem de um tudo nos bornais, a galinha assada, o arroz branco e o feijão, sem falar nos refrigerantes e nas cervejas. Assim, evitam gastar o pouco que possuem na carteira magérrima.
Pois é, um desses, enrolado na areia da praia como um bife à milanesa, olhava a imensidão do mar, mirando as diversas tonalidades da água e de tão encantado que estava não hesitou em dizer: “Se tivesse um holofote aqui, eu ficaria a noite inteirinha vendo esse marzão!”. E a mulher que se deitara em frente ao meu ilustre colega, terminou sendo retratada a bico de pena. Senhora de formas protundentes, de quadris largos e amplos, de coxas iguais àquelas da mulherada dos anos sessenta. Deu-me o desenho e eu vou tentar passar para o computador, aqui mesmo por Aldeia, para publicar no Blog. Se não for logo, há de ser depois! E antes da partida do grupo, reuniram-se todos e deram o grito de guerra: Camaragibe. Vinham, então, dessa cidade pequena, nas imediações de onde estou agora.
Mas, hoje, enquanto caminhava, lembrava de fatos que me ocorreram quando era jovem e andava nas areias cálidas de Pau Amarelo, chegando até os domínios de Conceição. Era uma beleza aquilo lá. No deslocamento entre a igrejinha de Nossa Senhora do Ó e a paz de Maria Farinha, quase não se tinha companhia, tal o deserto. Em certa ocasião, porém, encontrei colega meu de turma que se refastelava na praia, quase no final de minha caminhada. Cuidei em parar e fiar conversa. Eu, ele, as duas esposas e mais um irmão deficiente mental. De repente, na linha de meu olhar, uma gringa baixa o maiô e expõe os seios. Eu me virei pra ele e expressei:
- Tonho! Estou me sentindo mal!
- O que sentes?
- Estou todo me tremendo. Olha o que vem se aproximando.
Ele viu e me disse que o irmão não poderia, em hipótese alguma, descortinar aquela nova personagem no cenário da praia. Foi ai que cuidei em abraçar o fraterno companheiro de ocasião e à medida que ela passava diante de nós, eu o fazia rodar sobre si mesmo, mantendo-o sempre de costas. Foi uma atitude egoísta, reconheço agora, pois o nosso Aprígio tinha também o seu direito à visualização inusitada, tanto quanto nós outros, tidos e havidos como saudáveis nessa ótica da mentalidade. Por certo somos mais debeis que ele.

Pior que isso ou remendando o dito, melhor ainda que isso foi o caso do cachorro que mordeu a minha filha mais velha, numa das idas à igreja em manhã de domingo. Fiquei preocupado com o incidente e passei a buscar notícias do cão. Em determinado momento me dispus a falar com a dona do animal. Morava em casa antiga, mas um imóvel grande, de fazer inveja aos locais. Era uma construção elevada com uma escada de acesso em alvenaria. Pois a madame veio me atender com todo o mal humor que acomete às mulheres bonitas e bem parecidas, mas mal amadas. Era uma manhã clara de verão e ela sequer decidiu-se por se compor adequadamente e chegou com um penhoar finíssimo. Com as duas mãos nos bolsos não percebeu que a roupa se abrira e como nada havia por baixo, pude descortinar a beleza momentânea de sua região pudenda, tão nua quanto a moça do alumbramento de Bandeira. Disse minha mulher – ainda hoje repete – que fiquei abestalhado, abobalhado e nada consegui verbalizar, senão um balbuciar qualquer, incompreensível. Mas, também, pudera, diante de tamanha visão não há quem se comporte. Só clamando por Renoir, capaz de trazer a beleza da nudez e a satisfação do sorriso.
Eis as minhas digressões da hora, lembranças de passagens do tempo que se foi e comentários em torno do que se tem agora no hoje do tempo. Desejando comentar, leitor amigo, não hesite, rabisque as suas impressões no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira.gj@gmail.com ou ainda para pereira@elogica.com.br

