quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O Peru Bêbado

Natal de 2008, francamente, foi delicioso. Não poderia ter sido melhor. As duas filhas que moram fora – uma na Espanha e outra no Ceará – encontraram-se aqui, em minha casa e, de certa forma, resgataram a família em sua inteireza. Fizeram como anos atrás costumavam fazer: conviveram. Simplesmente conviveram! Foi uma graça de Deus tê-las conosco, por muito pouco tempo, mas conosco. A mais velha, Fabiana de prenome, trouxe no ventre o filho primogênito, Pablo em espanhol, como convém ser a quem há de nascer em Madri. O porco, que cisca pra frente – e porco cisca? –, deu sustância à mesa e o bacalhau com batatas abriu o jantar bem cuidado. A alegria e o burburinho repetia os anos em que foram meninas e se esmeravam nas conversas e nas interrupções de quase interlúdios.

Já tínhamos cumprido a liturgia que precede a noite, o ritual das antecipações. A festa é boa por isso, pelo movimento dos preparativos, do antes das coisas, do ir e do vir no abastecer da dispensa. Foi sempre assim com a humanidade. Compramos o vinho, recomendado por quem de vinho entende, e o pão das preferências familiares. O queijo chegou de origens diversificadas, do Mercado da Encruzilhada, onde o tipo coalho faz sucesso e de uma loja de todas as finuras do Recife, o de cabra, sobretudo, mas aquele de manteiga também, dos gostos de toda gente, mas proibido no rigor da lei dos impedimentos nutricionais. Castanha do Pará e figo em conserva, mas ninguém dispensou a castanha de caju que de Fortaleza chegou. Acepipe tão nosso, em tudo regional. Um brinde dos convivas selou as afinidades parentais.
Mas o que existe de pitoresco em uma noite de Natal ou nos preparativos da ceia? Lembrei de meu tempos de menino, do peru que vinha como presente todos os anos e de como se engordava e se matava a ave que passou décadas adotada como típica da noite em que o Menino nasceu. O bicho ganhava peso às custas de uma farofa de bolão que se introduzia, goela abaixo, para que o animal pegasse peso e se prestasse, da melhor forma, à mesa. Na véspera, como de praxe, devia-se passar a faca no pescoço do penoso e prepará-lo para o degustar noturno. Isso era um drama, porque o peru não se entregava com facilidade e era preciso oferecer uma dose de aguardente bem calibrada para que durante a bebedeira se degolasse o justo. A minha avó, ciosa de seus compromissos culinários, gritava em voz alta para mim:
- Geraldo! Vá à venda de seu João e peça uma dose de aguardente. Explique que é para matar o peru, senão ele pensa que seu pai vai tomar.

Eu cumpria à risca a recomendação da avó paterna! Mas, essa era uma explicação completamente desnecessária, porque não havia dúvidas quanto à sobriedade de meu pai, dia por dia e hora por hora. Mas, se era para dizer, eu dizia e resposta, francamente, nunca me deram, senão a entrega do copo que oferecia nas mãos de seu Erasmo – dizia minha mãe que era um interessado no estabelecimento –, dele mesmo recebendo, sem delongas. Introduziam a bebida na garganta do bicho e passavam a faca no pescoço. Muitas vezes assisti o animal sair correndo, sangrando e completamente embriagado, trocando as pernas – coitado! –, sem destino, quase se pode dizer. Mas, daí a pouco entregava os pontos e morria, sendo despenado e levado ao forno em recipiente apropriado.
Hoje, tudo mudou e mudou completamente. Inventaram um tender e criaram um chester. Novidades da modernidade, substitutos do porco e suplente, em pleno exercício, do velho peru. Ninguém sabe mais o que é um peru bêbado, sem rumo, trocando as pernas como se gente fosse ou se gente pudesse ser. Ninguém sabe também como é um chester vivo e a esse propósito divulgo a fotografia que encontrei na Internet, de uma ave assim - um chester - vivo e bulindo. Havia quem acreditasse que sendo chester, só existiria morto ou não existiria, digamos.
Mas, dos meus natais todos ficaram os presentes de fim de ano que me dava o meu pai. Dentre todas essas lembranças, nunca esqueci dos passeios à rua da Aurora, à beira do Capibaribe, onde nos debruçávamos no caís e víamos de longe – de muito longe – o Governador na varanda do Palácio das Princesas. Passeios que terminaram, infelizmente, mas que permanecem vivos em minhas memórias. Certa vez, no amanhecer do dia 25, quando os meninos da rua recebiam os presentes da Fábrica TSAP, eu tirava de baixo da cama uma mannlicher – podia se dá arma de brinquedo no Natal –, com a qual dava tiros no nada das coisas. Usava rolhas de cortiça como balas e tinha a força do ar comprimido, mesmo frágil, no acionar do gatilho.
(*) - Crônica de Natal, resgate do meu ontem e do meu pretérito distante, bem distante. Texto que ofereço ao meu dileto amigo Roberto Monteiro, Bob por apelido e coronel por derradeiro, a quem, sem querer, acordei para uma consulta em minha grafia: "Como se escreve mannlicher?". E ele foi de uma atenção e de uma gentileza que só o
tempo de amizade pode explicar. Comente se desejar para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Se não desejar nada comente ou não se pronuncie, mas tenha um Feliz Natal e um Ano Novo de felicidades. Segue também oferecido a Juliana Moroni, amiga aqui das filhas, prestes a viajar para a China. Loura, como está, vai impressionar multidões.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Esculhambação Geral e Irrestrita

