terça-feira, 28 de setembro de 2010

Bunda murcha

Corria o ano da graça de 1960 e eu era aluno do Colégio Nóbrega, começando o Curso Científico, quando Jânio da Silva Quadros candidatou-se a Presidente da República, tendo como seu concorrente o Marechal Lott. Eu tinha, apenas, 16 anos de idade, mas já vislumbrava certos compromissos sociais e via com reservas o desvario do homem. Mas, a vassoura a que se referia, como sendo suficiente para varrer a sujeira toda do poder, francamente, me agradava. Alguns colegas usavam o símbolo do homem na lapela, um brochezinho com a vassoura em metal dourado. Acho até que cheguei a usar. No fim, no fim, como sempre acontece, pouco serviu o instrumento principal do novo mandatário. A verdade é que depois de eleito passou a se preocupar com coisas simples, fora de propósito, como proibir o uso de biquínis e as rinhas de galo, restringindo as corridas de cavalo aos finais de semana. Isso o levou à ridicularia geral.
Lembro, todavia, de algumas concentrações nos meus anos de menino, eram comícios que se realizavam no bairro em que morava: Santo Amaro das Salinas. Ali, pras bandas da rua Tupinabás ou da rua Tupiniquins, mas sobretudo certas manifestações na vizinha Afonso Pena, com os candidatos postos em cima de um caminhão e o foguetório nos ares, pipocando a alegria da gente simples daquele rincão. Lembro, também, do célebre comício na Central do Brasil, no Rio, depois do qual instalaram-se os anos de chumbo. Lembro do político do bairro, cuja filha foi a mulher mais bonita daqueles anos no lugar; simplesmente linda, esguia e bem feita, bem dividida em suas formas de violão, vestindo um short apertado dentro de casa, subindo e descendo as escadas. Criatura de belíssimas pernas, capazes de enfeitiçarem o penitente. Ah! Muitos suspiravam por ela! Gente que tomava uma carraspana e ficava repetindo seu nome: Ricarda! Ricarda!Ricarda! A noite toda nesse tem-tem.Desses coisas todas, sabe melhor Moisés que eu.
Eu não sou de participar de campanhas políticas. Uma ou outra perdida, talvez, durante toda a vida. Lembro que na redemocratização do País sai às ruas, pedindo as “Diretas já!” e depois, no movimento dos “Caras pintadas”, também, mas nas duas ocasiões já era casado e pai de filhas. Saímos todos às avenidas do Recife, em bloco, quase posso dizer, pedindo o afastamento do Presidente da República. Nesse tempo, quando as eleições chegavam, era engraçado, as duas filhas mais velhas torciam por partidos diferentes – o PFL e o PMDB –, como andavam no banco de trás do carro, cada uma de um lado, eu aprovei a ideia de portarem nas respectivas janelas as bandeiras dos dois partidos. Era uma pandega isso! Sendo assim, por onde passava o povo ficava admirado com aquela opção, ao mesmo tempo conservadora e liberal para os padrões da época. Hoje, se diz que os antigos liberais viraram conservadores. Sei não!
Quando tirei o título de eleitor, fui logo designado mesário e passei a ser convocado pelo Tribunal a cada eleição. Era uma coisa danada, até que me livrei desse compromisso. Mas num desses pleitos, eu estava na sessão eleitoral e um pobre homem entrou no ambiente de chapéu, gente mais velha à época, do interior, habituada a cobrir a cabeça e o presidente era um dramático, suspendeu os trabalhos até que o eleitor se dignasse a descobrir a cabeça, em sinal de profundo respeito à pátria e seus cidadãos. Ora mais que coisa, quase digo! De outra feita, a esposa de primo meu, com a barriga enorme, esperando seu primeiro filho, estava sentada na sala de votação aguardando a vez, quando eu cheguei junto do presidente e disse: “Aquela senhora ali, grávida, vai desmaiar!”. Todo e qualquer integrante do corpo eleitoral tem um medo horroroso de um desmaio assim. Com isso, ela votou em primeiro lugar.
Foi numa dessas ocasiões que vi pela última vez Líbia Bunda Murcha! Não sei de seu destino e do que fez com aquele namorado renitente, que marcara casamento tantas vezes. Não havia jeito de contrair núpcias. Mas era uma derretida de meter medo a qualquer novo suplicante que aparecesse no pedaço!

