segunda-feira, 27 de abril de 2009

Suplente do Cachorro


Estou em Madri! Chequei no dia de ontem! Espero por aqui o meu neto, Pablo de prenome. Vou rever a cidade e hei de passar no Museu do Prado e ao Centro de Artes Rainha Sofia , além do que realizar algumas pesquisas na Biblioteca Nacional de Espanha.
Lembrei da velha história – verdadeira, como indicam as evidências – que contava a minha avó paterna; a história da Nau Catarineta, quando um gajeiro sobe no mastro e grita, a plenos pulmões: Alvíssaras, Capitão, meu Capitão-General/Já vejo terras de Espanha, areias de Portugal. Foi o que vi: areias de Portugal e depois terras de Espanha. Mas, no aeroporto de Lisboa – não podia ser diferente – aconteceu o inusitado. É sempre assim! Comigo as coisas são, em tudo, especiais. Dispararam os alarmes do embarque. E o atencioso português logo indagou: “Falas português?”. Dei-lhe a resposta que desejava ouvir: “Sim! Desde a mais tenra e incompleta idade!”. E ele me revistou da cabeça aos pés. Até as partes mais vergonhosas foram examinadas. Eu parecia um traficante do morro do Alemão chegando à Lisboa de todos os fados. Cumpri, imóvel, o desiderato da hora. E o guarda foi testando o que encontrava, o cinturão e o suspensório, a caneta e as moedas. Passou a mão em mim todo. Fosse eu uma mulher, o acusaria de assédio. Fosse criança, o chamaria de pedófilo.
Viagem cansativa essa, pensava no trajeto, horas e mais horas – 6h30 de vôo – na aeronave, as pernas encolhidas, sem possibilidade de serem estiradas e a cabeça a mil, querendo “viajar” também nos ares da fantasia, lembrando outras passagens e projetando outros futuros. Foi quando me veio à mente um momento para mim de quase trágico e a comédia daquela hora. É que em 2005 passei 5 meses doente e terminei sendo operado da coluna, numa intervenção cujo sucesso devo a Geraldo Sá Carneiro, cirurugião de mão cheia e ser humano de um altruísmo invejável. Pois é, tive ocasiões de delírio e numa dessas situações, não sei porque cargas d’água, achei que estava em Lisboa. Depois de ter feito um curto trajeto de Kombi, estava numa sala na qual ia ser submetido a um ecocardiograma. Foi uma pândega!
Primeiro porque achei que estava tomando o lugar de um cachorro, o qual, marcado para entrar antes de mim, cedera a vez. Que coisa! Mas, deitado na mesa de exame e vendo chegar o profissional médico – meu colega então –, disse-lhe em bom português: “Colega lisboeta! Cheguei aqui em pouquíssimos minutos! E fico pensando o que diria Cabral, se disso soubesse, pois que levou meses para chegar ao Brasil!”. E o médico, perplexo com o que ouvira, nada conseguia responder, senão uma expressão evasiva: “O seu médico lhe dirá qualquer coisa!”. Depois, quando o exame começou a ser feito, a captação do ruído de meu coração era assim: “Au!. Au!. Au!”. Isso me fez lembrar o hipotético cão, o mesmo e que me cedera o lugar, e de forma compungida pedi ao colega: “Nobre colega! Atenda esse cão em seguida, ele me cedeu a vez!”. E o médico, enrolado, inseguro, entre medroso e admirado, repetia: “Converse com o seu médico! Converse com o seu médico!”. E sobre isso nunca conversei, confesso!
(*) - Crônica escrita em Madri, usando o computador de minha filha, sem facilidade com o teclado e sem a ajuda do corretor automático do vernáculo. Comente aqui, neste espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Cara de Tacho


