domingo, 26 de junho de 2011

Uma Metamorfose do Tudo

O homem se tornou tão sedentário que precisa dispor de um parque para se exercitar. Ninguém vai mais ao colégio a pé, muito menos ao trabalho. O automóvel carrega toda gente. Às festas do Clube Português fui muitas vezes andando e voltei do mesmo jeito. Nunca imaginei que tempo chegaria no qual teria medo de repetir a façanha. Não sou velho, mas vi o Recife cortado por linhas de bonde, eram 141 km para 130 veículos, além dos 30 reboques que a companhia dispunha. Eu vi os antigos telefones de bocal, nos quais se falava de longe e se tinha o maior cuidado com o sigilo, mas era o terror dos namorados. Terreno fértil para a fofocada local.
Eu vi os primeiros prédios que foram levantados na cidade, impressionando os moradores todos. O Arranha-Céu da pracinha chamou a atenção por anos a fio, até que se construiu na Aurora o edifício Capibaribe, uma novidade para a classe média da época, bonita paisagem e acomodações confortáveis. Morava por lá o Dr. Edgar Altino, médico no Recife e figura respeitadíssima. A Agamenon Magalhães foi feita sobre um mangue, rico em caranguejos, os quais ao primeiro trovão saiam das tocas. O meu avô – Bartolomeu Marques – morava na Montevideu n° 77, em casa alugada, com dois quintais separados por um muro e um portão. Lá atrás havia outra entrada e eu fui várias vezes ao mangue caçar caranguejos.
No tempo o Parque 13 de Maio era o ponto de encontro das gerações. Rapazes e moças caminhavam de mãos dadas nas alamedas do lugar. A Festa da Mocidade se instalava nos últimos meses do ano, trazendo brinquedos de todo tipo e um teatro rebolado. As vedetes de então seriam de extremo pudor no agora dos dias. Eram encenadas revistas de duplo sentido e o rigor da portaria controlava a idade dos frequentadores. Os meninos se contentavam com o olho nas frestas dos camarins, o que fez certa vez um soldado de polícia puxar um desses observadores pela gola. Ouviu do garoto a explicação de que a vez era dele. Saiu detido para a Delegacia de Menores.
Passavam na rua vendedores de todo o tipo. Um capítulo à parte na historia do Recife: os pregões. O mais longo de todos aqueles, o que vendia vassoura, espanador, vasculhador, colher de pau e outras bugigangas assemelhadas. Cantava tudo isso nas ruas da cidade. Mas, havia o mascate, um homem com o seu burrinho puxando uma carrocinha cheia de gavetas, nas quais se tinha tudo que estivesse catalogado dentre as miudezas. E o consertador de panelas, que tocava um triângulo com uma haste de ferro. O amolador também tinha um apito característico que o identificava à distância, anunciando-se com competência para amolar facas e tesouras. Tudo isso hoje está no setor de serviços dos shoppings.
O forte do comércio estava no centro, para onde se ia de ônibus da empresa Pedrosa. A linha com o título de “Cidade” era peculiar, porque sendo circular, ia e voltava, levando e trazendo o passageiro sem demora. Usava-se do mesmo jeito “Cajueiro”, com o terminal bem definido. As compras eram feitas assim, na rua da Imperatriz e na rua Nova. Os cinemas eram de rua, como se usa dizer atualmente, e no São Luis o uso do paletó e da gravata era obrigatório. Não se entrava se não estivesse bem vestido. Jogava-se do primeiro andar as peças para contemplar um amigo!
Tudo mudou e o meu entorno, também, há uma selva de pedra no Rosarinho. É pedra sobre pedra por cá! O Recife sempre alagou, as ruas viravam rios e os rios subiam e transbordavam. Passavam camarões apetitosos na correnteza e a meninada corria, os reunia em quantidade e fritava ao alho e óleo. Claro que desabrigava a gente simples, enchia as escolas e as epidemias grassavam. A mesma coisa com as formigas tanajuras, que voavam até cair de gordura e a molecada não descuidava. A panela preparava o quitute.
Uma metamorfose do tudo caracteriza o mundo.

