domingo, 27 de junho de 2010

Um guarda-roupa de cinema

Eu estava na França, em companhia de minha mulher. Tinha ido visitar uma filha que fez por lá um estágio de mais de um ano. Mas, como já fazia algum tempo que não voltava ao Brasil, decidimos visitá-la. Foi uma estadia boa, porque além de termos passeado pelos lugares mais aprazíveis daquele pais, voltando a monumentos e a museus, fomos à Inglaterra, onde nos hospedamos por dois dias, se bem me lembro, em casa de amigo pernambucano fazendo doutorado na terra da Rainha. No meio dessa curta temporada francesa, porém, estávamos sentados num café desses que espalha as mesas na calçada e havia uma agência de correios defronte. Resolvi, então, enviar um cartão a um certo amigo de minhas filhas em Pau Amarelo. Tínhamos por lá um duplex que nos valia nas férias e nos feriados prolongados, mas sem um nome que caracterizasse o conjunto, senão pelo apelido de “Pombal”, haja vista serem as casas pequeninas, como se fossem casinhas de pombo. Esse amigo assim selecionado era dessas figuras dramáticas, desses personagens entusiasmados com qualquer aproximação que fosse dos bem nascidos da cidade. Daí a decisão. Ficaria vibrando, pensei!

Só que para o endereçamento postal – não havia CEP – eu não tinha em mãos certos detalhes do conjunto em que ele morava, da rua e do bairro, senão que era em Pau Amarelo, onde desembarcaram os holandeses no século XVII. Pois resolvi mandar assim:




Ao Príncipe Gustavo de Bourbon e Bourbon
Rua Dra. Vilma Cavalcanti – Por trás da Igreja do Ó – Proximidades do Cemitério - Conjunto Habitacional do Pombal.
Paulista – Pernambuco – Brasil

O carteiro atento, como são esses funcionários dos Correios, procurou o servente do lugar, Luiz de prenome, e indagou: “Seu Luiz? Por aqui mora algum príncipe?”. Ao que o servente respondeu, de pronto: “Não! Aqui? Nunca vi ninguém ser príncipe por cá! Tem muita gente metida a besta, mas príncipe mesmo nunca vi!”. Mas, quando o funcionário encarregado da entrega disse o nome, Gustavo, aquele interlocutor de ocasião imediatamente identificou: “Sim! Mora aqui! Bloco 2. Casa 4”. E a entrega foi feita. O Gustavo ficou tão satisfeito com a correspondência, que andava, acima e abaixo, levando o cartão postal. Até que o tempo passou e ele perdeu a bela foto francesa enviada de Paris.
Enquanto estávamos na França, o dinheiro foi minguando, como seria de se esperar. Estávamos hospedados em casa emprestada de pernambucana quase francesa. A cama do apartamento parecia de cinema, pois se levantava do chão e virava uma porta de guarda-roupa. Pois, fizemos isso em certa manhã e minha mulher, em seu desligamento próprio das psicanalistas, como é, afastada, portanto, do comum das coisas, mostrou um maço de dinheiro que de repente surgiu: “Gera! Você disse que está sem dólares na carteira! Veja onde está seu dinheiro!”. E eu: “Você acha que eu guardo dinheiro debaixo da cama? E ainda mais em Paris?”. Claro que ali não estava o meu dinheiro. Eu não teria 400 libras para largar assim? Acontecera o seguinte, como imagino: os hóspedes anteriores perderam as finanças. Penso que os pernambucanos hospedados ali dias antes, tomaram uma cachaça braba de vinho tinto ou tomaram um porre de champanhe e deixaram o tutu ao léo. Bom! Trouxe as cédulas todas na carteira, mesmo sem poder usá-las, tendo jantado na noite desse achado apenas um omelete com uma cerveja e nada mais, para entregar à senhora que nos emprestara o apartamento. E assim o fiz!

E o dinheiro sob a cama foi uma miragem que voltou comigo, tão perto de mim, mas tão distante.

(*) - Um relato verdadeiro, real, de minhas experiências no Velho Mundo. Uma passagem quase de cinema, de enredo bem urdido escrito por quem fala da vida e de suas circunstâncias. Coemente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com  

domingo, 20 de junho de 2010

Pé de Moleque


O tempo que se vive é o das chuvas. É muita água caindo nesse meio de mundo. O ruim é que a gente simples termina sendo jogada nas encostas, perdendo a casa e tantas vezes a vida nas enxurradas. Puxa, que contraste! Mas, desde menino que vejo a chuvarada cair nesse mês de junho, antecedendo o São João. Ano já houve em que uma quadrilha em casa de meu pai, inventada por mim para dançar com a namorada que virou minha mulher, quase não acontece, por causa de um verdadeiro açude no quintal, justamente onde os pares iam dançar a noite toda. E de nada ou de quase nada serviram os passos daquela coreografia que já enfeitou os salões da nobreza e hoje caracteriza os festejos juninos de minha terra: o pai da moça não permitiu que ela viesse para os ensaios. Sendo assim, breu! Mas, no fim da noite, um cunhado enfezado fez as pazes comigo graças ao conhaque Coringa, de cuja ressaca nunca esqueci. Nem ele! Não sei se ainda existe tal conhaque.