Mulher bonita, dessas que no ontem dos anos encantava qualquer homem. Um tipo mulherona dos anos cinquenta, bem feita e bem parecida, quartuda, de seios generosos, sem que fossem fartos, de pernas torneadas e coxas grossas. Não podia sair na rua sem causar um verdadeiro frenesi, um rebuliço danado, ouvindo galanteios de toda natureza. Homem novo e maduro, velho coroca e senhores casados, celibatários convictos e até clérigos bem resolvidos; todos, enfim, paravam e olhavam o material em trânsito, quando ali, pras bandas da Visconde de Suassuna, desfilava Maria. Ia à venda da esquina ou frequentava a farmácia vizinha. Comprava o quilo de farinha de que se ressentia a cozinha ou pedia duas cafiaspirinas para tratar a TPM. Não gostava de dizer que era empregada, como se usava falar, preferia informar aos perguntadores de plantão que fazia serviço de costura.
Nascida em Camocim de São Felix, no Agreste de Pernambuco, contava que saíra de casa muito cedo, com 16 anos de idade, pouco mais ou pouco menos. Viera ao Recife em companhia de um primo; primo e namorado comentava. Acompanhava o casal uma criança de 6 ou 7 anos de idade, cuja missão principal era a de manter a moral preservada, acima de todas as coisas desse mundo de Deus. A sopa que tomaram foi até Caruaru e dali por diante o trem seria o transporte dessa gente que vinha estrear na Capital. Foi ai que desconversaram o menino ou por outra, foi ai que conversaram o menino, e o primo – primo e namorado – escondeu-se com Maria num recurso qualquer. Não havia motel, sequer um hotel de quinta categoria, capaz de ser pago pelo rapaz. E assim o serviço foi feito. A mulher perdera a virgindade!
Ainda voltou em casa, mas o menino fez a delação e todo mundo tomou conhecimento do comportamento da mulher, engabelada, diziam, pelo primo; primo e namorado, afirmava. O amor se fora e o pai mandou-a de casa pra fora, costume antigo nos sertões, dos caipiras do mato, mas também daqueles que na cidade se refestelavam com o pecado na rua e prendiam as filhas: “Prendam suas cabras que os meus bodes estão soltos”. Ouvia-se isso a três por quatro, em todo canto que se fosse ou em todo canto que se estivesse. Maria de Camocim foi bater com os costados em minha residência - logo aonde! -, na Boa Vista ou em Santo Amaro, ninguém sabe ao certo. Só não entrou com banda de música tocando dobrado, porque não era possível isso nos tempos que vivi. Fizemos boa amizade e a cozinha era o palco de fiar conversa. Conversa vai e conversa vem, um cheiro aqui e outro ali. Nada mais que isso. Aparentava recato! E eu era um menino de 13 ou 14 anos. Não se falava em pedofilia!

Os elogios se sucediam:

- Maria! Você é uma mulher linda! Bonita de rosto e de corpo também. O seu lugar não é pilotando um fogão, você merece mais. Uma vaga no teatro rebolado não será difícil.

E os pedidos também:

- Maria! Deixa de ser ruim! Levanta a blusa!

E nesse papo furado, conversa vai e conversa vem, Maria cedeu um pouco:

- Menino chato! É o seguinte: por quinhentos cruzeiros eu mostro a tela. O filme não, de jeito nenhum.

Ora, a tela era a calcinha e já valia muito. Mas, o dinheiro era grande e eu não tinha. Inventei um cinema e pedi o valor da entrada a meu pai. Recebi e fui lá atrás, ela estava no quarto com a outra empregada: Virgínia dos Palmares. Disse quanto tinha e aguardei a decisão. “Me dá o dinheiro!”. Eu dei! Levantou a saia e no mesmo movimento baixou o pano. A tela foi vista, mas assim, correndo, Maria, não vale. “Vale! Saia daqui!”. E eu sai, com cara de tacho.

No outro dia, estávamos abraçados na cozinha e de súbito entra minha tia. Não havia outro jeito:

- Eu não disse que podia lhe carregar!