(*) Lembranças de outras eleições e de outros candidatos. Tempo que se foi misturando a beleza de Ricarda com a feiura de Líbia. Deus as conserve neste mundo! Comente o leitor neste espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Gente simples

Desejando o leitor conhecer detalhes da sociologia da gente simples, sobretudo no que tange ao lazer, não há laboratório melhor que o Horto de Dois Irmãos aos domingos. O povo marca presença maciça no recanto ecológico, principalmente no final do mês, depois que o salário é pago e há um trocado a mais no bolso de cada um. Velhos fusquinhas, encostados a semana inteira, saem da garagem improvisada na entrada de casa, os ônibus de linha ficam cheios e outros são alugados para a finalidade quase turística de apreciar os animais e curtir um dia diferente. E lá vai a família inteira! Eu também estive por lá, cumprindo o desiderato parental, mas observando, atentamente, os detalhes todos do convívio entre os mais sacrificados na escala social. E assim passo ao leitor o que trouxe da visita.

As pessoas se preparam com esmero, como se a distração fosse uma festa, vestindo-se da melhor forma. Uma senhora, por exemplo, não dispensou as meias pretas salpicadas de pontinhos brilhantes, capazes de oferecerem proteção às pernas, mas de reflexo muito apropriado às luzes fortes das discotecas tupiniquins. É o brega, como se diz por ai! Os óculos escuros estão em moda, pelo que vi, todos trazendo a inscrição do fabricante no vidro e há vendedores ambulantes no local, com espelho e tudo, oferecendo modelos diversificados. Uma jovem bem cuidada passou um bom tempo experimentando alguns modelos de um camelô, para depois não comprar.

Vestido por vestido, francamente, fiquei lá com uma morena de formas bem desenhadas, à semelhança de um violão, a qual não suportando mais as alças, quase expõe a perfeição do corpo. Já vi isso doutra feita, em festa no Clube Português, quando a moça branca, bem parecida, rebolando numa cadeira, largou nos ares o seio piriforme. Uma negra, também, faz pouco tempo, numa sacudida de corpo, expôs uma mama por inteira. Outra, feia de chorar, não se deu conta e quando levantou lá se foi a saia pra cabeça, enrolada em dobra à altura da cintura. Interessante, da mesma forma, foram as conversas. Um homem negro fazia juras de amor a uma mulher branca, arabizada, de beiços tão grossos quanto os lábios sensuais das mulatas nacionais. Alisava a face da mulher amada, como se estivesse diante um tesouro descoberto há pouco. E estava, mesmo, porque a mulher valia aqueles afetos e aqueles afagos. E ela, caída de amores, derretida com tanto carinho, olhava o namorado com olhos pidões de aproximações ainda maiores. Quase deitam no banco do Horto. Deixei-os por lá num beijo de fazer inveja a Hollywood.

A da sogra é que foi danada! Sentada com o filho, falava da nora de uma forma absurda: “Meu filho! Carne dura se cozinha em panela de pressão!”. Imagine o leitor o drama da jovem mulher, diante de uma jararaca como essa preparando-lhe a cama. Sogra não tem meio termo: é boa ou ruim. Não existe uma sogra mais ou menos ou uma sogra boazinha. Presta ou não presta! E a esposa restou assim, condenada ao fogo da panela de pressão.

Um festa o Horto em dia de domingo. Gente de todos os tipos e de todas as raças. Dois japoneses me chamaram a atenção. Um desses levou a mulher, morena na cor, a mãe, amarela de nascimento e o cachorro, de pelo branco nacarado, que indiferente a tudo cuidava em roer os ossos que eram o lixo do piquenique improvisado. Uma mulher, amarela de berço, casada com brasileiro desgraçadamente feio, mas certamente bonito a seus olhos orientais, carregava o menino à moda de seus ancestrais e oferecia pastel com nome de sua raça.

E o macaco engraçou-se com a morena jubilosa. Fez bem!



