quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O Tio do Boy

Folclórica figura essa que pontificou por aqui, na minha rua. Passou anos e anos frequentando a redondeza nos fins de semana, apenas. Vinha fazer um bico, ganhar um dinheiro qualquer nas cercanias, nos bares, cuja proliferação, de uns tempos para cá, tem sido crescente. Tomava conta dos carros e vendia jornal ou preparava o cachorro-quente e servia à clientela. Tinha, porém, a mania de me incomodar, quando a noite embalava a madrugada ou pela manhã, no domingo. Pedia um copo d’água bem gelado ou implorava um trocado, oferecia os jornais do dia, mesmo sabendo da minha condição de assinante ou inventava uma estória qualquer, de ladrão rondando a casa ou de suspeitos pela vizinhança vagando. Queria lavar o automóvel a todo custo ou fazer um mandado.
Não usava o nome próprio – ignoro seu prenome –, preferia o cognome e se apresentava assim, como Boy, simplesmente. À porta de casa, quando indagado de quem se tratava, respondia da forma mais sonora que pudesse: “É o Boy!” E de nada serviam as advertências para evitar os incômodos.
Certa noite, eu nem havia percebido a ausência do Boy, embora me admirasse da hora correndo e do silêncio no portão, tocou o telefone celular. Ora, esse apetrecho da modernidade é de muita valia nos chamados dias úteis, mas costuma deixar o penitente em paz nos feriados nunca inúteis. Atendi e na perplexidade do momento e identifiquei o meu interlocutor de ocasião: “Aqui é o tio do Boy!”
Imediatamente, antes mesmo de prosseguir no diálogo, fui ver se tinha jogado uma pedra na cruz, porque um padecimento desse só pode se reservar, mesmo, aos que apedrejam o crucifixo. Diga-me lá, meu senhor, perguntei: “Quem lhe deu o número deste telefone?” Não obtive resposta, antes ouvi, com igual perplexidade, a precisão do homem. É que morrera a avó do Boy, em cidade do interior, quando lá estava a passeio e um dos filhos, tio, portanto, desse personagem mais que folclórico, desejava trazer o corpo para o Recife. Gostaria, explicou, de contar com a minha colaboração, conseguindo uma camioneta e fazendo o transporte da urna funerária.
Pouco ou nada serviu a justificativa de não contar em casa com o veículo desejado e mais, o longo esclarecimento da ilegalidade dessa remoção. O moço insistia com o pedido, dizia tratar-se de uma caridade e se não tinha a condução pretendida, pedisse a um amigo, falava, para atender a uma família enlutada e chorosa, vivendo o pranto da perda. Confesso que não aguentei mais e terminei dando o número de outra pessoa, de um colega aqui das meninas, Alexandre de prenome, Fofurinha por apelido, passando adiante a questão. Fosse pedir a ele, que sendo dono de uma empresa dispõe de um veículo desse.
E o danado do tio do Boy fez a ligação, mas não teve a sua desdita bem interpretada. O rapaz, diante da solicitação, imaginou tratar-se de brincadeira e levou o seu interlocutor na graça. Mostrou caminhos e ofereceu remédios, na galhofa, sempre! Mandou que solicitasse da falecida a colaboração, ressuscitando por algumas horas, apenas, e deixando para morrer na segunda-feira, quando tudo é mais fácil, ou que pegasse um ônibus e viesse morrer no Recife. Ou aplicasse, na veia da “véia”, a melhor penicilina, para levantar-lhe as forças.
É dispensável dizer que o tio, filho da defunta, desligou o telefone na cara e foi se resolver de outra forma. E do Boy, verdadeiramente, não se tem notícias. Ignora-se o destino. Se vive hoje dos bens da falecida avó ou se aproveita a pensão da previdência e vai levando. O certo é que por aqui, nos domínios pombalinos, metade Boa Vista e metade Santo Amaro das Salinas, nunca mais apareceu. Graças a Deus, aos anjos e aos santos.
 
 
(*) - Um texto antigo, adaptado ao hoje dos dias, uma crônica pitoresco para o momento leve que se deve ter nesse intervalo de tempo, entre o Natal e o Ano Novo. Artigo reproduzido, de hábito, pelo jornal virtual "A Besta Fubana". Comente o leitor se desejar, no espaço mesmo do Blog ou para os e-mails pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

domingo, 16 de dezembro de 2012

Histórias do Ceará-Mirim

                Na rua em que morava quando menino tinha uma casa muito grande de esquina; casa avarandada, de vários cômodos, como se notava olhando de fora. O alpendre circulando o prédio, raramente acolhia um penitente que fosse e no jardim um enorme jambeiro fazia a festa da meninada. O meu pai chamava a casa de Guaporé e eu passei a chamá-la assim também, sem entender bem as razões daquele cognome. Era comum dizer: “Vou andando até o Guaporé!”. Depois é que entendi os motivos do apelido predial, a construção tinha muito a ver com a casa da infância paterna, no vale do Ceará-Mirim. E eu me criei ouvindo histórias de lá, da terra em que nascera Nilo Pereira.

Meu pai guardava os hábitos que trouxera de sua família original, como aquele de esperar a passagem do ano com os filhos, a esposa, a mãe e a tia na sala de casa. E quando se aproximava a hora da virada, mandava que fossem acesas todas as luzes, objetivando receber o novo ano com a maior claridade possível. Isso acordava o meu pintassilgo, todos os anos. Não era supersticioso, dizia, mas tinha lá os seus cuidados. Não deixava um sapato emborcado por nada nesse mundo e se resguardava das pessoas capazes de botar olhado. Havia uma senhora assim, figura que vez ou outra aparecia e ele não queria conversa, recolhia-se imediatamente a seu quarto de estudos, “a jaula”, como chamava, onde se mantinha preso. Voltava-se para a leitura; leitura, aliás, com a qual se ocupava horas e horas do dia. Lia, às vezes, dois ou três livros de uma vez.

Na última noite de vida quase não conseguiu dormir. Eu estava a seu lado, deitado em colchonete junto à sua cama. E ele a certa altura indagou: “O que faço agora?”. Não tive dúvidas: leia. Ele abriu um livro que estava em sua cabeceira, depois outro e não fez mais do que passar as páginas, não parecia ter disposição para fazer o que mais lhe agradava, a leitura. Foi assim, com uma brincadeira que fiz, estirou o braço e com a mão fez um gesto: basta. Como quem diz, não há mais espaço para graça! Pela manhã, logo cedo, depois do amanhecer, me despedi, precisava dormir. Ele me disse: “Preciso falar com você! Passe aqui mais tarde!”. Combinamos isso, mas quando cheguei em casa tive a notícia: “Dr. Nilo morreu!”. Nunca soube o que queria e de nada serve imaginar, fantasiar. Fiz mil conjecturas a propósito do que seria. Mas, é impossível descobrir o que tinha em mente.