(*) O artigo foi publicado na revista pernambucana Algomais. O leitor que se identificar que comente e o faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com O artigo também é publicado no Jornal da Besta Fubana.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O Violão de Cremilda

Cremilda andava melancólica, achando a vida ruim, monótona. Não lhe bastavam as horas perdidas com a jardinagem, os momentos em que ajudava Biu no cultivo das hortaliças no quintal de casa, nem mesmo o bordado e o crochê davam satisfação. Era uma dona de casa com três empregadas e não tinha ocupação, quase se pode dizer. Vivia para o marido e este a tratava da pior forma, como se fosse uma cadela, dizia tantas vezes. Desocupada e triste, sequer o tinha como marido, haja vista a forma como ele se mantinha afastado dela. Matheus não tinha um afeto, um afago e muito menos a procurava. Era uma mulher só e solitariamente posta no jogo da vida. Tinha que arranjar o que fazer, um aprendizado, um instrumento musical que fosse. Na mocidade, lembrava sempre, estudara violão e poderia retomar as aulas, pensava.

Passava já dos 40 e precisava tomar uma decisão. Não queria ou não podia se separar, porque não tinha como viver, se sustentar e sobreviver dignamente. Era preciso duas coisas, imaginava com os seus botões, arranjar uma ocupação e ter um homem de verdade. Tudo isso sem perturbar o juízo de Matheus, homem duro consigo, mas incapaz de perceber que perdia muito do dinheiro que juntara a partir dos alugueis e dos investimentos em bancos. Isso lhe traquilizava o exercício do existir terreno. A sua amiga Clotilde tinha um professor de violão muito competente, homem dado aos sucessos da música brasileira que ela tanto admirava e que não se cansava de ouvir em suas horas mortas. Todas as suas horas eram mortas, achava! Ligou para a amiga, anotou o número do homem e fez o contato. Acertou as primeiras aulas em casa e começou um curso. Já estava no dedilhar das notas, de dó a si, todas bem aprendidas, sobretudo nas variações melodiosas. Ia vencer, disso não duvidava.

O mestre das cordas era um homem magro, longilíneo, com as mãos talhadas para o violão, achava. Tinha uma conversa aprumada, gostava das coisas boas da vida e muito se admirava da posição de Matheus, carrancudo o tempo todo, fechado com as pessoas. Dia chegou em que verbalizou: “Você não merecia um marido assim! Você é solta e esvoaçante, como se deu com um companheiro tão diferente!”. Ela não respondeu como deveria, pois gostaria de ter dito que só casou por conta do dinheiro, da casa bem abastecida, dos vestidos comprados nas boas lojas, como aquela no centro do Recife, da Madame Anita ou na Casa Sloper de seus refinados gostos, além das viagens que vez ou outra se dava ao luxo. Sempre sozinha, sem Matheus. E conversa vai, conversa vem, Demóstenes pousou a mão levemente em sua perna. Ela ficou suspensa no ar, não esperava por isso, quase desmaia de susto e de surpresa.

Há pouco passara situação parecida. É que hospedada como estava em flat na capital paulista – São Paulo –, fez amizade com todos os garçons do lugar e logo ficou conhecida como a “Apetrechada”, isto é aquela que é dotada de grande beleza física. Mas, a verdade é que ficava até as tantas e quantas no bar do hotel, tomando seu Campari com gelo. Quando já estava pra lá de Bagdá, chamava um dos garçons e com ele subia, ia se acomodar em seu quarto, sob os lençóis brancos de tão alvos trocados a cada dia pala camareira. Sebastião se tornara o preferido, indo quase todas as noites aos aposentos de Cremilda, mas ele mesmo não aguentava tanto, corria o risco de “Bater fofo”, que na gíria dos meninos do bar significava deixar de cumprir os compromissos. E ela se fez nesse mês e meio que passou entre os paulistas. Mais entre nodestinos migrantes que paulistas. 

E o susto com o professor de violão só passou quando o mestre se foi, saiu de casa e voltou para o seus cômodos.