Ainda ressoam em meus ouvidos as vozes todas dos meus 40 anos de formado, numa festa sem par, em Suape. Ou as minhas retinas ainda guardam as imagens dos sessentões todos que compareceram, as brincadeiras quase adolescentes e o riso frouxo, solto, como se fosse a sonoridade de um batuque alegre, resgatando pretéritos e renovando esperanças. Que beleza! Os chorinhos vieram comigo em CD da banda e as fotos antigas, algumas com o amarelo do tempo marcando as distâncias, também. Trouxe, da mesma forma, as minhas saudades de toda gente, dos companheiros de uma década mágica, a de sessenta, colegas de sala de aula, convívios e convivências impagáveis, suficientemente capazes de serem assim revividos. Gostei que me enrosquei – lembra a minha avó – das histórias de Ataíde, hepatite por apelido e ataúde por cognome, com uma memória digna de sua juventude. Arre! Diria minha tia velha!
Sentei e fui anotando o que me dizia o homem de todas as memórias, copiei em papel reciclado, como cabe fazer e passo ao leitor condescendente. Contou que o Tampa - de - Chaleira, de quem se ignora o destino, indagado pelo professor de bioquímica sobre a importância do Acetil Coenzima A (Acetil-CoA), respondeu, de logo: “É tão importante que não pode ser dito em qualquer lugar!”. Não precisa adiantar que foi reprovado e condenado à segunda época, como era praxe fazer. O nosso Araripe, desaparecido, de igual maneira, dos encontros, precisava ter retirado o estômago de seu cadáver para ter acesso ao pâncreas, como não o fez, foi interpelado pelo lente de anatomia: “E você ai? Onde está o seu pâncreas?”. Não titubeou: “Professor! Marretaram o meu pâncreas!”. Ora, quem iria furtar o precioso órgão de tão ilustre psiquiatra?
Em certo casamento, ia chegar o “Nego Jomar”, mas avisaram ao porteiro do prédio que o “Sr. Macaquinho” deixaria uma lembrança e como tal deveria ser tratado. No fim das contas, quem chegou foi Sulamita – apelido de um colega e nome de uma professora –, obtendo do nunca atencioso porteiro o recado destinado ao “Nego”: “Obrigado seu macaquinho!”. Foi um deus nos acuda e o convidado negou-se, peremptoriamente, a participar da cerimônia matrimonial, retirando-se em sinal de profundo e grande protesto. Disso, contam, nunca esqueceu! Pior com Albino, na prova oral de Dom Pixote: “Meu filho! Qual o alcalóide derivado da noz moscada?” E ele, inadvertidamente: “Está na ponta da língua e não sai!” O catedrático não perdeu tempo: “Engula, miserável, é estricnina! Você morre!”.
Por fim, o grande mestre Bezerra Coutinho, a um passo do centenário, se vivo estivesse e por aqui viesse, indaga ao nosso psiquiatra Araripe, como já comentei desaparecido dos convescotes habituais, que dormia a sono solto na aula: “Moço? O que é o choque?”. Referia-se à uma das situações mais graves em medicina, aquela da queda brusca da pressão arterial e de um comprometimento cardíaco imediato, assim como risco cerebral indiscutível. E o colega, com a sua inteligência habitual, foi acordando e dando uma explicação a seu modo: “Choque, meu caro professor, é uma esculhambação eletrolítica!” E o pior é que é mesmo, o sódio, o potássio e o cloro, além de outras substâncias vitais, sofrem um abalo mais que significativo na concentração e o caos se instala. Instala-se um desequilíbrio entre os ácidos e os sais do organismo. É uma esculhambação geral e irrestrita.
Arre! Diria a tia velha!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Jia, Ovelha e Pluto.