Gostava de ouvir música clássica, de sentar numa cadeira de balanço, dessas de palhinha e deixar-se embalar pelos acordes de um Beethoven, de um Chopin ou de um Mozart. Na noite em que comprou uma radiola, convidou os amigos para um café – não era de bebidas com álcool –, formando-se uma roda no terraço de casa. A minha mãe, pouco versada em matéria de recepção, decidiu-se por servir um conhaque acompanhando as finíssimas xícaras de café chinesas, do tipo casca de ovo, mas não tinha o traquejo com a bebida, um Macieira cinco estrelas, ganho de presente no Natal e ainda fechado. Resultado, serviu o aperitivo em pequeníssimos cálices. Muitos anos depois, no Hotel Ducal, em Natal, vi um garçom servindo o conhaque e descobri que o copo era outro, bem diferente daqueles. E que havia um ritual próprio.

A minha avó veio do Ceará-Mirim com uma irmã – a tia velha –, com enormes baús de madeira, nos quais guardavam o pouco que tinham de roupas e de peças oriundas da casa na rua São José ou ainda o que dispunham do velho engenho Verde-Nasce. O que mais chamava atenção do menino que fui, eram os pratos de uma louça de qualidade duvidosa, mas com a marca do pai delas, meu bisavô: Victor de Castro Barroca. Lia-se o nome dele gravado nas peças. Elas não davam valor àquele material e com esses pratos serviam-se os pedintes no portão; àqueles sob a proteção de minha avó, cuja recomendação sempre foi: “Não se nega uma esmola!”. Havia, também, o que restou de certo faqueiro de prata, com a inscrição “B”, representando a família Barroca, de onde vinham a avó e a tia velha.

Essa tia, Deolinda de prenome, era moça velha, como se usava dizer e o que se contava a boca pequena, nunca confirmado por ela, é que fora noiva de um soldado que morrera na Guerra do Paraguai e a partir daí não se engraçara mais por ninguém, ficara viúva sem que fosse casada. O noivo fora, a bem da verdade, à Guerra de Canudos, vi depois, consultando alfarrábios virtuais.  O engraçado nela é que tendo nascido na noite de Natal, ficava indignada com a brincadeira de que teria a idade de Cristo. Mulher sem eira nem beira, dependia dos parcos recursos de meu pai, mas nunca dispensou uma fezinha no jogo do bicho, no qual muito raramente ganhava. Tinha uma caixa de fósforos com os números todos da roda do bicho e era dali que tirava os palpites.

Ouvi muitas histórias, como a do acendedor de lampião e tantas outras. Mas isso fica para outra vez.
 
(*) A crônica é reproduzida pelo Jornal A Besta Fubana, sob a gerência bem conduzida do Papa Berto I, a sua Papisa e mais, o Papinha. Deus os proteja e os proporcione um Natal pleno de harmonia e luz.

 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Ainda a Festa da Mocidade


Quando chegava o fim de ano, instalava-se no Parque 13 de maio a Festa da Mocidade. O meu pai recebia um permanente familiar, significava dizer que podiam entrar todos da constelação parental. Mas eu levava comigo muito mais do que isso, porque me juntava aos amigos e aos colegas e com eles ultrapassava o portão. Uma vez ou outra o porteiro indagava: “Quem são esses?”. E se conformava com a resposta, mesmo que não acreditasse: “São os meus primos e as minhas primas!”. E com esse primado todo curtia a festa. Havia tudo que era brinquedo: roda-gigante, tira-prosa, polvo e carrossel. Sem falar nos carros elétricos, que custavam caro, mas seduziam a molecada.

Havia uma recomendação paterna que não se podia atender, a de não frequentar o teatro, porque ele protestava, quase que diariamente, através do jornal contra a indecência e a corrupção dos costumes. Pois era ao teatro que íamos de logo. Certa vez, no “sereno” da peça “Tem bububu no bobobó”, encontrei um tarado que me falou da investida que sofrera a sua irmã por parte de um colega seu de perversão. Não respeitaram nem a irmã do tarado, foi o comentário final. Mas, do lado de fora da casa de espetáculos via-se tudo e ainda havia a possibilidade de se olhar os camarins. Ora, em determinada noite, estava um dos colegas posto na condição temporária de voyeur, quando um soldado da radiopatrulha segurou-o pela gola. E ele, sem atentar para a hora, disse: “Ainda é minha vez!”. Quase sai dali para o xilindró.

Engraçado foi daquela vez em que o meu pai, depois de ter ganho um sapato rainha, negou-se peremptoriamente a usar. Ele achava que um sapato de pano não lhe era apropriado. Talvez nem fosse! Me deu o calçado e eu imediatamente o calcei e parti para o passeio a dois, quer dizer com a namorada, na Festa da Mocidade. Ali, sentei-me com ela e o sobrinho dela numa mureta da fonte d’água. Quando estávamos relaxados e a conversa fluía solta, histórias fiadas e muito bem contadas por mim, o rádio da Festa anuncia: “Atenção! Atenção Geraldo Pereira, volte para casa, pois seu pai precisa sair com o sapato!”. Foi um horror, porque levantei assim que o meu nome foi verbalizado, motivo para que todos tenham notado o meu constrangimento e depois quase não consigo explicar que se tratava de uma brincadeira.

Andando pelas alamedas iluminadas tinha-se de tudo. O jogo de azar imperava e os menores eram proibidos de apostar, mas apostavam. Fazia-se uma fezinha aqui e outra ali. Barracas de bebidas, também, não se permitiam atender à gente ainda imberbe, mas atendiam. Vez ou outra uma dose de Cinzano, quando não de Martini. O cabo Marcha lenta comandava o policiamento local e andava remando, tal a compleição física. Havia, todavia, o Dono da rua do Imperador, também conhecido como General da Cavalaria Submarina, um maluco que usava dezenas de medalhas sobre uma farda que misturava as três forças de uma vez. E eu nunca dispensei uma galhofa com o homem, dizendo-lhe que me considerava à sua disposição para uma intervenção qualquer. Fosse onde fosse! E por ai a gente fazia de um limão uma limonada.     
Na Noite de Natal, já expliquei e bem explicado, comparecíamos à Missa do Galo na igreja de Fátima. Rezar, raramente rezávamos, mas acariciávamos as cabeças cobertas por véus tão alvos quanto a pureza do lírio. Ou cochichávamos a cerimônia toda, sem darmos brecha a quem desejasse interromper o balbuciar das palavras finamente escolhidas. E o peru aguardava para ser degustado com guaraná Fratelli Vita.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O Natal em outros tempos


Noite de Natal, natal dos idos de sessenta, Natal dos meus dias de adolescência, Natal dos meus sonhos de rapaz!

