domingo, 21 de novembro de 2010

Seu Lunga: Tolerância zero

Na praia de Cumbuco, proximidades de Fortaleza, reuniram-se jovens executivos e suas famílias. Eu me acrescentei ao grupo, embora estivesse fora da idade média presente ao recinto. Havia cerveja bem gelada e acepipes variados; havia sobretudo o que conversar, nesse agradável exercício de jogar o papo pela janela. Ao fundo, um pássaro bonito, de penugem reluzente, ensaiava um trinar diferente, saudando o domingo que ia passando. Em certo momento, puxaram um assunto mais que interessante. Eu gostei que me enrosquei de conversar sobre seu Lunga.
Toda gente sabe que seu Lunga é o mais irreverente ser humano do Brasil, o mais impaciente e o mais abusado senhor dessas terras que Cabral descobriu. É o homem do tolerância zero. Contaram o que o diabo duvida em sexta-feira da paixão à noite. O personagem é um comerciante de ferro velho, de bugigangas sobretudo. Dizem que ele estava na loja, quando chegou um freguês interessado numa porca. O dono do comércio mandou que ele procurasse numa enorme caixa, repleta desses acessórios que se ligam aos parafusos da vida. Não houve jeito! Não achou! Ele foi lá, meteu a mão na ferragem e tirou a porca, dizendo: “Olha aqui!”. O penitente respondeu de logo: “Ótimo! Me dê por favor!". Seu Lunga não se fez de rogado e jogando o porca de volta na caixa, decretou: “Procure direito que você acha!”.
Contaram que Lunga estava tirando goteiras, defeitos das telhas de sua casa, um curioso passou e perguntou: “Tá tirando as goteiras seu Lunga?”. Ele respondeu: “Tô não! Tô é fazendo!”. E ai saiu feito louco a quebrar as telhas. Outra vez, dando uma surra em um dos seus filhos, quando ainda pequeno, o menino gritava: “Tá bom pai! Tá bom pai! Pelo amor de Deus! Tá bom!”. Lunga responde: “Tá bom? Que legal! Pois quando tiver ruim, diga que eu paro.". No seu comércio de sucata, ele também vende outros produtos, dependendo da ocasião. Uma vez tinha uma saca de arroz e um romeiro perguntou: “Seu Lunga como tá o arroz?”. E ele: “Tá cru, miserável!”. Outro romeiro parou pra comprar uns ovos que estavam expostos. Pegava cada ovo e balançava perto do ouvido, um a um, quando ia pelos 6 ou 7 ovos, Lunga disse: “Pare! Pare! Pare! Chocalho tem é no mercado! Pode sair!".
Dizem que numa madrugada, a mulher de Lunga teve um mal-estar, e gemendo ela acordou o marido:
- Lunguinha, Lunguinha, ta me dando uma coisa aqui...
- Então receba!
- Mas Lunga, é uma coisa ruim...
- Então devolva!.

Seu Lunga foi entrando em uma loja e perguntou:
- Tem veneno pra rato?
- Tem! Vai levar?
- Não! vou trazer os ratos pra comerem aqui!
Seu Lunga resolve andar um pouco e sai com seu chapéu grande e antigo. Durante sua caminhada resolve coçar a cabeça sem tirar o chapéu, então uma conhecida dele pergunta:
-Oxe, seu Lunga, num tira o chapéu pra coçar o cabelo não é?
Seu Lunga responde na bucha:
-E a senhorita tira a calcinha pra coçar o tabaco?


O Seu Lunga consegue um emprego de motorista de ônibus. No primeiro dia de trabalho, já no final do dia, ele para o ônibus em um ponto. E uma mulher pergunta:
- Motorista esse ônibus vai para a praia?
E o Seu Lunga responde:
- Se você conseguir um biquíni que dê nele.

(*) - O detentor dessas histórias todas é Silvio Costa Andrade, engenheiro de mão cheia e genro de seu Borba, uma figura, em tudo muito diferente do personagem, mas uma pessoa do tipo "gente fina", nascido e criado no verde do canavial de Itambé, cidade do Areópago e da primeira loja maçônica das Américas (será?). O leitor tendo gostado, comente no espaço mesmo do Blog ou faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com Se gostarem, ainda tenho mais e hei de contar por cá.