Na manhã de 8 de dezembro, nos 40 anos exatos da formatura, alguém poderia ter dito, como Carlos Drummond de Andrade: “E agora, José?/A festa acabou,/A luz apagou,/O povo sumiu,/A noite esfriou,/E agora, José?/E agora, você?”. Dessa forma, quase repetiria a paródia do verso, distribuída em 1968 pelo laboratório Carlo Erba, com o prenome do personagem substituído por doutor: “E agora doutor?/A festa acabou/...”. Ninguém disse, porque de nada serviria repetir terminalidades. Antes, todos se reuniram no pequeno auditório para uma retrospectiva dos anos. Assim, o velho relógio foi marcando, com uma foto após a outra, a passagem das quatro bem contadas décadas. Todos gostaram do encontro, e disso reclamação não houve, senão a de Ricardo Fofa – Richard Fofa –, insatisfeito com a carta de vinhos, pois que se acostumou com bebidas finíssimas, por mais de R$ 500,00 a garrafa. Valha-me Deus!
Tudo começou com a celebração levada a efeito pelo padre Francisco Caetano Pereira, interessante figura do clero local, conhecedor de Aristóteles e de Voltaire. Homem versado nos segredos da filosofia e nos meandros da teologia. Falou dos sonhos que preencheram a juventude e da realização de todos ou de quase todos no hoje dos dias. E disse do tempo que se esvai com a passagem do presente; presente, aliás, que precisa ser vivido intensamente, sem dispensar o passado e sem desconsiderar o futuro, que a Deus pertence. Não deixou escapar a pitada graciosa e ao mesmo tempo irônica, das esperas nos consultórios médicos, sobretudo se o atendimento for por ordem de chegada. E é isso mesmo! Ali, naquela sala transformada em templo, de mãos dadas, os maduros concluintes de quarenta anos atrás rezaram aos céus, pedindo paz e amor, como faziam os antigos hippies.
Alguém tomou um velho papel, carcomido pelos anos, e pediu a cada um dos presentes que assinasse, indicasse o apelido e registrasse o endereço eletrônico. Talvez com isso tenha repetido o gesto dos professores de outrora, aos quais nunca se deu o direito de conhecer os jeitos modernos da informática. Baré, de todas as distâncias amazônicas abriu a lista e vieram os demais: Cláudio Catarro e Silvio Histologia, Jacaré e Espantalho, Hepatite e Estrelinha. Mas, quando se pediu o nome e o cognome de Marcelo Macaco, Jia, de pronto, intercedeu, pedindo fosse modificado o apelido para Mico Leão Dourado, haja vista o alvo da cabeleira e o branco do bigode. E assim foi! Pluto se fez presente e acompanhado de Ovelha, de Pato Feio e de Bochecha quase entoam um cântico de despedida, não fosse a ação imediata de Jia, que abriu a boca de batráquio bem criado e deixou nos ares a voz anfíbia das melosas cantigas do passado.
Ataíde, cujo apelido mais forte era hepatite, foi conhecido, também, como ataúde. Homem de uma memória prodigiosa, capaz de resgatar grande parte do discurso de paraninfo do mestre Zappalá, saiu-se com essa:

Marcos (Espantalho), ao tempo de estudante, tinha pouco dinheiro no bolso e por isso, não hesitou em fechar o rombo no sapato com um esparadrapo, cobrindo o remendo com a conhecida tinta Tic-Tac. Vai entrando no clube com a namorada Nina e de súbito pisa numa ponta de cigarro. Dá um salto se defendendo da queimadura e quase não espera a pergunta:
- O que foi isso?
Mas, responde prontamente:
- Muita animação para entrar no salão.
E a festa prosseguiu com Jia se transformando em parasita de Ovelha. Não largava o ovino por nada nesse mundo. Foi a primeira vez que um batráquio passou a viver dependente de um ovino.