Menino, bem menino, lembro de minha avó com o avental branco, do qual tanto se orgulhava meu pai, mandando bater a massa do bolo. Era um pé de moleque – sem hífen, segundo o Aulete –, à época, pode confiar o leitor, com os tracinhos que sempre uniram as palavras em duradouros abraços. Convocava as empregadas domésticas com um tratamento diferente, próprio dos anos patriarcais, chamando-as de criadas e recomendava fosse preparada a massa. Eu não sei dos ingredientes, mas sou capaz de lembrar que estando pronto o acepipe principal da noite, era rigorosamente proibido pegar as castanhas na superfície do bolo. Eu não atendia às regras da família – nunca atendi às regras – e roubava uma, duas, três daquelas deliciosas castanhas, para desespero de minha avó.

Mas, sendo um dia – ou uma tarde, porque os festejos começavam às 6 da noite – de mais movimento, a minha criatividade infantil ou juvenil me fazia criar mão e contramão na sala. Sendo assim, na condição de guarda de trânsito doméstico, cujo mister se passava à semelhança de um trator, empurrando os que desrespeitassem as normas, não era incomum fazer uma das quatro empregadas voltar se estivesse na via de fluxo contrário. É claro que o trator podia se aproveitar de uma penitente qualquer fora da mão recomendada, recomendando a minha própria mão. E talvez tenha sido Nina quem mais infringiu o código de trânsito doméstico. Ela ia e voltava sempre pela contramão, como se o trator tivesse combustível para tanta infração. Mas, coube a Virgínia dos Palmares, mulher negra, que se perdeu na bagaceira, o prêmio de infratora mais bonita naqueles anos.
Às 18 horas, rigorosamente, com chuva ou sem chuva, acendia-se a fogueira, para que não morresse o dono da casa no ano que se seguia. A madeira rangia e os galhos verdes pareciam gritar os horrores já do desmatamento precoce. Ao final, sobravam as brasas e os versados nas coisas do espírito atravessavam aqueles carvões pegajosos com os pés descalços. Fiz isso mais de uma vez, até que os espíritos me proibiram a proeza e queimaram os meus pés. Não sei as razões pelas quais a minha mãe era destacada para os fogos, soltando os vulcões e os foguetões. O meu pai ficava apreciando o foguetório, mas não era homem de iniciativa nas coisas do fogo. Soltava-se bichas de rodeio, estrelinhas e rodinhas até acabar o estoque e depois o sono presidia o espetáculo da cama. Era uma noite e tanta!

Os anos se passaram e o São João foi mudando; mudando os personagens e mudando a musicalidade, Luiz Gonzaga morreu e outros o sucederam. Hoje, cantam Dominguinhos e Gonzaguinha, Santana e outros tantos.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Três Sorvetes de Duas Bolas

O tempo é cruel. A velocidade com que passa, ainda mais. As coisas se sucedem numa rapidez tão grande que assusta. Pois é, amigo leitor, eu era Vice-Reitor da Universidade Federal de Pernambuco – já se vai quase uma década que deixei – tendo como papel previsto nos estatutos e no regimento substituir o Reitor em seus impedimentos. Assim fiz, sem deixar de lado os meus interesses pela cultura e pelas artes. Sempre fui um promotor nesse campo tão peculiar do humanismo. Mas, a verdade é que o titular do cargo me chamou certa vez e indagou: “Geraldo! Você pode levar um diplomata cubano para almoçar?”. Levar eu posso, respondi, o que não posso é pagar, complementei. Acertamos lá como me pagariam depois, haja vista receber em meu contracheque uma verba de representação da ordem de R$ 40,00, cujo destino, àquela altura do mês, já tinha sido determinado. De mais a mais, uma refeição, em restaurante fino, com o diplomata e sua esposa, não podia ser barato e a minha representação era irrisória. Talvez desse para um lanche de fim de tarde, um sanduíche misto e um refrigerante.
Mas, fiz os meus cálculos imaginando o que servir a um homem assim. Pensei com os meus botões: “Um diplomata cubano não conhece as coisas do Brasil, ignora o consumismo e não vai pedir coisa cara. Não tenho a menor dúvida!”. Às folhas tantas, a secretária avisa que o penitente chegou e eu passo a conversar com ele e sua mulher em meu gabinete. Confirmo que não sabia muito das coisas, quando o chamo para um restaurante e ele ignora as opções que apresento. Ótimo, avaliei! Fiz a escolha, optando por uma casa de pasto – esse é um nome horrível – próxima à Reitoria, porque voltaria para trabalhar, enquanto ele, ao que agora me parece, retornaria ao hotel.
Chegando ao lugar – um aprazível lugar –, indaguei a seguir se desejava tomar um aperitivo. Preferi não oferecer as opções, primeiro porque eu mesmo não sei a definição exata dessa condição, isto é de aperitivo ou não sabia, pois acabo de ver no dicionário o significado e dentre alguns dos que estão listados no Aulete, penso que no caso dele era exatamente o seguinte: Bebida alcoólica que se toma antes da refeição, supostamente para abrir o apetite. O meu convidado, então, chamou o garçom e fez a solicitação: uma dose de wisky Johnnie Walker Black Label. Confesso que fiquei perplexo. Nunca esperei isso! Tomou uma dose, duas doses e três doses. Eu apenas assistia àquele espetáculo que seria pago por mim, de camarote, pois que beber não podia, ia trabalhar a seguir.
O restaurante era uma churrascaria dessas de rodízio, de forma que o garçom empanturrou o homem e sua senhora de carnes as mais diversas e eu comi dentro de minha quota habitual, nem muito nem pouco. No final, pediu um cafezinho, mas a esposa, virando-se para mim, disse: “Senhor! Eu não tomei wisky! Ele tomou três doses! Eu gostaria de tomar três sorvetes de duas bolas. Posso?”. Claro, minha senhora, fique à vontade, foi a minha resposta. E ela, depois de consultar o cardápio e de tomar conhecimento dos sorvetes que existiam, tomou os três de seu gosto, cada qual com duas bolas.