sábado, 13 de novembro de 2010

Pregões do Recife

Escrevi por cá uma crônica sobre vendedores e prestadores de serviço das ruas do Recife e, confesso, não esperava a repercussão que teve. Alguns comentaram e até acrescentaram alguma coisa e sobretudo consideraram a saudade desses tempos distantes na contagem dos anos. O meu ilustre amigo Silvio Costa, que morou em todas as olindas, teve o cuidado de fazer umas anotações a propósito, reunindo pregões e citando outros detalhes dessas curiosidades locais. Uma página inteirinha de referências sobre o tema, o que me levou a ensaiar, outra vez, uma crônica abordando a questão. Em respeito, até, aos leitores todos, os que gostaram e comentaram e aos que gostaram e não comentaram. Silvio começa por um dos pregões mais comuns da cidade: “Espanador/Vasculhador/ Colher de pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha.../Eu tenho quartinha”. E lá vinha o homem carregado de apetrechos assim, apropriados à casa, às arrumações domésticas e à cozinha. Andava com tudo isso às costas, com os cabos enormes, de madeira, sempre, apontando para os céus e trazia um colorido peculiar, expondo os “cabelos” do material que vendia, com riqueza nos desenhos e nos contornos.
Outra dessas contribuições de Silvio Costa é a do boleiro, que vendia a broa e o grude, balançava um pequeno sino anunciando a chegada e trazia os seus produtos em uma espécie de mesa envidraçada e sem gavetas, com quatro pernas, carregada na cabeça. Ao primeiro sinal de um comprador qualquer, arriava aquele móvel, e servia o penitente com o auxílio de um garfo de dois dentes, apenas. Na minha rua passava um desses, tinha o cognome de Criança, não sei bem por que razão e conforme os meninos do bairro carregava bolos que davam, habitualmente, dor de barriga. Mas, toda a gente comprava. A minha mãe, todavia, nunca me deixou provar dessas delícias de Criança, tinha medo do resultado, das cólicas e da febre, da doença, enfim, que lhe atormentava as noites. Nem o doce japonês, cujo vendedor não descuidava em passar, pude provar e tinha inveja da molecada comendo o produto caseiro, que grudava nos dentes e arrancava as obturações. O verdureiro, também, aparecia empurrando uma carroça de cor verde ou azul, e oferecia verduras e frutas, o maracujá para o ponche! Conhecia todos, as empregadas de casa e as madames, chamando pelo nome, mesmo.
O mascate era uma beleza, usava uma mala recheada de coisas ou vinha na carroça puxada a cavalo. Anunciava-se com uma matraca,isto é, uma peça feita de dois pedaços de madeira unidos por uma tira de couro e ia batendo, batendo, para vender as miudezas. Linhas de todos os tipos, agulhas a valer, alfinetes-de-segurança e outras quinquilharias. A minha avó gostava de escolher a linha própria a seu croché ou a linha de tricotar e com esse material enchia o tempo e a vida, produzindo toalhas e panos diversos, os quais, por vezes, vendia. Era homem de parada certa na minha casa e já estacionava a carroça antes de qualquer chamado, abastecendo a cesta de costura materna e a caixa de sapato na qual uma de minhas tias guardava a matéria-prima de seus predicados manuais. O mascate, anotou Silvio Costa, vendia também banha para alisar os cabelos e perfumes produzidos, artesanalmente, por ele mesmo, de qualidade nem sempre satisfatória. Para o meu pai comprava-se uma Quina, de cuja oleosidade sustentava o negro de seus cabelos, penteados com todo o cuidado de quem tinha orgulho da pilosidade craniana. Para os meninos, a brilhantina Glostora!
O vendedor de galinhas dizia: “Galinha e capão gordo!” E ninguém sabia direito o que era capão, porque sobre essas variantes da espécie não se assuntava com os meninos! Outro se oferecia assim: "Eita jabuticaba!/Já caiu cajá!” Ou assim: “Chora menino/Pra comprar pitomba!” E o homem do miúdo, que vinha gritando – “Miúuuuuudo!” –, enquanto o auxiliar carregava na cabeça o tabuleiro com fígado,coração e miolo de boi, além das tripas. Como esquecer o homem do algodão-doce, fazendo flocos de açúcar na carrocinha, rodando um veio com a mão direita e recolhendo o produto com a esquerda, num pedacinho de papel colorido? E o vendedor de pipocas, estourando o milho na chapa quente, em frente aos cinemas, permitindo assistir ao seriado do dia com a opção barata e gostosa ou na saída dos colégios para chegar em casa sem fome e ouvir a reclamação de hábito:“Menino! Você come porcaria na rua e não almoça!” Muitos dos meus amigos não dispensavam, à saída dos clubes, nas madrugadas do Recife, o cachorro-quente preparado ali, à vista de toda a gente, com salsicha cozida em vasilhame de alumínio e pão dormido, de um inigualável sabor!
A Sílvio Costa, colega de Universidade e companheiro de jornadas à beira-mar, nostálgicas horas das lembranças do tudo, esta crônica, nascida sob a inspiração de suas notas, em tarde assim, morna e sobretudo feliz...