Era a Festa da Mocidade, no Parque 13 de Maio, o lugar de passear, de andar pra lá e pra cá, palmilhando alameda por alameda, caminho por caminho, em busca de um coração solitário. Uns já chegavam abraçados, protegendo longos cabelos de uma adolescente em flor, conversando frases de menino e fantasiando coisas de adulto.

Depois, quando os ponteirinhos do relógio começavam a se unir, para juntos cantarem o nascimento do Cristo, já estávamos todos - rapazes, moças e até gente grande - reunidos para a Missa do Galo. Os casais de namorados continuavam enlaçados e o véu branco espraiava-se na negritude dos fios quase de seda, que chegavam à cintura, mostrando a toda gente a pureza virginal da mulher amada.

Deixadas as moças em casa, trocávamos o sagrado da noite pelo profano, outra vez, da festa. Aí, já tarde, de madrugada, terminávamos assistindo o Pastoril do Velho Faceta ou às revistas de Colé e Walter Pinto. Mulheres pra lá de bonitas, as coxas grossas das pastoras povoavam o devaneio onírico dos dias seguintes e os corpos esculturais de algumas vedetes preenchiam o cotidiano de outros sonhos. Aí, surgiam as que atiravam livremente e não tinham, como não teve Mirtes, que mostrar a aliança de casada ou o compromisso do noivado. Umas, mais levadas, lançavam-se ao primeiro olhar e outras aparentavam o pudor feminino dos tempos passados, o pudor que exige a conquista e que pede o carinho e o afago, antes do carnal contacto.

Os dias se foram rápidos, passaram velozes, como se representassem gotas d’água fluindo catarata abaixo. Desapareceu a Festa da Mocidade  e também, morreu Mirtes. De Noêmia nem sei mais e com as meninas perdi o contacto. Os amigos da juventude se foram, cada qual pra seu lado. Vejo-os, ocasionalmente, passam ligeiro e acenam, somente acenam, porque não há mais como parar na noite de Natal. Ficaram as reminiscências, reminiscências que renascem, ressurgem no que se escreve, quando uma palavra, um nome, faz o pensamento voltar, regredir quarenta anos no tempo, como se possível fosse atrasar o mesmo reloginho, milhares de vezes, fazendo os ponteiros se tocarem na hora do nascer do Cristo, há duas vintenas de anos atrás. E como não há meio de retornar no tempo, escrevo, só escrevo, para externar o sentimento próprio.
 
(*) Um artigo antigo, guardado em meus alfarrábios virtuais, que atualizo e saudo o Natal que vai chegando, desejando a todos que os sinos da noite mágica continuem dobrando, alertando os irmãos em Cristo para o pecado do ódio e do desprezo. Desejando o leitor comentar, use o espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira.gj@gmail.com ou ainda para pereira@elogica.com.br

 

 

 

 

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Estão voltando os pássaros

             Este pássaro que começa a cantar tão cedo, antes da 4:00 horas da manhã, por certo é uma ave exótica, pois que dificilmente alguém teria coragem de manter aprisionado passarinho assim, cantador, se fosse bicho da terra. A minha insônia do despertar precoce me faz ouví-lo quase que todos os dias, quando vou ao banheiro, depois de ter me levantado da cama precocemente. Bem que poderia dormir mais um pouco, mas entram ai as minhas heranças parentais; repito o meu pai, a minha tia e a minha avó. É isso mesmo!

Mas, a boa nova que me ocorre lembrar é, justamente, aquela que me transmitiu o nosso Roberto Harrop, fotógrafo quase oficial lá pras bandas de Aldeia. Estão voltando os canários-da-terra mandou me dizer e depois repetiu de corpo presente, como diziam os antigos radioamadores. Foram flagrados por sua câmera, bicando sementes no capim do Bosque das Águas de Aldeia. E comentou, com a sabedoria dos entendidos: “Eram canários jovens, de cor branca (leia-se escura), o que faz crer que nascidos há pouco. Tinham se livrado da sanha maldosa dos pardais, bichos inclementes, trazidos para cá por quem desejou matar os velhos “lacerdinhas”, insetos incômodos e portadores de um líquido urticante.

Lembrei, vendo as fotografias que enviou, dos meus tempos de menino, quando tinha no terreiro de casa uma quantidade enorme de canários-da-terra. Passarinhos de todos os tipos, brancos e amarelos, como o ouro que reluz. Canários cantores e outros de briga. Eram todos abarrancados, como cabe ser aos bichinhos do mato. Eram mudas de mato, muito raramente um muda de casa. É que eu mesmo espalhava alpiste pelo quintal e depois disfarçava os alçapões e arapucas e prendia os bichinhos. Ainda lembro de duas canárias do tipo “coruja” que no piso do viveiro brigavam que dava gosto, para garantirem um macho da cabecinha encarnada feito um rubi.

Como não consigo dormir o quanto desejo, saio de casa muito cedo e encontro o nosso ilustre fotógrafo a clicar paisagens e pássaros. E digo: conte-me lá uma boa nova. E ele: “Estão voltando os pássaros!”.

(*) Desejando o leitor comentar, que o faça do espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com O texto é reproduzido no Jornal da Besta Fubana, órgão sob a supervisão do Papa Berto I e de sua papisa.
 

sábado, 24 de novembro de 2012

Um menino peralta

               O menino era endiabrado, fugia de casa o dia inteirinho e a mãe corria atrás, pedindo ao engraxate da esquina que a ajudasse na captura do fugitivo infantil. Até que um dia o homem dos sapatos justificou que seu oficio era outro, diferente daquele, isto é, da captura de meninos fugidos. Fazia mal às galinhas do terreiro e maltratava os gatos. Curou o galo que estava com um gogo desgraçado. Aplicou-lhe uma descarga violenta de ar com uma bomba de encher pneu de bicicleta. E a ave curou! Um dia, comprou um petardo de São João, prendeu num barbante de boa fibra e amarrou do rabo de um gato preto; diante do estouro o bichano deu um salto mortal e ainda hoje corre para se livrar do incômodo.

Havia pras bandas das touceiras de banana – banana maçã -, um ninho de uma galinha pedrês e a bicha, choca como estava, corria atrás do primeiro que se aproximasse. Ora, o menino soube por ouvir dizer que a água tirava o choco e pegando a penosa pelas asas levou-a ao tanque de lavar roupa. Foi grande a surpresa quando se viu invadido por pixilingas, das mais agressivas daquele quintal e disso nunca esqueceu. Coçava-se feito bicho com tapuru da mosca varejeira. Foi preciso um banho com muita água corrente e álcool para se livrar dos piolhos.