Valha-me Deus, quase digo!.

(*) - O caso é antigo e ocorreu comigo de verdade, mas com um final feliz. Cabe ao leitor, se gostar comentar, se não gostar comentar também. Escreva no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

domingo, 6 de junho de 2010

Amores na Praça

Em noites assim de um domingo qualquer, em recantos bucólicos nas praças e nas ruas do Recife, os amantes ainda trocam beijos e promovem o intercâmbio dos afetos. Nada mais salutar! Pras bandas do Derby, nos domínios da Brigada, o baixinho acariciava a mulher grande e mestiça, amorenada da tez e arabizada de corpo. Mais pra frente, no Parque Amorim das tradições dos papa-figos, o homem negro, de bigode bem aparado, roubava da branca mulher o ósculo das despedidas, num abraço forte de quebrar as costelas. E, finalmente, defronte ao velho Pronto Socorro, o jovem derramava-se em carinhos pela amada amadurecida nos anos. Cumpria-se assim, num ritual dos afagos, a terminalidade do domingo, a finitude do dia santificado, dantes dedicado à guarda.
Outrora, também, nas alamedas escuras do parque 13 de Maio, na boquinha da noite, os meninos se encontravam com as namoradas, alunas tantas vezes da Escola Normal ou estudantes outras vezes do Colégio Pinto Junior. Passeava-se de mãos dadas, enlaçadas, pra lá e pra cá, andando com os pés e as fantasias nos caminhos de pedra. Depois, era a hora de sentar para fiar conversa, para saber das aulas e dos recreios, dos receios sobretudo, das indagações proibitivas dos antanhos. Juras de amor preencheram os ares do parque por anos seguidos, carregando de esperanças o imaginário de muita gente, das meninas especialmente, mas dos meninos também. Muitos amores morreram ali, na fonte das águas coloridas! Deixaram plantadas por lá, todavia, as árvores de todas as saudades, a brotarem no pistilo das flores e no mês de maio, o das noivas, as sementes das lembranças.
Em dezembro instalava-se no parque a Festa da Mocidade, encantando a todos, crianças e adolescentes, meninos e meninas, adultos barbados e babados com a beleza das mulheres de fora, vedetes do teatro de rebolado. Às sete da noite, todos os dias, com lua ou sem lua, a moçada ultrapassava os umbrais da fantasia e assumia essa vida diferente, de lazer o tempo todo. Os jogos de azar não, estavam reservados à maturidade, mas, vez ou outra, quando se distraia o soldado de plantão ali quase permanente – o Marcha-Lenta –, o pessoal arriscava um trocado. Perdia, sempre! Às nove, infalivelmente, chegavam as vedetes e o desfilar daquela mulherada exótica em direção ao teatro era um ritual dos mais acompanhados, uma liturgia da sensualidade. Em casa recomendava o pai os cuidados habituais. Tudo, menos freqüentar a peça teatral! Tinha escrito, no Jornal do Commercio mesmo, horrores contra as manifestações assim, da carne. A consciência doía, mas se assistia ao espetáculo todas as noites! A proibição do juiz de menores era debalde, pois que seu preposto, investigador do juizado, era um moleirão e a enrolada comia no centro. Uma entradinha rápida, coisa de cinco minutinhos, nada mais e a noite estava feita.
Vale a pena rever tudo isso. Tudo é válido quando o coração comanda o espetáculo!