(*) Antes de minha viagem a Madri, onde vou receber, de braços abertos, o meu neto Pablo, essa crônica de uma memória distante, cinquenta anos bem contados. Comente no Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br pereira.gj@gmail.com

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Apenas Vadeco

Fazia um tipo parecido com aquele tio, de quem já contei algumas peripécias. Ele próprio lera neste espaço as crônicas que redigi e publiquei, achando muita graça nas narrativas e lembrando outras passagens, as quais nem deu tempo de escrever. Era inquieto e às vezes podia parecer áspero nas palavras, mas aquilo não era senão o seu jeitão. Não era ríspido, era austero! Talvez fosse assim, mais duro com os circunstantes, para esconder a grande timidez de sua personalidade. Ora, sabendo que eu, vez ou outra, encontrava velho amigo seu de infância, hoje um antropólogo de nome nacional – internacional também –, embora tenha anotado o telefone celular do companheiro, nunca ligou, nunca se dispôs a telefonar-lhe para retomar antigas conversas, fiadas em calçadas da Madalena ou da Torre. Quem sabe?
Era, habitualmente, irônico, tanto é que residindo no bairro de Casa Amarela, no Recife, exatamente na Estrada do Arraial, quando foi apresentado à família da atual esposa – era viúvo antes –, fez questão de responder à indagação de onde residia dessa forma: “Moro no Beco da Facada!”. Era o nome vulgar de uma das ruas do lugar, mas não era o seu endereço. Isso deu uma péssima impressão à constelação parental da noiva e precisou ser corrigido seguidamente. Mas, sabendo que eu tinha casa em Aldeia e ele próprio se instalando por lá, decidiu me telefonar. Procurou o número na agenda do aparelho celular e ligou para um outro Geraldo. Foi atendido pela mulher, a qual reagiu às brincadeiras dele. Ai, não quis mais me encontrar e justificou-se à esposa dizendo que a minha mulher lhe fora grosseira. Ora, nem fora e nem foi! Sequer o atendera! Essas tiradas eram suas mesmo, escondia a timidez assim!
Achava uma graça danada nas minhas presepadas, porque sendo o cognome dele sonoro, forte, de quando em vez eu me utilizava do apelido para apressar os meus impasses, sobretudo na República Independente de Todas as Aldeias. Usei, porém, certa vez, no Mercado de Boa Viagem, no boxe dos discos e obtive um bom desconto. Dizia dessa maneira: “Quem me mandou aqui foi Vadeco! Sabe quem é?”. E o homem ficava matutando alto: “Vadeco! Vadeco! Vadeco!”. Não respondia que ignorava o penitente, mas se aproveitava disso para me vender suas peças de vinil, dando o desconto de praxe. Se assim não fosse, me queixaria a Vadeco. De outra feita, o homem da antena externa falhou comigo. Era uma empresa vagabunda, cujo telefone para atendimento aos clientes era o orelhão da esquina. Depois de uma luta grande consegui estabelecer um diálogo e cuidei no alerta: “Ou o senhor resolve ou vou dizer tudo a Vadeco!” O homem não sabia de quem se tratava ou quem era, mas retorquiu de lá: “Não diga nada não! Vou resolver!”. E assim foi!