E a mulher de Pluto, que cachorra não é, diante de tanta brincadeira e de tanta alegria, expressou o seu pensamento: “É muita vida!”.



(*) - Primeira de algumas crônicas que pretendo escrever, depois da festa dos 40 anos de formado. Experiências do hoje das coisas e histórias do ontem do tempo. O pitoresco dessas passagens, na palavra de velhos companheiros dos bancos de Universidade. Comente, se desejar, para pereira.gj@gmail.com ou para pereira@elogica.com.br Se nao quiser, nada escreva e nada diga. Mas, leia!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Uma Carroça Cheia de Livros


Mestre Ariano Suassuna diz que toda cidade tem sempre um amalucado de plantão. Certa vez disse ao paraibano ilustre, pernambucano por adoção, que vinha usando a afirmativa dele em relação aos bairros do Recife. E é assim mesmo: há um desajuizado em cada esquina. Era dessa forma nos meus anos de menino e continua sendo agora, na maturidade dos meus anos. Aliás, quando eu era adolescente e depois rapaz, no viço da idade, então, existiam por lá, em minha rua, na localidade conhecida como Pombal, limites - já disse isso - da Boa Vista com Santo Amaro das Salinas, pelo menos três desses figurantes especiais e ao mesmo tempo enigmáticos: Sabará, Gata Preta e Piuí. Cada qual tem uma história a ser contada, um fato a ser relatado e uma ocorrência para o riso frouxo do leitor.
Começo por Piuí, que sendo o derradeiro da lista, talvez tenha sido o mais peralta desses todos. Tinha vindo das bandas de Palmares, conterrâneo, portanto, do Papa Berto I, Sereníssimo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Sertaneja. Quando menino, apanhara feito o cão. Costumava dizer que o pai lhe punia com: “Couro, couro, couro, couro...”. Um horror! Gritava em minha porta e pedia o café com pão do desjejum, chovesse ou fizesse sol. Com isso, sentava no jardim e ajudava à babá na alimentação de minha caçula, Carol por apelido. Ameaçava beber a mamadeira e a criança tomava o leite de um gole, quase. Gostava de circo e me fazia pagar a sua entrada ao primeiro sinal de uma lona sendo armada e um palhaço gritando pelas ruas: “Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor!...”. Recebia o dinheiro e assistia do começo ao fim. Depois, cuidava em me contar tintim por tintim tudo o que vira.
Mas, certo dia, chega a noticia de que o nosso Piuí, muito conhecido, aliás, na Universidade Católica, tinha morrido. Fora executado, contaram, sob uma marquise qualquer da rua do Sossego – ah, lugar sem sossego! –, o que fez muita gente chorar e até Missa de 7º dia acertaram com o vigário do lugar. O artista plástico Paulo Brusky me telefonou às lágrimas, citando um artigo que publiquei no Jornal do Commercio. Foi um auê, um fusuê danado! As coisas continuaram no ritmo de todos os dias e numa ocasião qualquer, voltava do Agreste, quando me deparo com a figura na Encruzilhada de São João, onde toda gente pára e faz um lanche. Às vezes uma galinha de cabidela e outras vezes uma carne de sol bem torrada. Não me contive: “Piuí! Você não tinha morrido?” E ele, alheio às coisas do mundo: “E morre? Morre?”. Insisti: “Piuí! Você ressuscitou?” Mas, a resposta foi a mesma: “E morre! Morre!”.
De Gata Preta, confesso, sei de poucas, mas o meu fraterno amigo Moisés Diniz socorreu-me por telefone. Contou que Gata vem do tempo em que existia a Fábrica TSAP, onde lavava os carros do estacionamento. E os funcionários foram dando apoio ao penitente, até que ele entrou numa banda de Moacir. E terminou, de tanto manusear o pandeiro, quebrando o instrumento, razão para se cantar, a torto e a direito: “Gata Preta vai pagar o pandeiro de Moá!”. E o nosso felino, tão humano como era, quase enlouquece com a ameaça da galera. Moisés tem um repertório de personagens e de histórias que daria um livro e muitos e muitos Blogs. Falou de Seu Guarda, de Jacaré e Cobra d’ Água, como de outros tantos. Até lembrou que à época, havia tanta tranqüilidade, que o nosso guarda noturno era um anão, Zé Alves, funcionário uniformizado da Prefeitura, guarda municipal, então. Valha-me Deus!
De todos, Sabará era mesmo o de maior significação, pela forma como falava e pelas tiradas do dia-a-dia. Acordava muito cedo e não dispensava a lapada madrugadora. Quando chegava na esquina já passava das 9 horas e nunca deixou de cantar: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco esquecer/Aquela ingrata que me amou/E que me abandonou...”. Eu saia para a Faculdade pelas 13h30 e várias vezes ouvi a observação do homem: “Esse ai vai para a escola com um livro grosso na mão. Quando eu estudava, ia uma carroça de cavalo atrás de mim com os livros do dia.!”. Divulgava que sabia de tudo e de todos e à primeira pergunta, fosse de que natureza pudesse ser, largava a resposta: “No livro que eu estudei essa página caiu!”.