(*) – Um texto escrito há muitos anos, publicado em 19 de julho de 1989, no Jornal do Commercio, do Recife. Adaptado ao hoje dos anos. Ando desconfiado que já escrevi melhor no antes do tempo. Ofereço a crônica à minha mãe, tão doente - coitada! -, com a sua lucidez comprometida, condenada à imobilidade do leito. A ela que cuidou em guardar muita coisa do que escrevi pra trás. Ao leitor agradeço se comentar no espaço mesmo do Blog ou para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com 

O Blog está, novamente, circulando no períodico eletrônico "Besta Fubana", graças à ação pronta do Papa Berto I, da República Independente dos Palmares.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O Soldado e o Capitão

Eu era jovem, muito jovem, voltava de uma festa na praia de Pau Amarelo e quando passava pela cidade de Olinda notei que o trânsito estava obstruído, havia uns cavaletes fechando a passagem. Era Carnaval e os festejos da cidade tomavam corpo. No carro vinha minha mãe, que diante do obstáculo ficou muito impaciente, dizendo que não estava aguentando, disposta até a descer e tomar um outro rumo. Eu não tive dúvidas, com a cabeça fora do automóvel chamei o soldado e disse: “Amigo! Eu sou o capitão Marques do Corpo de Bombeiros! Por favor, tire esse cavalete que eu vou passar!” A resposta veio rápida: “Pois não, senhor!”. E foi tirando o cavalete. De repente o sargento grita de lá: “O que é isso?” E o soldado: “É o capitão Marques do bombeiro! Ele vai passar”. Ainda ouvi o sargento confirmar a permissão e bater continência. E eu passei numa boa. Eu, minha mãe e minhas filhas, graças a uma vinculação que nunca tive com o hoje chamado Corpo de Bombeiros Militares, embora tenha tido grandes amigos por lá.


De outra feita, era também Carnaval e eu voltava do Galo da Madrugada com minha mulher. Devia ser entre 15 e 16 horas do sábado de Zé Pereira, como se chama no Recife. Tomei o carro e desejando cortar caminho entrei numa contramão. Nisso, ouço o apito estridente do guarda chamando e gritando: “Contramão! Contramão! O senhor pensa que vai pra onde?”. E eu na maior cara de pau: “Amigo! A autoridade aqui é você, não há dúvidas disso! Mas, eu sou o capitão Marques do Corpo de Bombeiros! Gostaria de prosseguir e de sair dessa embrulhada”. A situação mudou completamente e ele me pediu por tudo que continuasse em frente, isto é vencesse a contramão sem o mínimo pudor. Foi o que fiz! Hoje não faria mais uma dessa, porque o tempo passa e não se tem mais coragem de fazer presepadas assim.


Numa ocasião, vinha pela rua Bernardo Guimarães, aquela que passa atrás da Universidade Católica. Dirigia o meu fusca 65, o primeiro que tive. Havia um soldado do Exército sentado no meio-fio, conversando animado com uma doméstica. Não hesitei, chamei-o as ordens: “Soldado! O que faz ai a essas horas?”. E ele, dando continência: “Eu já estava indo para o quartel. O senhor me desculpe!”. Insisti com a bronca e sentenciei: “Passo por aqui dentro de mais alguns instantes, se estiver ai, será recolhido!”. Sim senhor, respondeu e desapareceu do lugar, com ele também as esperanças de Maria. Essa coisa de soldado do Exército, contava meu pai que em Natal, à época da guerra, o general costumava andar pelas ruas em trajes civis. Numa noite, passeando pelo centro da cidade, decidiu voltar e pediu carona a um jipe que passava. O soldado levou o senhor na maior, mas quando indagado sobre o que achava do general, foi incisivo: “Um chato! Um camarada cheio de vontade. É invenção sobre invenção!”. Na porta do quartel o motorista disse: “Agora eu fico! E o senhor desce!”. E o general: “Eu continuo! Sou o general!”. Não precisa dizer que o recruta quase cai de costas.


Quando os primeiros casos de Dengue foram diagnosticados no Brasil, houve uma mobilização geral das repartições de saúde para a nova doença que ia chegando e eu fui indicado para uma Comissão de Dengue. Adotamos a linha de educar os profissionais médicos, para que se preparassem para o enfrentamento da virose que ia chegando. Eu fui fazer uma palestra no Quartel General. Cheguei, olhei da porta e sem hesitar entrei, um sargento que portava uma metralhadora veio correndo atrás de mim gritando: “Onde vai?”. Eu ai parei, me voltei pra ele e respondi: “Eu ia! Mas, o senhor grita tanto que eu não vou mais. O senhor avisa ao General que eu vim fazer a palestra e voltei diante de sua gritaria.”. O homem quase endoidece com minha decisão de voltar e só não se ajoelhou pedindo que entrasse porque eu lhe disse da brincadeira.