Havia quem lhe chamasse, também, de Deco, apenas Deco, o final de seu cognome. O amigo de infância e agora antropólogo o tratava dessa forma. E um primo, a quem muito queria e com quem fizera poucas e boas nos idos de jovem, da mesma forma. Os anos de juventude lhe marcaram a vida, definitivamente, contava e recontava os casos ou os causos. Nunca esquecera a vez em que pediu no Mercado da Madalena um caldinho de feijão, mas frisou que não era premiado. Imagino que o prêmio eram os pedacinhos de torresmo que costumam acompanhar o tira-gosto. Ao tomar, todavia, sentiu o crocante entre os dentes, era uma barata cascuda. Não houve jeito e vomitou no banheiro infecto do local vezes e vezes. Tinha horror ao bicho, fosse vivo e bulindo ou fosse morto, integrando o caldo da feijoada. Um horror!
Revendo por aqui as crônicas do Blog, eis que encontro um comentário de Vadeco; comentário que não tinha visto. Ora que recebo de forma instantânea essas observações por e-mail! Contava mais uma história do tio de tantas peripécias. Faz uma narrativa interessante em mesa de bar. É que um grupo de pessoas chegou e pediu: "Uma cerveja e três copos!". Natural! Por certo falaram alto e o meu tio não se conteve, pedindo também: "Garçom! Para mim: três cervejas e um copo!". O caso terminou em briga e não podia ser diferente!
O aniversário de Deco era complicado, porque sendo no primeiro dia do ano, coincidia com as festas do dia 31 e os votos de feliz ano novo já eram seguidos dos parabéns. Passamos com ele a última de suas datas natalícias. Duas de nossas filhas estavam presentes, assim como o genro do Ceará. A filha mais velha, espanhola por adoção, significava um porto seguro para as suas brincadeiras. É que achava a menina – não é mais menina! – parecida com uma das filhas de meu avô; filha de outra mulher, mas uma tia como todas. E a tratava pelo nome dessa tia! E quase faço incluir, na coroa com que lhe homenageamos no derradeiro momento, esse prenome diferente. Mas, de nada mais serviria qualquer que fosse a manifestação. Afinal, tudo estava consumado!
(*) - O Blog atual é diferente, porque comporta uma crônica com um tempero pitoresco, mas é sobretudo um texto de despedida, por isso vai oferecido ao protagonista das peripécias: Vadeco. Comente se quiser no espaço do Blog ou se utilize de um dos e-mails adiante: pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Essa Alma quer Reza!