Quando os cupins quase dão conta das estantes do pai, exultou de alegria, afinal as madeiras foram descartadas no terreiro. O menino reuniu as bandas das estantes e construiu uma cabana. Era um barraco armado ali, no terreno de casa. Um dia, já na boquinha da noite, Gelda passou e ouviu do menino a frase definitiva: “Gelda! Sabe a cor do cavalo branco de Napoleão?”. E a mulher, inocente de pai e de mãe, disse que não sabia e entrou para tomar ciência. Resultado descobriu e fez descobrir o amor. Virginia também entrou por lá e fez a narrativa de seus dias no canavial de Palmares, onde se perdeu – ou se achou! – num dia com sol a pino.

Maria de Camocim já sabia da fama do minúsculo cantinho, quando foi conhecer detalhes do barraco. Acomodou-se em banco da feira de Santo Amaro, trazido na cabeça por “pássaro triste”, e danou-se a falar. Era daquele lugar quase santo, porque tinha um convento e uma santa devota, mas resolveu sair a Caruaru com primo de sua confiança e uma criança habituada a pastorear moça casadoira. Não prestou não, nas imediações da estação, o primo de nome Maneca, levou-a a uma pensão vagabunda e fez o serviço. Não sabia, ainda naquele tempo, se o resultado fora ruim ou se fora uma benção de Deus. Não meta Deus nessa história, dizia o menino contrito, porque era coroinha e como tal devia se comportar. E muitos anos depois, era o menino já um adulto e do alto de uma pensão nas imediações do mercado ela gritou: “Genésio!”. E o homem parou; parou e olhou: “Maria estava grávida de um trabalhador do porto. E a vida seguiu!”.

E como coroinha ajudou muitas missas de muitos padres. Passou a vida lembrando do dia em que o sacerdote pediu vinho pela segunda vez e ele respondeu: “Acabou-se! O senhor está bebendo demais!”. Não fora assim, o menino derramara na pia da sacristia o máximo que pudera da bebida quente e amarga. O sacerdote com raiva nunca mais quis o coroinha em suas missas. O menino tinha uma fantasia e com ela dormia, imaginava as moças da igreja dirigindo-se para a comunhão com os seios à mostra e assim ajoelhadas. Era o cúmulo do sacrilégio dissera o padre confessor ao saber do quanto o imaginário do menino viajava em mares revoltos.

O menino tinha essa mania; uma mania de ver e tocar nos seios alheios. Fazia uma verdadeira ronda pela vizinhança, olhando as meninas mudarem de roupa. Um dia, viu a mãe de um amigo nua da cintura pra cima. Olhou e fixou a imagem, para depois arrepender-se do ato. E o confessor quase não perdoa tamanha afoiteza. As de sua idade já está de bom tamanho, mas às velhas o respeito que merecem.  Andava nas ruas da cidade a uma velocidade que hoje não poderia repetir e tocava, como se fosse sem querer, nos bustos que podia. Contava esse esforço nos dedos das mãos: 10 a 12 seios!

Um menino peralta, dizia a tia que não costumava usar sutien e nem cacinha. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Proximidade do Inexorável


Meu querido e mui amado pai.

Nesta hora de tanto padecer, de tanto sofrer, num machucar constante da carne e do espírito, inquieta-me a impotência do meu ser e do meu saber diante da tua dor. A ciência que aprendi às custas do teu suor, derramado, gota a gota, sobre o teclado da máquina de escrever, falece, frente à proximidade do inexorável – desgraçada proximidade. Sou agora uma desesperada criatura e o meu desespero não pode mais chegar aos teus ouvidos, como dantes. Não suportarias este problema, esta questão que guardo e que vivo! 

Tudo mudou, meu pai, em tão pouco tempo! Ontem, menino de calças curtas, ouvia as tuas recomendações e às vezes nem as seguia, peralta que fui. Depois, na metamorfose da existência, os conselhos rejeitados na inquietude que marca a adolescência serviram de guia na maturidade, para a escolha dos caminhos, das trilhas da vida. Adulto, mesmo, quantas vezes fui à tua procura, quantas vezes ouvi a tua bem pesada opinião! Hoje, pai, precisas de mim perto, bem perto, como se dispusesse eu, pobre mortal, da porção mágica, quase, que restaura a injúria orgânica, tão larga, já. Ah, se eu pudesse! Ah, se Deus me ouvisse!
 
O meu sentimento é de profunda depressão, é de incapacidade para enfrentar a perda que vai chegando, pouco a pouco, vergando-te o corpo mais e mais, roubando-te a voz e incapacitando-te. Somente a inteligência, atributo superior da criatura, está preservada, numa lucidez impressionante dos fatos e das coisas, da percepção, inclusive, desta proximidade com o imponderável. Ouvir de tua boca que preferes o desenlace à vida assim, com as dores da doença, cortou-me o coração, deu-me a mais absoluta certeza de que estamos perto, bem próximos da eterna distância. Saber o quanto admiras, agora, os outros, andando ágeis, de um quarto para outro, subindo e descendo escadas, enquanto tu, que já foste assim, quase não podes mais caminhar, leva-me às lágrimas. É isso mesmo, pai, são os desígnios do Criador, é a vida em sua seqüência cruel, amputando com lentidão as funções, dificultando a normalidade das coisas. Gostaria de poder, ainda, ouvir palavras tuas sobre as grandes questões que enfrento daqui para frente no meu ofício, que foi sempre o teu, o de transmitir o conhecimento, o de preparar a juventude, de formar as pessoas. De conversar sobre o passado, sobre os nossos passeios, de mãos dadas, ao velho Parque 13 de Maio, por alamedas da infância; sobre o nosso debruçar diante do Capibaribe, vendo passar a água célere e um barquinho pequenino. Ou sobre as nossas reuniões de fim de ano, interrompidas agora, em 1991, numa antevisão tua do futuro imediato, de um porvir diferente. 

Guardo, ainda, o teu derradeiro telefonema, para falar de mim, para dizer: “Meu filho! Você é um vitorioso!” As minhas vitórias, pai, obtidas a sangue, suor e lágrimas, reconhecem na gênese primeira o teu papel de condutor, de educador, dando-me a rota das coisas e mostrando a turbulência dos mares da vida. Pena não possas mais assistir ao esforço que faz teu filho agora, primogênito da prole, no galgar de mais um degrau, em cuja base te vê, verdadeiramente. Durmo contigo esta noite e te ofereço, ainda, o que puder, com os olhos marejados, já, pois que pressinto o fim. Um dia, contigo, nas brumas do eterno, outras estórias hão de rolar e vamos rir às bandeiras despregadas, novamente!
 

