Bucólica manhã esta, a de um domingo qualquer, em tudo tropical. Ruas desertas de gente, sossegadas e silentes, como se o descanso se estendesse, também, ao inanimado urbano ou como se a brutalidade do concreto vergasse diante do bem maior: o dia consagrado ao Senhor. Sentado em cadeira branca, de plástico, sobre a laje de entrada da construção, o operário olha a avenida, preenche o tempo do ócio da prática que exercita, a de vigiar a massa de pedra e cal que ajudou a erguer, reunindo apartamentos nos quais hão de morar os remediados da sorte e os burgueses empedernidos. Durante a semana, vai sentando tijolo sobre tijolo, depois, reveste, com a massa fina e bem cuidada, parede por parede, sabendo que jamais poderá ser acolhido ali, naqueles cômodos. Estará condenado, sempre, às periferias insalubres ou aos distantes e sofridos rincões rurais.
O casal de idosos que chegou foi visitar uma das unidades, o chamado apartamento decorado, nunca inteiramente pronto. O operário levantou-se de sua tediosa pousada e acompanhou a dupla, passo por passo, com a lentidão da velhice. A boa idade, dizem alguns, escondendo as perdas, a falência do viço e a morte da beleza. O homem usava uma bengala para se apoiar, resgatando histórias ou estórias da infância, adivinhações da tia velha: O que é? O que é? De manhã anda de quatro! À tarde anda de dois! E à noite anda de três! A meninada já sabia, de cor e salteado, que era forma metafórica que a tia Deolinda aprendera para representar a criatura e as suas fases de vida, o engatinhar e a maturidade, em seguida a débâcle. Mulher sofrida, nunca casara e vitalina assim, como ficara, guardava nas lembranças a imagem do noivo morto na guerra. Na guerra? Sim, sempre guerra!
Os sanhaçus voaram de uma árvore à outra, a fêmea à frente, como cabe ser e o macho atrás, na protetora atitude. Pareciam bólidos da paz, tal a velocidade que alcançaram e tal o formato de corpo que assumiram. Duas flechas, quase, que sob os acordes matinais singraram os ares da rua. Do outro lado, pousaram e à sonoridade aguda de uma musicalidade sem par, ensaiavam o corruchiar das proximidades, formas carinhosas de seduzir que os homens perderam, por certo. Ninguém passa mais anos e anos andando de mãos dadas, roubando um beijo aqui e outro acolá, alhures também! Agora, é diferente: “fica-se”. E ninguém sabe direito o que é isso, sendo natural imaginar que não se trata de amor e que não pode ser paixão desesperada, que inquieta por algum tempo! Dantes, esses contactos demoravam anos para a completude. Era melhor!
E o operário voltou a seu canto, trouxe um papel branco e abriu com todo o cuidado, leu e releu, entendeu, certamente. Ligou o radinho de pilha e sintonizou na emissora que transmitia uma toada das saudades. Seria uma carta de quem ficou pra trás? Largada nos caminhos? Talvez! Essas manifestações do espírito, que no passado preenchiam os claros das aproximações, estão fadadas a desaparecerem, o computador e a rede vão condenando a forma epistolar de se expressar à simplicidade dos e-mails. Não se gasta mais tinta com declarações, pior com as rupturas. Fica-se e deixa-se, nada mais! Os namoros são virtuais, permitem às fantasias enfeitarem a imaginação alheia com adornos ou contornos que não existem, quando a realidade chega, tudo muda e a vida cai no cotidiano repetitivo de todos os dias.
Na moradia ao lado, a senhora está só. Mesmo assim, vestiu-se com uma blusa da cor da mostarda e uma saia preta, bem preta. Ficou bonita! Arrumada, como estava, desceu os andares e tomou o carro, saiu a passeio. Onde estará o companheiro? Difícil responder! Brigaram? Desentenderam-se? Viajou? Ninguém sabe! Ninguém viu! Mas, voltou logo. Já saiu contando as horas, ao que parece, diria Gonzaga, se vivo estivesse e se por cá viesse. Está um pouco mais gorda que o habitual, nos braços, sobretudo. Há vinte anos se poderia dizer que vive a felicidade a dois, mas hoje, infelizmente, os enlevos d’alma estão reservados às magras, caquéticas e mal nutridas figuras. O diabo é quem gosta! Trocou de roupa e sumiu, foi dormir. Agora, só vai aparecer à janela quando a noite chegar.
E a manhã se esvaiu, pariu a tarde!