E por ai vai!



quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Contrastes do Cotidiano

Acomodado ali, numa sala de espera de um laboratório de análises, aguardando a vez, como tantos outros, nunca pensei testemunhar diálogos que me permitissem ensaiar reflexões quase sociológicas, a propósito do difícil exercício da vida, quando a idade vai marcando o tempo com a prata dos anos. A senhora, na casa dos oitenta, era a cliente aprazada, imagino, fazendo-se acompanhar da filha e de mais um filho, além de uma neta muito jovem, ainda. Conversavam a respeito dos incômodos provocados por ela, pela mulher de idade avançada, de corpo vergando à força das décadas e de bengala à mão. Desfiavam um rosário de queixas, desde o sono precoce no cair da tarde à insônia das madrugadas, sem falar nas impossibilidades fisiológicas de retenção das excreções orgânicas. Falavam como se estivessem imunes à senectude!

A moça era a mais loquaz! Morava com a avó e por isso vinha presenciando cenas com as quais não concordava; não concordava em vê-la sedentária, na sala do apartamento, entregue à artrose, enquanto o avô, todos os dias, descia e fiava boa conversa com o porteiro do prédio. Que fosse, também, àquele passeio matinal, entre o andar de cima e o térreo e ouvisse do empregado as suas histórias, mazelas de uma outra vida! E não podia se conformar, também, com o cochilo vespertino, transformado em sono profundo até, com roncos e outros ruídos, à boquinha da noite. Por isso, às quatro já estava de pé, andando pra lá e pra cá, insone. É que ao despertar daqueles inícios oníricos na varanda de casa, não cuidava em sair correndo pra cama, como desejava a nunca cuidadosa neta, mas tomava banho e lanchava. Assim, perdia o sono e os sonhos!

A filha, mais cautelosa, pouco dizia, mesmo que não reagisse. O filho, entretanto, malhava a mãe com todas as culpas. Não se cuidava! Deveria tomar três remédios distintos para a hipertensão de que era portadora, mas esquecia. Tomava dois ou tomava um! Nada tomava, por vezes! Um absurdo, insistia! Pior quando a neta abriu a boca para falar da incontinência urinária da pobre mulher, a sujar o sofá da sala e a deixar um rastro, como se bicho fosse, antes de chegar ao banheiro. Tinha que sair atrás, com o pano de chão, a enxugar tudo e era preciso providenciar para se levar ao sol a peça em que costumava sentar-se, impregnada, como estava, pelo líquido das excreções humanas. Procedia assim porque queria, afirmava com todas as letras e com todas as sílabas, pois nada a impedia de se levantar antes das urgências orgânicas. Fosse mais cuidadosa, portanto!

A avó, que cumpriu, como se imagina, uma trajetória longa, palmilhada de sacrifícios e preenchida por doações que só as mães podem oferecer, nada respondia e nada comentava, ouvia tudo com uma fisionomia de profunda tristeza. Em que estaria pensando? Que reflexão fazia ali, naquele momento de tantas reclamações e de tantas queixas? Quase me aproximo e intercedo em favor da mulher idosa. Ou quase chego perto e verbalizo o futuro que está reservado a toda gente, de uma forma ou de outra. Por que se ocupavam de comentários assim, tão vazios de conteúdo existencial? Que benefício poderia ter fiando conversa com o porteiro? O homem do prédio teria o que lhe acrescentar à vida vivida? E o sono? Não sabem que é da idade, mesmo, essa sonolência precoce e a insônia do despertar antecipado? E não conhecem a fragilidade dos esfíncteres humanos na velhice?

Lembrei-me de uma outra cena que vi, há poucos dias, num hospital público do Recife, tão diferente daquela interlocução de ocasião. No leito da emergência uma senhora, também, de cabelos brancos como as nuvens do céu, ao seu lado o marido, de idade próxima, como parecia, agradando-lhe os braços e confortando-lhe o espírito. Gente simples, penso eu, sem muito estudo e sem muita cultura, mas dotada de afetividade, de amor ao próximo, sobretudo assim, no sofrimento e na dor. Viveram juntos, por certo, anos e anos na contabilidade do tempo e talvez se despedissem, mas a palavra que os uniu e os afagos que os aproximou confortavam a derradeira hora.
Contrastes do cotidiano, apenas!
(*) O diálogo foi verdadeiro! Uma idosa e seus filhos - uma filha e um filho -, uma neta também. Fiavam conversa levando a pobre da senhora de muita idade ao desespero quase. Ninguém respeita os que têm cabelos brancos, os que deram muito de si. Criticam como se fossem imunes à velhice. Ah! Se imaginassem o futuro de cada um! Leia e comente, no espaço mesmo do Blog ou para os e-mails pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