PS: Texto escrito na véspera do falecimento de meu pai – Nilo Pereira. Crônica que levo à Fliporto, como exemplo do que escreve o cronista, quando está sob emoção forte. Levei, realmente, mas não houve tempo de ler. Desejando o leitor comentar, o faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Trotes telefônicos e outros trotes

 Eu sou vidrado em trotes telefônicos. Comecei pedindo a uma padária - já se vão 50 anos - 100 pães para a vizinha. Já dei trote em todo mundo e seu Raimundo! Desses, talvez aquele em que liguei da extensão de casa, menino ainda, e falei com minha Tia Deolinda, parece ter sido o mais criativo. Ela atendeu o telefone e eu disse que falava diretamente do Purgatório. Indagou se já ligava de lugar assim, eternamente distante? Estamos em experiência, respondi justificando, e expliquei que no espaço do galinheiro havia uma botija. Fosse por lá e cavasse, mas sem permitir a presença de outra pessoa. Claro que corri pra junto e vi a pobre da velha com uma enxada nas costas, mandando que eu saísse de perto. Assim: “Saia! Saia daqui! Saia!”. E não houve jeito de admitir que tinha sido eu o protagonista da ligação.
Já contei por aqui o telefonema que fiz para uma clínica veterinária, falando um espanhol atrapalhado e imitando a voz de um dono de circo. Dizia que o elefante estava com uma diarréia incontrolável, que já tinha tomado 34 vidros de Kaomagma, sem resultado e que eu estava disposto a levar o bicho para a clínica, deixá-lo internado. A pessoa que atendeu (não era o veterinário) quase enlouquece, justificando que cuidavam somente de cães e gatos. Não tinham espaço maior que coubesse um animal assim, tão grande e tão exigente em cuidados. Eu insistia de um lado e o interlocutor se justificava de outro. No fim, no fim, sem um acordo que fosse, fecharam a clínica naquele dia. Melhor dessa forma, pensaram!
De outra feita, tendo descoberto que o meu telefone fixo tinha uma secretária eletrônica, facilidade que não se usava de hábito, resolvi deixar, eu próprio, recados e observar a reação das pessoas. Com voz gutural disse: “Nos velhos mosteiros de Olinda os monges ainda se cumprimentam assim: lembrai-vos da morte!”. E pedia, ao final, que o interlocutor de ocasião deixasse o seu recado. Muita gente deixou exclamações, como aquela: “Liguei para a casa de um padre!”. Numa ocasião fiz um inquérito sobre o que achavam do Padre Marcelo Rossi. Encontrei respostas diversas. A melhor foi: “Eu gosto do padre e das coisas que ele diz!”. Por fim, em determinado dia de finados, data de aniversário de meu avô paterno, disse: “Orai pelas almas que sofrem no Purgatório, no meio a de meu avô Fausto!”. E houve quem começasse uma ave-maria.
Mas, dentre os outros trotes, isto é, trotes que não foram telefônicos, esse foi demais da conta. Numa tarde fui ao colégio disposto a repetir o que certo aluno fizera com meu pai. Quando o professor de geografia fez a chamada, ao dizer meu nome, ouviu em gregoriano legítimo: “Preeeeeeesente!”. Fui expulso da sala de aula para tomar jeito e ter respeito pelos mais velhos, sobretudo se estiver diante de um mestre. Quando inventei que o dia era o do aniversário do mesmo professor, ele negou de forma peremptória e chegou a consultar o calendário, ao que expliquei: “O senhor está se guiando pelo calendário gregoriano e eu sigo o calendário Juliano!”. Na sala ninguém se aguentou e foram cantados os parabéns e a aula do dia devidamente morta.  
 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Convívios e Convivências

Em dias de verão, como esses de agora, quando a tarde se encorpava e a noite quase se anunciava, a minha avó paterna pedia que levasse as cadeiras do terraço – pesadas cadeiras de madeira – para frente de casa e ali se sentava para um deforete, dizia. Passava um e passava outro e a avó no alto de seus 76 ou 78 anos fiava uma conversa a mais ou pelo menos respondia a um cumprimento atencioso de uns e de outros. “Boa-tarde Dona Beatriz!" Dizia o enfermeiro da fábrica voltando do trabalho! E Dona Mimi, que rezava a gente toda do lugar, sentava junto dela e combinava voltar no outro dia, quando tivesse o que fazer com um dos netos. Trazia um galho de mastruz que deveria murchar se o “olhado” se afastasse. Ninguém atentava, nem ela, que a planta naturalmente sucumbe fora do caule. Ficava por lá até que desse a hora da ceia, quando voltava e no canto da mesa, onde se acostumara a sentar, tomava a sopa e o café com bolachas americanas cobertas por manteiga.
Hoje não! As moradias são todas emparelhadas, umas em cima das outras e prédios enormes acolhem 50 famílias no mínimo. Comigo é assim! Dois apartamentos por andar e 25 andares. Se for fazer a conta dos habitantes todos, o resultado há de ultrapassar 150 pessoas. É impossível decorar os nomes e mesmo os que se aproximam em função de gostos semelhantes, mal frequentam a casa do vizinho. Convites se manda em função da educação, para aqueles com os quais se tem uma ligação maior, mas não há compromisso de um com o outro. Não há mais a solidariedade de outrora. No passado a safra de manga era dividida com os vizinhos de rua, as carambolas excedentes eram dadas de bom grado à família da casa ao lado. O bolo, o pé de moleque ou o pão de ló, dos antigos exercícios do compartilhar, hoje, quando muito, cheiram no fogão alheio. Até no elevador os cumprimentos são distantes: "Bom dia!" "Como está passando?" "Está melhor!".

Quando comecei a frequentar casa de minha sogra, sentia o quanto os moradores se conheciam e conviviam. As festas de São João eram animadas e as fogueiras serviam aos que desejavam fazer a travessia das brasas, qualquer que fosse, porque cabia ao dono da casa evitar pregos e outros artefatos que pudessem queimar quem se arvorasse nessa empreitada. A “Missa do Galo”, lá e cá, enchia as igrejas, toda a constelação parental comparecia, desde as avós até a menor das crianças. Era uma festa que se podia compartilhar realmente. E no Ano Novo, como acontecia em minha rua, as famílias iam de casa em casa desejando felicidades no provir das coisas. Os meninos cuidavam em bater nos antigos postes de ferro e faziam uma zoada do cão, mas saudavam assim o novo ano. Era o tempo do antes, no qual se permitia o convívio das pessoas, sem televisão e sem shoppings, sem computador e sem Internet. O telefone dava conta dos amigos que ligavam e desejavam “boas entradas”. Não esqueço um amigo de meu pai, que telefonava a cada ano: José Césio Regueira Costa. Dele ninguém fala! Dele ninguém lembra! Hoje não, um ano termina e outro nasce, quando não se está dormindo, bebe-se até não poder mais na casa de um parente.