(**) O texto acima é um arremedo de conto, que poderá ter seguimento ou não, a depender dos leitores e de suas respectivas opiniões. A ficção não é uma invenção do escritor, ninguém escreve o que não viu, ouviu ou teve notícias, essa é que é a grande verdade. Assim, Cremilda, não é uma única mulher, representa, em realidade, muitas das mulheres que vi, que ouvi falar ou que tive notícias. Escreva o leitor dando sua opinião, se o texto tem ou não continuidade. O faça no espaço mesmo do Blog ou para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com Os textos têm sido reproduzidos no Jornal da Besta Fubana. 

domingo, 12 de junho de 2011

O diário de uma mulher

Morava no Recife, em sobrado bem afeiçoado e bem cuidado. Era casada e filho nunca tivera. Ninguém sabe se por conta dela ou se por causa do marido; a verdade é que corria à boca pequena que o homem não era muito de mulher, também não era de homem. Pra ele tanto fazia. Não se interessava por sexo, isso sim! Era um avarento, cheio de dinheiro de suas heranças, mas mão de vaca, contido com as despesas. A mulher fazia-lhe uns pintos, como se dizia outrora da retirada feminina dos recursos destinados às despesas de casa. A feira ou o mercado e um pinto a mais na conta da verdadeira ninhada de suas cobiças. E por ai as coisas iam se compondo.

Era incapaz de deixar o ambiente doméstico, porque não fazia parte do costume daquele tempo. Abandono do lar era a figura jurídica logo invocada e ao que se dizia a mulher perdia todos os direitos. Não tinha profissão, senão a de prendas domésticas, por isso também não deixaria as suas mordomias. Ia vivendo dessa forma, sustentada à base do habitual surrupio nas reservas maritais. Dessa forma, embora suportando as grosserias todas a que era submetida, não arredava o pé: dia e noite naquele teitei. De toda forma tinha certo poder na constelação conjugal, em função de sua responsabilidade com o carro. Dirigia o veículo e dele cuidava, conduzindo o homem acima e abaixo. Pra frente e pra trás. É claro que trabalhar, Matheus, propriamente, não trabalhava, mas visitava os inquilinos e acompanhava seus investimentos no banco. Vivia de renda!

Sempre foi uma mulher bonita e bem feita. Morena da cor, morena jambo, diziam os amigos do marido durante as noitadas em sua casa, quando se jogava o pôquer até a madrugada, em fins de semana ou até às quartas ou às quintas. Afinal, não trabalhava o dono da casa. Assim, onde passava chamava sempre muita atenção. Em casa e na rua. O cachorro de quintal, Severino Ramos da Silva, Biu por apelido, ficava deslumbrado quando Cremilda surgia no terreiro de short curtinho, como se fora aquelas meninas de seu Romeu, novas na idade e assanhadas no modo de vestir. Mas ela não, mulher de seus 40 anos, não tinha modos, pensava, expondo-se, como fazia, mostrando as pernas; as pernas e as coxas. Ele ficava embasbacado! Pior quando inventava de se queimar ao sol de verão, diante do galinheiro, até o galo espiava. Severino se perdia em seus afazeres, deixava de ciscar o terreiro, de retirar o lixo e de cuidar das galinhas com aquela visão surrealista de mulher.

Aconteceu um dia que a respeitável Cremilda, não contando com nenhuma de suas auxiliares, despedidas em função de seus caprichos, assumiu todo o serviço de casa, lavando a louça e cozinhando, fazendo naquele dia um guisado de frango. Ficou enjoada com o calor e os salpicos d’água em sua blusa e decidiu-se por ficar nua da cintura pra cima. Os homens ficavam dessa forma com a maior facilidade, por que ela não? E tirou a roupa. Já não usava sutien de hábito, tal a firmeza de seu busto e ficou com tudo de fora. Seios firmes, duros, hirtos era o adjetivo que melhor lhe caia, dizia e repetia com palavras decisivas e definitivas. Biu ficou estupefato com a cena; a cena e a atriz daquele espetáculo, perplexo pode-se dizer, mas baixou a vista em sinal de respeito, ao que Cremilda, verbalizou, em alto e bom som:

- Seu Biu, não precisa ficar assim não. O senhor pode olhar, só não pode é encarar.

Mesmo assim o homem, em sua humildade ou em sua simplicidade, olhou uma única vez, como quem deseja fixar as ideias e não viu mais nada. Na escola, onde fazia o Curso Supletivo, não teve coragem de falar nada, sequer a Monteiro, seu colega mais próximo, amigo do peito, como gostava de falar. Tampouco a Terezinha, sua colega e namorada, que chegava a estrebuchar de ciúmes. Ah, se ela soubesse disso!