sábado, 4 de setembro de 2010

Um Domingo no Recife

Os antigos domingos do Recife eram diferentes, em muito, desses de hoje! Não havia "self-service", pelo menos! Dia de se juntar a família e de se fiar conversa com a parentada toda, atualizando a temática do, apenas, mundano. Tempo de parar e rever, na paróquia do bairro ou na matriz do centro, os pecados da semana, um a um contados ao cura, da forma mais cochichada possível, contanto que não se pudesse ouvir da fila as faltas e as falhas. A penitência, também, determinada pela gravidade dos pensamentos, das palavras e das obras! Intervalo sabático para se fazer a leitura mais do que demorada dos jornais, com especial atenção ao caderno literário e aos fatos do esporte. O Santa Cruz jogando, ainda, com: "Jorge de Castro/Aldemar e Edinho". Momento reservado ao almoço diferenciado, da galinha de cabidela ainda não vulgarizada, selecionada no terreiro de casa, dentre aquelas fora da postura e do choco, servida à mesa com sangria de bom vinho.

Quando o dia amanhecia, ouvia-se, de todo lado, o repicar seguido dos sinos da cidade, um aqui e outro ali, alhures, também, chamando os fiéis, que, às vezes, eram mais do que infiéis, para a Missa. De casa, um périplo saia às ruas! Os meninos e as meninas à frente, para serem vistos pelos pais, mais atrás e finalmente, naquele séquito que antecedia a liturgia e o rito, os avós e as tias, lentamente, como andam, ainda hoje, os velhos, bem velhos. Na igreja, era preciso ocupar mais de um banco pra caber tanta gente! Os filhos, todavia, ficavam sob o rigoroso cuidado do pai e da mãe, metade pra cada um, com o objetivo de aprenderem, adequadamente, o comportamento durante o ato de canônica liturgia. Nas passagens de maior significado, a constelação parental se ajoelhava, menos a avó e a tia velha, dispensadas pelo monsenhor, Camareiro Papal que era, do sacrifício dessa posição respeitosa. E cada qual portava um livro de orações, mais ou menos volumoso, a depender da idade. Todos, igualmente, traziam o terço, poucos, porém, se ocupavam com os mistérios, gozosos e dolorosos.

O resto da manhã de domingo era preenchido, quase sempre, por um filme, no São Luiz ou no Moderno, a cuja sessão, mesmo que matinal, obrigava-se o paletó e a gravata para os rapazes. E não era muito raro pedir ao um amigo, emprestada, uma peça assim, de roupa, para compor a indumentária ou jogar do primeiro andar do cinema o paletó surrado, para integrar outra vestimenta, então, enganando o porteiro. Dramas de amor encheram as telas e molharam a face de muita gente, deixando gravadas as letras chorosas das perdas irreparáveis: "Por que não páras relógio/Não me faças padecer...". É possível que alguns introjetassem essas rupturas, antecipando os danos do amor que a vida, muitas vezes, reserva! Nas poltronas da platéia, invariavelmente, os casais enamorados trocavam juras e faziam promessas nunca vãs, roubavam os primeiros ósculos e ensaiavam os afetos dos inícios, de cujos começos emergiram amores perpetuados, ainda.

Quando a tarde amornava o dia, expondo as árvores em grandes sombras, instalava-se a pelada ou o "rasga", como se chamava esse tempo da bola. Juntavam-se os meninos todos da redondeza e um deles, o dono da pelota, de borracha ou de couro, era, invariavelmente, escalado. Uns jogavam muito bem e outros muito mal. De todos, nenhum deu pra gente, isto é, ninguém seguiu a carreira do futebol e na escalada da vida, tiveram que trabalhar duro, mesmo, amealhando centavos. Quem atrasado chegasse virava juiz e com o apito expunha à galhofa a mãe e a outros ancestrais assemelhados. A rua, inicialmente, de terra batida, recebeu a modernidade que o asfalto trás e muito samboque de dedo foi arrancado nos chutes a gol, os quais, se bem sucedidos, valiam as feridas e as dores. Isso tudo a vizinhança renegava, porque a bola varava os ares e ia cair nos quintais alheios, provocando a ira da gente local e as lições de moral se sucediam, das casas que ficavam às margens do improvisado campo, sem grama e sem barra, que fosse!

À noite, o cinema do padre! Mas isso é outra história! E outros quinhentos cruzeiros.