Desapareceram os convívios e as convivências.


  

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Boca de Caçapa

              Havia em minha rua da adolescência, que foi a mesma rua dos começos de minha juventude, uma menina de seus 13 ou 14 anos, no tempo em que eu também tinha a mesma idade. Era ela quem me pedia para consertar a sua bicicleta. Eu não sabia que consertava bicicleta, mas descobri que a paixão leva a isso, a se reparar o que não se sabe. No mais das vezes eram pequenos defeitos; defeitos que a minha idade permitia superar. A corrente que saltava ou o pneu que estourava, furava, melhor dizendo. Ah, nisso eu era craque. Sempre tinha em casa um conjunto que reunia a cola para o pneu e o reparo que fechava o orifício em que o ar vazara.
Terminei namorando com ela e numa tarde que já vai muito distante na contabilidade dos anos, resolvi passar todo o tempo do mundo dando voltas com ela no quarteirão. Rodamos vezes e vezes naqueles passeios e no outro dia, na prova de história no colégio, pimba: tirei zero. Terminado o mês vieram as notas no boletim e o meu pai me convocou a uma conferência reservada. Fazia sempre isso, quando queria chamar a atenção de alguma coisa. Lá fui eu para o seu gabinete – a jaula – e não tive uma saída que prestasse à reclamação: “Como é que você, sabendo que eu sou professor de história, não se esforça no colégio e tira nessa matéria nota zero?” Não tinha desculpas a apresentar! De mais a mais, a minha avó fizera queixa a meu pai, com o seu vocabulário peculiar: “Geraldo passou a tarde inteira de bicicleta com uma moleca de rua, de olhos pintados!” Não era moleca de rua, ela apenas pintava os olhos com um traço escuro! Coisa nova à época. Foi um desadoro!
Por essas e por outras o meu pai não tinha muita esperança que eu desse pra gente. Digo isso, porque certa vez ouvi a conversa dele com uma irmã – a tia mais nova –, em que ele afirmava, em alto e bom som: “Não faço muita fé no mais velho!” E ela: “Veja! De onde não se espera é que se tem. Você vai ver que ele vai brilhar! Há de ser o melhor da prole!”. Eu não sei se brilhei ou se não brilhei, se fui o melhor ou se não fui, mas a verdade é que lembro dessa passagem toda vez que tenho um fato novo em minha vida: uma posse, uma medalha, um prêmio. Penso com meus botões – botões muito reflexivos – que se ele, o meu pai, estivesse por cá, estaria honrado com os meus feitos. Os meus feitos e os meus fatos! Mesmo que admirado, surpreso, pensando: “Aquele menino peralta, inquieto e dado a muitas namoradas, cortejando a mulherada toda da Boa Vista, é gente!”. 

E por falar em namoradas, vem à minha lembrança uma delas: Boca de Caçapa. Pode acreditar o leitor, foi a única de todas as musas que abracei sem um atrativo sequer. Feia que doía! Sem dentes! Do cabelo com um corte sem graça. Desengonçada, mal trajada e descuidada. Não sei porque cargas d’água fui namorar com essa suplicante e o pior, tinha ciúmes dela. Mas compensei com as outras: finas e bonitas.
Mas, a preocupação paterna era tão verdadeira, que aos 15 anos, na flor da idade, ouvi a recomendação: “Estude datilografia, pois se não conseguir emprego vai trabalhar no comércio!”. E eu sou formado e escrevo muito bem aqui nesse teclado do computador, em tudo igual ao de uma máquina de escrever.
 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Outras reflexões e a mesma medalha

Tenho refletido a propósito de minha vida de médico: quanta coisa mudou nessas quase quatro décadas e meia. Quando sai da escola, formado e de anel no dedo, tratava-se úlcera gástrica ou duodenal com dieta láctea, isto é, com leite a cada hora. E o diagnóstico dessas afecções, sobretudo da segunda, era realizado por radiografia contrastada da parte alta do aparelho digestivo. Exigia-se do profissional divisar uma imagem em chama de vela e a partir daí estabelecer o tratamento. Era, francamente, um Deus nos acuda, para enxergar essa chama que aparecia depois que se esvaziava o estômago. Hoje não, a endoscopia chega até a intimidade gástrica e identifica, sem erro, a cratera ulcerosa. E o leite – ah o leite! – está contraindicado, porque embora neutralize a acidez, o faz de maneira momentânea, pois dentro de alguns minutos vem um rebote maior ainda.  
No hoje das coisas a ciência atingiu um desenvolvimento tão grande, mas tão grande, que se ainda tivesse por cá os meus cadernos, cujo resgate me faria feliz, de nada mais serviriam as notas reunidas em noites e noites de muito estudo, numa puxada de casa, feita por minha mãe e que serviu a mim e a outros colegas. Os livros, igualmente, desatualizaram-se e sofreram a metamorfose do nada ou se prestam apenas ao estudo do que foi o ontem dos dias. No ano em que nasci (1944), um autor que estudava a Mortalidade Infantil apontou dados alarmantes, isto é, que de cada 1000 nascidos vivos morriam acima de 400 bebês. Isso foi corrigido depois para dados que representavam a metade do registro. Muito alto ainda! Atualmente, como está em documento de 2009, Pernambuco teve 29,2 óbitos por 1000 nascidos vivos.  
No campo da imagem, então, a mudança foi radical. Já se falava em tomografia nos anos sessenta, mas somente para os pulmões e para o diagnóstico de certeza da tuberculose. Na atualidade não, serve para muita coisa e cascavilha o organismo inteiro. E a ressonância magnética, só falta mesmo falar, tal a penetração que tem na intimidade orgânica. Com contraste ou sem contraste.  O cérebro agora está exposto e só está faltando mesmo identificar os pensamentos. Saber quem gosta ou quem não gosta da pessoa. A ultrassonografia da mesma maneira: navega pelo corpo como se fosse um navio com rumo certo. Isso tem prolongado a vida e já se vai a 73,4 anos como média de vida do brasileiro. Claro que se chega a muito mais e se houver dinheiro para comprar remédios e pagar o plano de saúde, sinceramente, o penitente vai aos 80 sem dificuldades. No Japão isso é o habitual de toda gente. Eu vi por lá velhos cuidando de velhos, isto é mães centenárias sob a batuta de filhas com oitenta anos bem vividos. É o que estamos vendo!
Pois é, hoje à noite recebo a medalha São Lucas, a maior outorga das entidades médicas a seus integrantes. Acolho a comenda como um reconhecimento com que me distinguem, sabendo que mereço a condecoração por tudo que fiz e por tudo que ainda venho fazendo.    