E por ai vai!
(*) Uma crônica de final de ano, dias antes do 8 de dezembro, aniversário de 40 anos de minha formatura, razão para oferecer aos meus colegas de turma. Mas, ofereço, também, ao Papa Berto I, Sereníssimo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Sertaneja, citado no texto. Desejando comentar, não hesite, o faça para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Caso contrário não comente, abstenha-se de tudo e de todos.

domingo, 23 de novembro de 2008

A Promessa e a Viúva ou o Sagrado e o Profano


Quando se tem 17 ou 18 anos de idade, nem se imagina o que vem pela frente. Pensa-se, apenas, em aproveitar o momento e a hora, nada mais. Acho que foi isso, exatamente isso, que me contaminou naquela noite de 13 de janeiro, do um ano já distante mais de quatro décadas na contabilidade do meu tempo: 1963. Eu misturei o sagrado com o profano. Mas, já naqueles anos eu vislumbrava uma aproximação entre o sacro da veneração e da adoração com o pecaminoso e sujo do mundano, quando via os estandartes das procissões e os comparava ao pavilhão de um clube de carnaval dos meus agrados ou dos meus mimos: Os Brotinhos. É tudo a mesma coisa, refletia comigo mesmo, em minha mente tomada pelos pensamentos do mundo. Por isso, fui à procissão e depois terminei fazendo uma visita à casa de Dona Sophia.

Eu tinha passado no vestibular de medicina e a mãe de meu colega, a quem na faculdade coubera o apelido de Jia, fizera uma promessa de que se fôssemos aprovados acompanharíamos a procissão, sustentando o andor, inclusive. Confesso que neste particular, força não tive para manter aquele enorme peso sobre os meus ombros, por mais que tentasse e por mais que quisesse cumprir o trato com os céus; trato, aliás, que não fora exatamente meu, como pode depreender o leitor. Mas, fizemos, eu e ele, o percurso todo com o préstito, cantando e rezando, de vela acesa na mão, como todo e qualquer penitente naquela noite. Lembro que andamos pelo pátio do colégio inteiro e que não precisamos sair na rua. Era, como muitos anos depois vim saber, uma procissão interna.

No final, vencido o tempo do sacro, o meu ilustre companheiro de tantas jornadas, fez o convite:
- Vamos à casa de Dona Sophia?

Eu não sabia bem de quem se tratava, mas logo, logo, fui esclarecido. O Jia disse da importância dessa visita, por se tratar de uma enfermeira – enfermeira prática, digo de pronto -, cujo convívio nos seria muito útil, explicava o colega que viria a ter o cognome de um batráquio importante. Poderíamos nos iniciar na profissão de Hipócrates assim, através dessa salutar amizade. De mais a mais, complementou o grande anfíbio, era mulher de predicados femininos qualificados como interessantes e tinha por hábito, sendo uma balzaquiana, na linguagem do tempo, não resistir aos encantos de um quase adolescente como éramos nós dois. Concordei, mesmo sabendo que a intenção não parecia ser das mais puras. Fomos lá, batemos e ela abriu a porta com gosto e graça.