sábado, 24 de outubro de 2009

Pedra na Cruz

Há umas coisas que acontecem comigo que eu me surpreenderia muito mais se assim não fosse, francamente. Já estou habituado ao inusitado em minhas idas e vindas aos lugares. O que for diferente, pode acreditar o leitor, foi comigo que sucedeu. Disso não se iluda! Pois é! Fui o ano passado acertar alguns detalhes numa empresa de telefonia móvel e o atencioso atendente, depois que me deu a prioridade da idade, indagou: “O senhor viaja muito, não é?”. Fiquei surpreso e respondi no ato: “Não! Viajo como fazem todos os mortais, vez ou outra!”. Explicou-me, então, que encontrara no sistema – tudo agora é no sistema – duas contas minhas, sendo uma no Paraná e outra mais em São Paulo, ambas consideradas pela companhia e por certo que pelo sistema também, inadimplentes. Ora, meu caro amigo, quase disse, só tenho um telefone celular no Recife e olhe lá, por muito favor, porque me viciei nisso e é prático! Fiz uma carta e resolvi a pendência. Tinham falsificado a minha identidade e o meu CPF. Só me livrarei disso com o número único, imagino!
Noutra ocasião, quase realizo uma compra a prazo, mas a moça que me atendeu, muito reservadamente, cochichou em meu ouvido: “O seu nome está no SPC!”. Ora, minha querida, não devo a ninguém neste mundo de Deus, sequer tenho o costume de me utilizar do crédito, senão raramente. Com a mesma gentileza forneceu a origem de meu débito, dando a cidade e o estado. Em Salvador, na Bahia, alguém com documentos em meu nome, com o meu CPF e mais outros números assemelhados, fez a feira numa loja de móveis. Comprou a sala de jantar e as poltronas do estar, a geladeira e o fogão, a máquina de lavar e tudo o mais que se pode usar em casa. Com a telefonista da aludida casa comercial disse de minha surpresa, limitando-se ela a me solicitar explicações por escrito, passadas por Fax. Ora, eu não tenho esse mágico aparelho da modernidade, que tanta admiração causou a meu pai, em seus derradeiros momentos, porém a pequeno custo passei a missiva na agência dos correios e o caso foi resolvido.
Hoje, em outra empresa de telefonia móvel, comecei a negociar um moden com a denominação de 3G. Um recurso novo no acesso, uma forma de abandonar velhas formas de ingresso na Internet, cujos inícios passavam pela forma discada de navegar na grande rede. Na hora de cumprir com a retribuição pecuniária, fui novamente informado de que tinha naquela empresa nada mais nada menos que quatro linhas, sendo duas canceladas e mais duas pendentes e inadimplentes. Ora pau, por pouco não disse, vou terminar entrando no livro dos recordes com tanta fraude em meu nome. Indaguei a uns e a outros como explicar essas falsificações, essa má fé consubstanciada. Explicaram-me que com frequência nos hotéis copiam os documentos e dessa forma passam a atuar, livremente, no comércio e nos serviços. Veja só o leitor! Não sou de muita viagem e tampouco de muitas acomodações assim, na chamada rede hoteleira, mas devo ter sido sorteado nessa coisa dos horrores.
Talvez, não custe a quem me lê com tanta paciência, procurar se eu não atirei uma pedra na cruz? Encontrando o petardo, não esqueça de me alertar para o fato.




(*) – Uma crônica irônica com os meus desassossegos nos negócios, nas compras sobretudo. Com satisfação ofereço o texto ao nobre casal que em Aldeia, tantas vezes, nos tem feito companhia: Fátima e Roustaing. Ele orientador nessas questões do 3G, mas sobretudo um perito policial capaz de elucidar tanta coisa errada em meu nome. Comente o leitor, por favor e obséquio, no espaço mesmo do Blog ou para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com