(**) O texto acima é um arremedo de conto, que poderá ter seguimento ou não, a depender dos leitores e de suas respectivas opiniões. A ficção não é uma invenção do escritor, ninguém escreve o que não viu, ouviu ou teve notícias, essa é que é a grande verdade. Assim, Cremilda, não é uma única mulher, representa, em realidade, muitas das mulheres que vi, que ouvi falar ou que tive notícias. Escreva o leitor dando sua opinião, se o texto tem ou não continuidade. O faça no espaço mesmo do Blog ou para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

domingo, 5 de junho de 2011

Recordações da escola

Recebi um e-mail interessante, com slides lembrando os anos que se foram nas escolas da vida. São várias lâminas que recordam tinteiros e cadernos, canetas e livros. Uma beleza! Guardei a correspondência para consultar uma vez ou outra e aproveito o mote para tratar do mesmo tema. Eu estudei no Grupo Escolar “João Barbalho” e depois no Colégio Nóbrega. Para entrar no Grupo Escolar – já disse isso outras vezes – precisei de um pedido de meu pai, que sendo deputado ao tempo, influenciou decisivamente, o que mostra que a escola pública não era tão fácil assim. Fiquei no turno da manhã, mas outros amigos, com igual pistolão, foram para a tarde. A seguir, já no Colégio, minha mãe comeu da banda podre para me sustentar estudando, foi socorrida por uma bolsa de estudos parcial, mas deu conta do recado. Hoje – coitadinha! –, na imobilidade do leito, pode ter a certeza do dever cumprido.

Nos primeiros anos do Curso Primário não usávamos caneta, mas lápis o tempo todo, deixando-se a caneta-tinteiro para quando se debutava no Ginásio, em cujas aulas as anotações eram feitas com o auxilio, no meu caso, de uma bem cuidada Compactor, hoje considerada antiguidade nas feiras especializadas: fiquei velho. Era necessário comparecer às aulas com um tinteiro, com a finalidade de abastecer a peça com a qual se escrevia. O comum era o uso do tinteiro da Parker, de cor azul, real, lavável. Os leitores de minha idade, com mais de 65 anos, com toda certeza hão de lembrar desses detalhes. Somente no Científico ganhei de presente uma Parker 51, uma beleza de desing, dir-se-ia no hoje das coisas. Acho que essa velha preciosidade ainda está no guarda-roupa de minha mãe.

Mas, em termos de detalhes, há por lá, no material que recebi, mandado, aliás, por jovem bonita, alta e loura, um extensor para se usar o lápis até o fim. Fiz uso daquilo vezes e vezes, ficando com os meus cotocos até terminarem o que agora se chama de vida útil. E os cadernos? Alguns que são exatamente iguais aos que usei, seguidamente. Tinham na frente alunos fardados, devidamente uniformizados, em direção à escola e atrás a letra do Hino Nacional, que não se conhece habitualmente. E não esqueceu o autor da série de slides do caderno de caligrafia, no qual o aluno treinava a sua letra. A minha não teve jeito e ainda hoje carece de um caderninho daquele para melhorar. Valha-me!

Os livros também estão presentes e o meu volume de geografia, com suas diversas subdivisões está contemplado. Aroldo de Azevedo era seu autor e se podia aprender ali os meandros da ciência que estuda a terra, os mares e os rios, mas também o homem (Geografia Humana). Aquele aluno hoje na casa dos 60, deixou de inscrever o meu livro preferido: História, de Borges Hermida. Natural entender que havia as particularidades todas da memorialística da humanidade, desde a brasileira, propriamente, à universal. Também não está no documentário o celebre livro Crestomatia, de Radagasio Tabosa, adotado no Colégio Nóbrega porque veicula “excertos escolhidos em prosa e verso”. Beleza! Comprei outra vez agora, no sebo eletrônico, para recordar os bons tempos.

O Décio Dias, autor do documentário a que venho me referindo, não esqueceu da tabuada e lá está o caderno próprio para esse uso. É quando lembro de minhas dificuldades com as contas de multiplicar e dividir. Quanto aperreio teve minha mãe, precisando até da ajuda de um vizinho – Maurício Diniz -, muito paciente comigo, ensinando a fazer conta com dois algarismos no divisor, sob os meus protestos de que para mim bastava um algarismo, nada mais.

Terei prazer em enviar o material a quem desejar e se dirigir a mim por e-mail, ao pereira@elogica.com.br ou ao pereira.gj@gmail.com De igual forma, deixando os dados no espaço do Blog.