Dificuldades em viagens de avião, pode crer o leitor, é comigo mesmo. Tenho um sem número de histórias pra contar. Por isso, começo aqui com um passeio que fiz ao Rio de Janeiro, uma presença em certo congresso por dever de ofício. Na ida, sentava ao lado de velho amigo da Paraíba, que no aeroporto já acertara ficar no mesmo quarto que eu. Ora, não gosto dessas companhias de última hora, sou mais do isolamento noturno, mas não podia me negar ao pedido. Afinal, eu estava indo com passagens e hospedagem pagas e ele faria, somente, a complementação da permanência. O problema é que a aeronave no meio da viagem começou a perder altura e a gozação dele com os meus receios transformou-se em medo, quando o piloto informou aos presentes que aquela queda de 500 metros fora para reparar o ar condicionado do avião. Ora pau, disse de logo, quando chegar em casa vou jogar um equipamento desses do telhado em baixo para consertar.
Uma freira, que viajava nas poltronas da fila ao lado, virou-se para mim e indagou,: “O senhor que fala muito, acredita nessa explicação do comandante?” Veja, minha senhora, cuidei em responder, se assim fosse, não teríamos mais oficinas para conserto de aparelhos de ar condicionado e os prédios do Recife serviriam de plataforma para lançamento dos equipamentos quebrados. Teríamos uma revolução tecnológica em pleno centro urbano da cidade. Melhor será a senhora continuar a rezar o seu terço e garantir a nossa ida coletiva para os céus. Valha-me Deus! O meu companheiro, então, me convidou para tomar uma cerveja na copa traseira da aeronave e lá fomos nós! Indagamos, então, do comissário o que havia. Ele, escolhendo a latinha que nos ofereceria, explicou que vivíamos uma pane, mas ignorava as razões. Mais um motivo, comentei, para que brindemos a proximidade da morte. E o piloto fez a aterrissagem na Bahia, descemos todos e trocamos de avião. Foi uma pândega!
Na volta, um colega para mim desconhecido sabia de minha experiência anterior e como tinha um medo inusitado de viajar pelos ares, já estava completamente bêbado, ao me ver entrando, porém, não perdeu tempo: “Colega! O que acha dessa aeronave?”. Olhei a cabine de passageiros e simulei verificar os detalhes. Respondi com uma segurança diferente: “Veja! Não confio na estrutura que acabo de examinar!”. Coincidência ou não, quando estávamos todos acomodados, a voz do comandante se fez ouvir: “Por motivos técnicos faremos troca de aeronave!”. O mesmo colega me viu chegar para a nova acomodação e me pediu uma opinião. Pensei e refleti com os meus botões: “Não é possível repetir o defeito!”. Respondi com toda a minha segurança que ficasse em paz, na tranqüilidade dos anjos: viajaríamos em segurança. E assim foi!
De outra feita, fazendo a ponte São Paulo/Rio de Janeiro, sentei junto de um caipira que viajava pela vez primeira. O avião começou a balançar e ele na maior serenidade virou-se para mim e expressou: “É assim mesmo! Foi o que me disseram os meus parentes!”. Eu aproveitei a estréia do matuto e respondi: “Negativo, meu amigo! Não é assim de jeito nenhum!”. O pobre mortal molhou-se de suor dos pés à cabeça! Foi de dar pena! Nessa oportunidade eu vi o mateiro chamar a aeromoça de garçonete e quase caio de tanto rir. A jovem, uma senhora já, de ancas largas e busto protundente, de cabelo pintado da cor do ouro e unhas vermelhas, cor de sangue, quase mata o meu vizinho de poltrona. Disse-lhe poucas e boas! E ao final lhe expliquei: “Trate a suplicante por comissária! Melhor assim!”. Ele por pouco não me perguntou se era ela a mulher do comissário de seu bairro. Valha-me Deus do céu!
De outra feita, sentei-me junto de uma cearense que vinha de Fortaleza e já tinha tomado umas três doses de uísque. Assim mesmo, bebida nacional, escrita em bom português. Perguntou, à queima roupa, quase: “Qual o seu destino final?”. Respondi sem titubear: “Brasília!”. Era o mesmo dela, razão para apresentar uma lista de perguntas e ter uma resposta a cada indagação. Depois, meteu o pau no marido, condenando o seu comportamento no cotidiano das coisas e na exceção das regras da vida. Era um horror aquele homem, pensei! Não lhe ajudava nas obrigações domésticas, não lhe tinha por esposa nos compromissos do afeto e muito raramente a elogiava em suas prendas físicas, as quais, se bem me lembro, não eram tantas. Pior se considerasse os compromissos no leito conjugal. Imaginei, de pronto, essa alma quer reza!