- Boa noite Dona Sophia! Como vai a senhora?

Depois dessa saudação simplória o Jia fez a apresentação de praxe:

- Apresento-lhe o meu amigo Geraldo Pereira, calouro, como eu, de medicina, recém aprovado, também, no vestibular.

E ela, muito entusiasmada com as presenças, mostrou as cadeiras e acompanhou com a vista cada um de nós. Sentamos e aceitamos a cerveja estupidamente gelada que nos ofereceu. Em poucos minutos já estava tão próxima que parecia uma velha amiga de cinco ou seis anos atrás. E quase a queima roupa me indagou:

- Explique o que é o Monte de Vênus?

Eu não sabia, por hipótese alguma, mas a explicação veio rápida da parte dela, seguida da explanação quase científica da importância que tinha a protuberância feminina durante o intercurso sexual, quando servia de almofada aos movimentos dos amantes. Daí, justificou, a valia de se manter a pilosidade inteiriça, sem cortes e sem aparas, sem deplilação também, contrariando hoje todas as mulheres do mundo. Foi de tal forma sensual em sua descrição, que ainda hoje somos admiradores declarados dessa proeminência que dá graça e frescor à mulher. Com a discrição das senhoras de boa origem fez a demonstração prática e prometeu novas descrições anatômicas, contanto que nos iniciasse na matéria. Nunca mais esqueci isso! Lembranças sacras e profanas desse meu tempo distante, dessas iniciações de tantas décadas pra trás!

(*) - Lembranças de momentos que se encantaram no infinito de todos os pretéritos. Curiosidades inscritas agora em minhas recordações assim perpetuadas, na largueza do inteiramente virtual. Comente para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Ou não comente, nada escreva ou nada deixe redigido.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O Vagabundo da Praça