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Rito de Passagem

Chego à Associação Médica de Pernambuco para tirar as fotografias que devem anteceder a entrega da medalha de São Lucas, com a qual hei de ser condecorado, a mais importante outorga que as entidades oferecem a um profissional da ciência de Hipócrates. Nem sei ainda o que isso significa para mim. Foram diversas as poses, umas em grupo, porque seremos três os agraciados e outras isoladas. O fotógrafo confere em seu visor quase mágico o semblante de cada um e novamente direciona o seu flash. Lembro do que dizia por aqui uma determinada jovem: “Doutor! Cada mergulho é um flash!” E é isso mesmo!
Sem que haja mergulho, sequer água!
É interessante! Fui a dezenas dessas solenidades, só que para prestigiar outros colegas assim escolhidos. Lembro até de algumas. Daquela em que o Prof. Salomão Kelner recebeu a comenda e falou sobre o santo, com tantos detalhes, que não se esperava pudesse se expressar um judeu. Sentia que aqueles agraciados quase que encerravam por ali a lida profissional. Era um reconhecimento pela dedicação de uma vida inteira doada à causa, mas assim também terminada. Dizia-se da proximidade da morte dos escolhidos, como se a sentença incluísse as palavras bíblicas: “Muitos são os chamados e poucos os escolhidos!”. Será que estou realmente encerrando uma faina de anos e anos, de décadas seguidas? Estou! Tenho que reconhecer!
Ontem quase não dormi, refletindo sobre isso. Como posso deixar uma profissão pela qual, posso dizer, dei a vida e entreguei minha saúde? Trago hoje o corpo vergando à força de tantas e tantas passagens que me tiraram outras noites de sono! Os meus cabelos estão da cor da prata, sinal do quanto sofri com aqueles que vieram buscar os meus socorros. É um mister bonito, mas extremamente sofrido, doloroso! Por isso, chega-se a um ponto em que é preciso parar e rever tudo que se fez no pretérito das coisas. Mas, não exatamente parar no sentido de assumir o ócio como vivência dos dias que chegam. Não, isso não! Hei   de fazer disso um rito de passagem, apenas. Deixo a prática de Esculápio e me volto ainda mais para a cultura.
É o que vou fazer! Afinal já não vinha exercendo há algum tempo! Vinha – isso sim! – me dedicando mais e mais ao humanismo, à escrita diuturna de ensaios e de crônicas; de ensaios que abordam o ontem das coisas e por isso mesmo pertencem à seara da história e de crônicas que expõem as minhas inquietações d’alma ou que mostram o lado bem humorado que tenho em meu dia a dia. Ainda bem que sempre fui assim! Foi possível ultrapassar momentos difíceis com essa forma de ser ou foi possível simular com os humores horas de horrores.
Tenho um livro por terminar; livro que faz uma retrospectiva de minha vida inteirinha, abordando todas as mudanças que assisti. Transformações vividas e experimentadas, modificações em tudo por tudo. Fui testemunha de verdadeira metamorfose do tudo e é sobre isso mesmo que hei de escrever e terminar o meu livro. 
Sem dúvida alguma tenho condições de por em prática o que aprendi com os meus mestres: "Não desistir nunca!" E não desistirei, enquanto vida tiver.

(*) Leitores amigos, estou aqui em Curitiba, a cidade sorriso. Tinha escrito essas reflexões no Recife ainda e daqui mesmo, às carreiras, as incluo no Blog, porque tenho um jantar em mais uma hora e não posso atrasar os outros, os meus colegas médicos escritores. Por isso, deixo de ilustrar o Blog, tarefa que me toma bom tempo. Desde já convido a todos para a solenidade de outorga da medalha São Lucas, no próximo dia 18 de outubro, às 20 horas. Comentários e outras intervenções neste espaço poderão ser adicionadas por cá mesmo ou para os e-mais pereira.gj@gmail.com e pereira@elogica.com.br  

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O dia do meu aniversário

 
Enquanto no Velho Mundo estouravam bombas cada vez mais destruidoras, na então pacata cidade do Recife nascia um menino de bons hábitos, de boa família e de bons antecedentes, pelo menos no que toca ao rudimentar pré-natal que fizera a genitora. O Dr. Djair Brindeiro fora o parteiro, como se costumava dizer e a Maternidade Freitas Lins foi o lugar no qual se deu o procedimento médico. Corria o ano da graça de 1944 e o mês era o de outubro, sendo o dia justamente aquele em que se comemora a data de São Francisco de Assis, data também dos bichos e da ecologia: 4 de outubro. A 10 do mesmo mês e ano, na matriz da Soledade, o menino fora levado à pia batismal, sendo celebrante do ato de iniciação do catecúmeno no culto católico o Monsenhor Francisco Apolônio Jorge Sales e padrinhos do menino o seu avós maternos Bartolomeu Marques e Laurinda Rosa Marques.

O pai da criança orgulhava-se muito de sua mãe no dia do parto, dizendo que ela vestiu-se com um avental branco e esperou pelo nascimento, tendo a oportunidade de pegar nos braços o neto que aportava nesse mundo de Deus. E com essa avó o menino conviveu muitos anos de sua vida. Tinha 16 anos de idade quando ela se foi. A criança costumava dizer que fora criado com vó e que dessa criação, complementava, só pode dar um menino abestalhado ou um doido e que ele optara pela segunda condição e assim foi o resto da vida. Diziam os mais velhos que o menino fora amamentado no blackout, isto é na escuridão do tempo, porque para que o Recife não fosse bombardeado apagavam-se as luzes todas da cidade. Daí, complementam alguns a admiração do menino pelos seios femininos, pingentes do amor, como ainda hoje chama.

O genitor trabalhava no bairro portuário, em jornal que circulava ao tempo, com o nome de Folha da Manhã, só chegando em casa altas horas da noite. Aliás era comum que os jornalistas de batente voltassem assim tarde da noite, numa época sem Internet e sem outros recursos da modernidade. Era um homem de boa conversa e contava e recontava os fatos do dia. Um desses repito agora. Dizia que era mais de meia-noite e a zona do baixo meretrício fervilhava de gente, quando um padre passou, com sua batina preta, devidamente paramentado para atender a uma mulher que se ultimava numa pensão alegre. Passou, viu o amigo que caminhava de volta à casa e nada disse, simplesmente cumpriu o seu dever.

E o menino era eu. Hoje é o meu aniversário!