(*) - O leitor, se desejar, depois da leitura, faça um comentário qualquer. Use o espaço do Blog, propriamente ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

quarta-feira, 8 de abril de 2009

A Bebedeira de Judas

Bateu em minha porta numa sexta-feira santa, faz uns 40 anos, pouco mais ou pouco menos. Julgava que eu era um exímio conhecedor das regras canônicas e por isso me procurava: “Geraldo! Você que é católico e entende das coisas da Igreja, é proibido beber hoje?”. Ele estava iniciando um processo, que terminou por levá-lo ao alcoolismo. Eu disse que na realidade não sabia disso e que achava melhor ele se abster – eu era meio carola –, haja vista o fato de se exigir, à época, jejum e abstinência. Mas quem está prestes a enveredar pelo vício, tem as justificativas todas. Argumentou que considerava a proibição em causa, mas para a cachaça e o conhaque, julgando que o vinho, propriamente, estava liberado, bastava lembrar que fora o próprio Cristo quem transformara a água em vinho – ah se ele tivesse esse poder! – ou fora Nosso Senhor quem consagrara o pão e o vinho. E tomou um dos maiores porres de sua vida.
Era uma figura conhecida na rua, transitava em todos os grupos, trazendo o infortúnio de ser considerado o mais feio dos amigos daquele lugar. Isso não era uma brincadeira qualquer, mas o resultado de uma eleição feita na Festa da Mocidade, quando o locutor pediu que fossem apresentados nomes de rapazes assim, horrorosos, sendo o dele vítima do maior número de sufrágios. A molecada o aplaudiu até não poder mais, numa vibração mórbida, quase funesta, de um título macabro para um adolescente. Dessa forma, ganhou o concurso – nem sei se houve prêmio –, mas carregou o estigma a vida toda. Por onde passava havia sempre quem lhe apontasse: “Lá vai o campeão da feiúra!”. Talvez – Quem sabe? – esse trauma tenha concorrido para o vício com o qual se pegou.
Mas, continuando com o mote da Semana Santa, tema que abre a crônica pascal, houve lá pela rua uma malhação do Judas; lá pela rua, em termos, porque chegava até os domínios da Afonso Pena e por todo ambiente do Pombal. E o nosso penitente foi detido, levado para a Delegacia de Plantão e recolhido. Outro amigo, esse habituado a ajudar toda gente, pau pra toda obra, como se dizia, proprietário da Kombi que servia de motel à rapaziada, se dispôs de logo a soltar o colega, companheiro de rua, comparecendo à delegacia. Chegando por lá, indagou a uns e a outros, recebendo sempre como resposta a negativa: “Não costumamos prender quem faz malhação! Chega por aqui, é advertido e solto!”. Mas, o amigo, cioso de seus compromissos quase filantrópicos, pediu para vistoriar o buque, como se costumava chamar a prisão, encontrando o mais feio de todos os homens conhecidos naquele lugar. E o delegado: “Se eu não pensava que esse era o Judas eu cegue!”.
Certa vez, no entanto, saiu com a turma – hoje seria uma galera –, sendo decidido pelo grupo passar na rua do Príncipe e tomar um chope. Era costume servir a bebida com uns ovos coloridos, cujo processo de cocção, francamente, nunca entendi. Isso caiu de moda. Disseram então a ele, ao feio, que já estava decidido a tomar dois chopes com dois ovos, que o plural de ovo era aberto: ovos. Sendo assim, achegou-se do balcão e fez o pedido abrindo o plural logo das duas palavras: dois chopes e dois ovos. Foi uma gozação sem par e ele, simplório como era, apenas explicou que se uma palavra tem a pronúncia como lhe fora dito, naturalmente a outra seria do mesmo jeito. Não lembrou que a língua, o nosso vernáculo, é cheio de atropelos de última hora, que funcionam mais as exceções que as regras. E por ai vai!
Dias antes da revolução de 1964 e da instalação da ditadura, conseguiu um emprego na previdência social, a partir de uma amizade de seu irmão com um mandachuva do PTB, partido, então, dominante. Empregaram-se os dois e o nosso personagem passou a ser colega de sala – imaginem isso! – de uma amiga de minha mãe, frequentadora habitual da casa de meu pai. Resultado, com a instalação do estado de exceção, o seu irmão foi demitido e ele mantido, razão pela qual ainda hoje é funcionário. Ignoro se já está aposentado, mas com toda certeza recebe proventos do governo. A sorte, pelo menos ai, lhe foi companheira.

Eis o vinho da bebedeira de Judas e as razões da prisão do traidor.
(*) Uma crônica pascal. Escrita sob a inspiração de meus amigos de infância e de adolescência, feios ou não. Desejando comentar, o faça no espaço do Blog ou use os e-mails pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com Boa Páscoa a todas e a todos.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Galego do Mel

