Aqui, neste quarto de hotel, distante de tudo e de todos, faço o exercício da solidão ou a prática do diálogo interior, que é o monólogo d’alma. Sou ao mesmo tempo duas pessoas: uma que pergunta, apenas, e outra que responde, somente. Rejeito as companhias que tenho, os trovões e os relâmpagos nos céus de Belo Horizonte e vou à janela convocar parceiros para a longa jornada do absolutamente nada. Afinal, os programas de televisão não passam dos desenhos inteiramente desanimados e dos filmes de monstros. Nenhum diretor de TV considera, com razão, que no horário da tarde um marmanjo qualquer possa ligar o receptor. Ora, cheguei com 12 horas de antecedência e não há o que fazer, senão isso, refletir e olhar os ares do mundo. Há gente, todavia, como posso identificar, nos arredores do imenso prédio em que me encontro. À direita e à esquerda, em frente, especialmente: cumprem todos as rotinas do dia-a-dia das coisas.
Uma senhora muito velha, a jogar baralho, e uma moça findando o banho, um casal, o chefe e a secretária, encerrando o expediente e finalmente um jovem digitador, ao computador, mas com fones de ouvido, para esquecer da labuta o tédio! A idosa mulher distribui as cartas sobre a mesa e fiel às regras do jogo e realiza, com paciência, a união dos valetes e das damas, dos reis de copas e de outros naipes, também. Tem muita dificuldade em juntar as peças da sua partida solitária, mas vai fazendo como pode, coçando a cabeça branca, vez por outra, num princípio de desespero que não lhe toma o espírito. Por certo, é viúva, já viveu dias melhores e pôde dispor de companhia em horas assim, de isolamento estabelecido. Se foi feliz no casamento, se teve filhos ou não, é impossível concluir dessa distância, numa visão simplória de seu apartamento, tão apertado quanto a gaiola de seu pássaro. Um canário belga, por coincidência, pendurado na parede de frente, trina os maios belos acordes das saudades, porque as aves encarceradas cantam em louvor à fêmea imaginária, sempre. Desiste do baralho e liga o aparelho de televisão, sintoniza o canal desejado e se deita numa cadeira enorme. É gorda, descubro, obesa mesmo, imagino, enquanto lhe observo o jeito, alisando o imenso ventre, posto assim, à curiosidade de forasteiro tão curioso, quanto eu, sem ocupação, que seja. Abre a boca, fortemente, arriscando deslocar a mandíbula, tal o sono de que é tomada. Faz o sinal-da-cruz na cavidade oral, aberta como está, virada para o mundo. Apaga a luz dali mesmo e se recolhe. Vai dormir, imagino! Não tem insônia, reflito! É diferente de mim!
À esquerda, porém, há mais vida e mais movimento, na larga vivenda do quarto andar. A empregada, vestida a caráter, de azul marinho e golas brancas, arruma a cama do casal, bate o lençol e forra a colcha que me parece de cor vermelha. A moça, ao banheiro, por trás do vidro quase fosco, deixa aparecer do pescoço para cima, apenas, com a toalha posta à semelhança dos lutadores de boxe e passa o pente nos longos cabelos negros. Lembro-me de Sophia, musa dos meus anos de menino, trancafiada em casa, para não mostrar a beleza a toda a gente da rua. Olha, da forma mais fixa possível, em direção à janela do hotel, assistindo, de longe, à minha solidão. Termina o exercício com o largo e bem cuidado manto piloso e sai, vai assistir televisão, também, na sala de casa. Não chegaram os pais, compreendo, ocupados ainda com os ardores do trabalho e a telinha ajuda a matar o tempo. A escuridão da noite, entretanto, vai acendendo as luzes da moradia, uma na frente e outra atrás, a do corredor e a da varanda, a da área, finalmente, onde vive a criada, fantasiando o porvir, nutrindo os devaneios da metamorfose da criatura, cujos horizontes, socialmente estreitos, reclamam larguezas.
Diante de mim, bem na frente, um escritório vive o final de mais um dia e o chefe, de gravata encarnada, salpicada com detalhes que não posso divisar, exatamente, faz o balanço da jornada com a jovem secretária, cuja blusa, percebo, é da mais pura seda, champanhe na cor. Noto que ajeita os cabelos, bem soltos, com as mãos, dando um jeito, que seja, no penteado armado e arrumado pela manhã, ainda. Ouve as palavras nascidas na boca da autoridade competente e sustenta o diálogo, uma observação ou outra, mostra um papel e anota um lembrete, reúne formulários diversos e encerra o expediente, penso. Pelo menos, desliga a iluminação por inteiro. Vou descendo para jantar, quase informo, não fosse a distância dessa separação dosconvívios. Escolho o prato à sugestão do garçom, que em Portugal se chama escarção, dizia Paulo Malta - isso nunca confirmei! De logo retorno à solidão do quarto. À janela, outra vez, posso flagrar acesas todas as luzes do escritório. E a mais do que jovem secretária, terminando de vestir a blusa, passa o pente, agora, na beleza de seus cabelos, dando adeus ao chefe. Pareço ouvir: “Até amanhã!”
A cama é grande e fria. O sono é bem maior e os sonhos inebriam o espírito. Até amanhã, também!
(*) Crônica antiga, escrita durante viagem a serviço, antecipada nem lembro as razões. O leitor que me acompanha e anda reclamando da falta de periodicidade, o espaço para comentários está aberto, aqui mesmo, no Blog, além dos e-mails pereira.gj@gmail.com e pereira@elogica.com.br