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um bafafá do cão

Dizia meu pai que as pessoas pedem uma graça e deixam o retrato, imaginam que dessa forma a imagem continua pedindo em nome do penitente ou da penitente. Realmente, certa vez atendi uma figura que trouxe a fotografia de sua mãe e verbalizou: Doutor! Como a minha mãe está impossibilitada de comparecer, eu trouxe o retrato dela.”Eu achei aquilo ótimo e com muito jeito disse a ela que eu não podia atender a sua genitora olhando somente a foto, não era milagre de Deus ou dos santos. E a criatura conformo-se, levou a fotografia de volta e providenciou a vinda da mãe. São passagens que não acontecem mais, porque o tempo está diferente e globalizado, o que se passa na Paulista, em São Paulo, repete-se na Encruzilhada de São João, isto é hábitos e costumes são os mesmos nesses anos de pós-modernidade.
Agora, depois que comecei a estudar os ex-votos, sobretudo aqueles de Igarassu, vistos e descritos pelo Imperador Pedro II, tenho visto retratos postos nos santuários a título de agradecimento. Isso não dispensa a tese de meu pai de que antes mesmo da graça a imagem ficaria pedindo. Pelo contrário, reforça a afirmativa. Mas, sendo assim – se fica para pedir – foi o caso daquele retrato ¾ que encontrei na Igreja de Santo Antônio, antes da Missa do Monsenhor Nogueira, posto assim, junto a uma imagem qualquer que já não lembro qual. Eu confesso que vi aquilo e tive vontade de tirar, de embolsar, para fazer uma brincadeira qualquer por ai. Trouxe pra casa o material retirado da Igreja; material com as bordas picotadas, como antigamente. O meu pai recomendou: “Volte com isso e bote onde achou!”. Não voltei!
Tive a ideia de azucrinar o juízo de namorada muito dedicada de primo ilustre – já àquela época ilustre – e preparei um pequeno bilhete com dizeres mais ou menos assim: “Meu querido Felisberto. Ai vai o retrato de sua ex-sogra, a quem você tanto dedicou-se, dando-lhe inclusive o vestido da foto. Guarde essa imagem como prova do nosso amor. Maria da Anunciação”E como havia na rua um camarada em franco processo de transformação de católico não praticante para protestante de hábitos diários, cuja prática incluía andar com um exemplar da Bíblia sob os braços, mandei que entregasse ao primo diante da namorada. Foi um bafafá do cão e quase o namoro termina, rompido pela simples foto tirada da igreja.
 
No fim, no fim, os Cr$5,00 do trato pagaram o serviço. Esse camarada é o mesmo que uma vez ligou para o meu celular e disse: “É o seu amigo Valter”. Ora como ia identificar, passados tantos anos, aquele prenome? Mas, quando verbalizou o apelido, “Coruja” não houve mais dificuldades. E por coincidência eu estava numa igreja também.

Um texto escrito depois da lembrança de episódio ocorrido nos idos e vividos anos sessenta, quando encontrei numa igreja - Santo Antônio - um retratinho 3/4 de penitente, que segundo meu pai deixara a foto pedindo a graça de seus desejos. Os leitores que desejarem comentem no espaço mesmo do Blog ou o façam para os e-mails pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com A crônica tem sido reproduzida pelo Jornal A Besta Fubana.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

NETITE

O vocábulo talvez tenha sido criado pelo meu pai, o qual diante do nascimento de tantos e tantos netos considerava-se tomado pela síndrome da Netite. Procurei nos dicionários todos a que tenho acesso o sentido da palavra e nada encontrei de positivo. O mais próximo que cheguei do vocábulo foi: netita. E a explicação era vaga. Dizia respeito apenas a neto ou neta. Mas, a verdade é que vou ingressando nessa legião dos que têm o acometimento afetivo. Só os avós (o avô e a avó) podem ser tocados pela síndrome. E é o que sentimos nessa hora de todas as transformações.  Vem por ai mais uma para se juntar à legião parental.
Este é um sentimento único: o de ser avô ou o de ser avó. Pai e mãe cumprem a missão de educar e criar, precisam estar sempre atentos aos rebentos, os quais dependem em tudo desses ancestrais próximos. É a alimentação, a higiene, a roupa e os demais afazeres: levar à escola e de lá trazer, de providenciar as vacinas e os médicos. E por ai vai! Os avós não estão disponíveis para receberem os netos em casa e apenas brincam com esses pequeninos. Riem e fazem rir, jogam e aceitam as barbeiragens dos meninos e das meninas. E não têm compromisso com nada mais nesse mundo de meu Deus! Se ficam em casa, para que os pais saiam e cumpram também seus compromissos, há sempre uma babá por perto! E os avós de hoje são diferentes, sobretudo as avós, porque jovens e bonitas.
Que coisa boa ter avós. Eu me lembro muito dos meus. Do avô materno e da avó paterna. Aquele era uma figura ótima e eu seu afilhado. No dia de meu aniversário, esquecendo a data em função das inúmeras atribulações de sua vida, era lembrado por um amigo da rua e ai, pode crer o leitor, eu ficava abonado com o dinheiro que tirava de sua carteira. Foi ele que me fez conhecer o mar. E eu meio tonto com o movimento das ondas, ouvi dele a explicação de que aquilo passaria. E, é claro, passou! A minha avó, também, era uma personagem que nunca poderia dispensar em minhas lembranças. Foi ela que disse a meu pai, diante de uma namorada que pintava os olhos: “Geraldo está namorando com uma moleca de rua! Imagine que pinta os olhos!”. Veja só! Tratava-me por Geraldinho, no comum dos dias e não admitia que batessem em mim.
Pois é, amigo leitor, está chegando uma neta, a filha de minha filha Patrícia e de seu marido Cláudio, a segunda na linhagem parental. Tem quase três meses na barriga, mas é de uma movimentação tão grande, que parece com o avô aqui, sem parar o dia inteirinho, procurando o que fazer. Não sei bem o que faz naquele ambiente hídrico, vivendo assim como se fora um peixe – é quase isso! – se alimentando do que lhe chega pelo cordão umbilical e de restos celulares que circulam por lá, na intimidade uterina. E os recursos da modernidade já mostram o quanto esse bebê que vai surgindo tem de bom e saudável. Vale conferir.
Nome não tem ainda, porque como sempre acontece, há uma série de prenomes que as pessoas buscam em diversos lugares, na Internet hoje, para nomear o ser que vai chegando. É um movimento grande de gente que liga e propõe, de outras que sendo tias do rebento que vai emergindo têm uma proposta a mais. Assim foi com a minha primogênita, que tem o nome de Fabiana, mas que nasceu Adriana e assim saiu nas páginas. Depois se trocou o prenome. Nem sei de qual gostava mais! Eu tive um irmão que morreu muito cedo e nome não chegou a ter. E a minha mulher, a mesma em quatro longas décadas, perdeu quatro – um horror! –, mas no fim pariu três belíssimas moças.
(*) - Homenagem que faço à neta que vai chegando. Não lhe tenho ainda o nome, mas já a tenho no coração de meus afetos. O texto é reproduzido no Jornal A Besta Fubana. Desejando o leitor, comente a crônica no espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails pereira@elogica.com.br e pereira.gj@gmail.com