(*) - A crônica foi adaptada apenas, porque escrita há anos, há décdas talvez. Estou ficando velho! Silvio encantou-se muito cedo para o infinito das coisas, para a outra dimensão da vida. Dele, como de tantos outros que se foram, nunca mais tive notícias.  Com esse texto faço o seu resgate, um aflorar de sua memória, tão dado que era às coisas do lugar. Colecionador dessas peculiaridades locais e um papo certo, quando nos juntávamos em tempos idos, na praia de Pau Amarelo, eu e ele, fiando conversa noite a dentro. Nunca mais soube, sequer, da esposa dele, Lúcia de prenome. Leitor amigo, gostando do texto ou concordando com a homenagem, comente aqui mesmo no espaço do Blog ou o faça para os endereços: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com  

domingo, 7 de novembro de 2010

Consertador de Panelas

Como esquecer do consertador de panelas, que passava oferecendo os seus préstimos às custas do toque cadenciado e peculiar de um pequeno varão de ferro sobre uma frigideira usada? O simples escutar dessa musicalidade característica, produzia na cozinha um rebuliço e as peças de alumínio furadas eram, de logo, selecionadas e entregues ao especialista na arte do remendo. Voltavam novas, praticamente, trazendo no fundo, sempre, o acréscimo de que precisavam e tinham a destinação habitual, a do cozimento, a depender, apenas, da receita do dia. Quando a galinha ia para a mesa, por certo que fora comprada ao homem que a cavalo trazia dois caçuás de penosas, um de cada lado. Cabia ao comprador sustentar a ave pelas asas e optar pela de peso maior, pois que o preço era unitário somente, não interessando os quilogramas a mais, de um ou de outro exemplar. 
Musicalidade mais apurada, entretanto, era a do amolador de tesouras, de facas, também, que usava um instrumento assemelhado a um realejo, do qual nasciam as notas da oferta. Um desses tinha parte do antebraço amputada, mas com um revestimento de couro, uma luva apropriada, manuseava a peça, cega por hora. Usava um carrinho que vinha empurrando e ao primeiro sinal de serviço a ser realizado,  invertia a posição, alinhava a polia grande de borracha e com o pé num pedal artesanal girava o esmeril. Na realidade, terminava desgastando as lâminas a serem amoladas e em casa de toda a gente algumas das facas não serviam mais para atender às visitas ou aos mais cerimoniosos da família. Eram facas da cozinha, dizia-se.
O vendedor de pirulitos, com uma tábua toda furada e os doces cônicos encaixados, usava um apito e ia passando adiante o seu produto de fabricação caseira, que pregava nos dentes. Já o homem das vassouras e dos espanadores era diferente, trazia um material de cabos coloridos e de pilosidade formando desenhos, para o chão da casa e a poeira dos móveis, além de vender, também, o vasculhador, que passado no teto sacudia as aranhas, afugentando-as das teias. Tinha um grito característico, chamando a atenção para a sua variedade em material assim, destinado à coleta do lixo doméstico, o grosso e o fino. Mas a oferta da lã de barriguda para travesseiro era cantada em versos sem muita rima: “Eu tenho lã de barriguda/Para travesseiro.” E como não havia a espuma de hoje, sintética e mais prática, conseguia boa freguesia nas ruas por onde passava. Era preciso encher esses apetrechos, que nos servem à cabeça, para um bom e reparador sono, a intervalos de tempo certos.
O peixe, do mesmo jeito, chegava à porta de casa, vinha em dois balaios, os quais, sustentados por cordas à ponta de um suporte de madeira carregado às costas, pendiam livres, quase, balançando, pra lá e pra cá, à medida que o vendedor andava pelas ruas e oferecia o produto gritando. Alguns desses homens do peixe faziam verdadeiros malabarismos com os balaios. Paravam, então, e apresentavam as espécies e as espécimes de que dispunham, utilizando-se depois da tábua para preparar as postas, tudo segundo as preferências do freguês. Peixe fresco, ao tempo, sem a ação, às vezes deletéria, do gelo, que da carne branca rouba o sabor. Com os anos, apareceram os frigoríficos e a albacora popularizou-se na mesa do recifense. Mas, o nome desse bicho dos mares era muito aplicado como apelido para as mulheres gordas, ricas em adiposidades.
E o vendedor de cambará? "Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém...” Há, ainda, quem sinta saudade do velho acendedor de lampiões das ruas do Recife! Desses não lembro! Não esqueço, todavia, do acendedor das lâmpadas dos velhos postes de metal de meu bairro, ligando as chaves e alumiando o tempo.

(*) Foi difícil encontrar as fotografias apropriadas ao texto. Quase não há registros desses figurantes das ruas. Assim, segue o texto, escrito há mais de uma década pra trás, mas atualizado em lembranças e saudades. Comente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com