O cenário era simplório: a minha casa em Olinda. Num bairro ao tempo ainda bucólico – Duarte Coelho –, à entrada da cidade, nas proximidades da moradia dos meus sogros e na vizinhança de alguns parentes. Era viva a minha tia! Os protagonistas somos nós mesmo, eu, muito jovem ainda, na casa dos trinta anos e minha mulher também, cursando a mesma década de vida. As duas filhas mais velhas pequeninas – a caçula só chegaria depois –, e uma ou duas secretárias do serviço doméstico. O drama era o de sempre: a falta d’água. Dizia-se, à época, que em Olinda de dia faltava água e de noite faltava luz. Hoje mudou, chegaram os avanços! Naqueles anos usava-se fraldas comuns, a serem lavadas sempre que estivessem sujas, ao contrário da atualidade, quando tudo é descartável. Minha mulher estava desesperada, não havia como dispor mais desses apetrechos infantis limpos, para o adequado uso.
Diante do aperreio, não tive dúvidas e disse que resolveria de toda forma. Decidi usar o artifício do trote telefônico; recurso do qual tenho me valido em algumas de minhas dificuldades pessoais. Peguei o telefone, depois de ter identificado o número do escritório da companhia no município e fiz a ligação. Ao meu interlocutor disse de logo: “É Fernando, assessor do Governador! O gerente está?”. Há sempre um Fernando em qualquer gabinete. A resposta foi a mais atenciosa possível: “Pois não Dr. Fernando. Um minuto apenas!” E o gerente, mais atencioso ainda, ouviu o meu lamento: “É! O Governador está muito perturbado. Há um correligionário nosso sem água em casa e isso está deixando o líder inquieto.”. Ora pau, quem já viu o líder se perturbar com isso? As providências, então, foram prometidas: “Dr. Fernando! Por favor! Diga ao Governador que fique tranquilo, nós vamos atender o amigo dele imediatamente!”. Eu não era amigo de ninguém importante, tampouco do mandatário maior. Aguardei, assim, o tão sonhado e valioso líquido.
Chegou um carro pipa, como se chama por aqui o caminhão com um tanque d’água às costas. Identificada a residência, uma mangueira fez a passagem do precioso conteúdo para os meus reservatórios. Não precisa dizer que os vizinhos acorreram em direção ao veículo, pedindo um atendimento que fosse, um pouco daquela água que chegava. O motorista, ciente de suas obrigações, adiantou, de logo: “Um momento! Primeiro aqui! O dono da casa é amigo do homem!”. E o meu sogro se aproximou com a simplicidade dele e me pediu para abastecer o seu domicilio também. Ora nada mais justo: “Mas, o senhor espere terminar aqui!” E no final, não somente a família de seu Gama preencheu o reservatório doméstico, como também os outros vizinhos coletaram latas e mais latas do bem. Terminado o serviço, o condutor do carro e operador do fornecimento, indagou: “Quando o senhor deseja mais água!”. Dentro de dois dias, respondi, e assim foi.
Às vezes, o trote tem finalidade diferente: a de vencer uma situação de stress grande. Foi o que aconteceu, recentemente, com a intranquilidade de minha mãe doente e de um cunhado (irmão de minha mulher) seriamente enfermo. Não hesitei, liguei para um amigo e falando com uma voz matuta, disse: “É o galego do mel!”. E o meu interlocutor: “É! Eu não estou lembrando de nenhum galego do mel!”. E o diálogo prolongou-se com uma discussão infrutífera e sobretudo ficcional de uma venda do adocicado líquido. Uma compra de 50 garrafas, que o meu interlocutor de ocasião contestou e não houve jeito de aceitar a imaginária transação. E noutra ocasião, o galego do mel quase ouve o que não gostaria, tal a reação da vítima do trote. E por ai vai!
Margarida da Universidade, personagem de outras crônicas, vez ou outra cai na cilada do telefone. Dia desses, liguei e me apresentei como sendo um vendedor de túmulos. Margarida é medrosa e teme as almas penadas do purgatório. Com isso, não houve jeito de aceitar fazer um investimento, adquirindo um pedaço de chão para o seu repouso eterno. Só faltou desligar na cara e se tremeu toda, diante da proposição inusitada dessa aquisição funesta. Valha-me Deus do céu, foi o que disse!

(*) - A crônica vai marcando um período que me parece melhor. Afinal, a minha mãe saiu do hospital e o meu cunhado está de alta marcada. Isso, com toda certeza, revunesce o espírito. O leitor generoso pode comentar no espaço do Blog mesmo ou para pereira@elogica.com.br , ainda para pereira.gj@gmail.com Se não desejar dizer deixar as suas observações, fique na santa paz e grato pela leitura.