Aproximou-se a passos lentos, como se estivesse medindo as distâncias, mesmo conhecendo esses entornos de cor e salteado. Escolheu um dos bancos e estendeu no encosto o paletó surrado, sentando-se em seguida, não sem antes acomodar a seu lado a caixa de leite em pó cheia de revistas. Abriu uma dessas e passou rapidamente as páginas, detendo-se, aqui e ali, numa foto qualquer, sem que lhe importassem os textos. Retratos da sensualidade feminina à vista de um homem como outro qualquer, diferenciado, apenas, pela condição humilhante do analfabetismo, que inibe a cidadania. O cão ajeitou-se no chão, abriu a boca preguiçoso, fechou as pálpebras, jurando fidelidade que tantos desconhecem e quase ronca. O passante, que empurrava a carroça repleta de latinhas usadas - o lixo do luxo da burguesia -, com o filho a lhe ajudar no ofício, decidiu parar e descansar. Tirar um deforete, diriam os antigos!
Cumprimentaram-se e um diálogo nasceu! O vagabundo falava e gesticulava, argumentando com segurança, explicando, certamente, as suas idéias e os seus ideais. O interlocutor de ocasião retrucava o quanto podia, discordando, então, do pensamento alheio. A criança, absorta, acompanhava os dois na conversa, sem compreender bem de que falavam e o que discutiam. Não houve acordo e o moço forasteiro se alevantou, virou-se para o menino e fez o gesto universal, tocando a fronte com o indicador da mão direita: É doido! Seguiu em frente, voltou à faina da reciclagem do alumínio, garantindo a féria. Outra vez abriu uma revista, folheou com a mesma rapidez e se deteve na visão da nudez! O menino de rua, cheirando cola, quase senta, não fossem os latidos do cachorro. O cavalo que passou pachorrento, como cabe ser aos equídeos, nem ligou para os dois, mas por pouco não provocou um acidente grave, malgrado a precisão dos freios.
Do outro lado da rua, o vigia do prédio em acabamento descansava a sua monotonia sentado em cadeira de plástico, desdobrando um pedaço de papel com o qual se ocupou. Leu com vagar uma, duas, três vezes, se pouco e novamente acomodou aquilo que parecia um bilhete no bolso da camisa. Seria uma carta de amor, como aquela que amigo meu enviou para a mulher amada nos tempos da adolescência? Copiou de um livro especializado em declarações o conteúdo de uma dessas, que dizia: “A perspicácia que te caracteriza dá margens a que meu amor por ti se concretize...” E veio me pedir para corrigir! Ora, nem sequer sabia o que era perspicácia! Ou as palavras e as frases expressavam rupturas de uma paixão? O que lera e o que sentira, ninguém sabe, ninguém viu, tampouco ouviu! Mas, preferiu distrair-se com as maluquices do personagem à sua frente, falando baboseiras – coitado! -, o discurso dos loucos de qualquer um dos nossos logradouros!
Um homem aproveitava o domingo para um extra e descia a fachada do edifício em equipamento de segurança duvidosa, rejuntando as pastilhas. O vagabundo prestou atenção à cena e não se conteve, versejou assim: "Se você cair/Não vai se ferir/Pois estou aqui/Para lhe acudir..." Dava esperanças ao pobre peão, dependurado como estava, sustentado por um cabo de aço. O empregado gritou lá de cima, repetidamente: "Doido! Doido! Doido!..." Diante desse vozerio todo, a mulher de um prédio mais antigo, de amplos e bem divididos apartamentos, apareceu na sacada. Vestia roupa de dormir, ainda, uma camisola curta, de transparência parcial, mas tinha as formas bem desenhadas de quem fora bonita na juventude. Já ia pelos quarenta, pouco mais ou pouco menos. O marido, mais ciumento que cuidadoso, puxou-a de volta. Afinal, não valia a pena essa exposição matinal. Quase repito a crônica de Veríssimo: “Uma Vizinha Maravilhosa”.
E os ponteiros do relógio se abraçaram, hora de se procurar o restaurante e degustar o bode bem passado. Mas, o maluquinho ficou, porque não tem o direito dos outros, o de se alimentar! O vigia também e o peão. Só a mulher de beleza pretérita sentou-se à mesa e pôde almoçar! Depois, foi dormir a sesta da tropicalidade. Acordou tarde e perdeu o sono à noite. Arrumou todo o guarda-roupa. Valha-me Deus do céu! Quantas peças?
(*) - Eis a crônica de um domingo qualquer, misturado às experiências de todos os sábados e de outros dias úteis e inúteis. Ou então, eis as minhas observações de um cotidiano repleto de convívios urbanos, mesmo que prefira a ruralidade da República Independente de Todas as Aldeias. Comente para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Ou não comente, abstenha-se, nada escreva e nada pense. Ou
diga horrores! Faça, enfim, o que bem desejar.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Doido ou Abilolado

Como estudava no Colégio Nóbrega e o portão dos alunos era na rua do Príncipe, eu costumava flertar com aquela moça à saída das aulas sempre. Com a aproximação das férias, precisei tomar uma atitude, falar namoro, dizia-se à época. Fui bem aceito, mas os meus amigos do time de futebol e aqueles do papo de todas as horas nunca me dispensaram e o apelido da menina corria solto: “Boca de Caçapa”. Em função da jovem namorada usar uma prótese dentária frontal. Nunca entendi o caso, pois caçapa é o saco do jogo de sinuca; saco objeto de todas as tacadas dos craques da mesa. E a boca da suplicante não era assim tão feia. Ela foi das primeiras pessoas no Recife a migrar para os Estados Unidos, onde, aliás, morava um colega meu de Grupo Escolar, com quem cheguei a me corresponder por algum tempo. Ele, inclusive, conseguiu uma amiga que me escreveu, mandou fotografia, mas eu nunca respondi, porque de inglês pouco sabia. Mas, a foto levantava a auto-estima, sempre que olhava. Retrato grande, oferecido em inglês.
Essas coisas são interessantes, passam e depois de 50 anos afloram dessa forma, ao sabor da pena ou ao sabor do movimento dos dedos no teclado. Como emerge agora um outro namoro, com aquela quase vizinha, a quem sete vezes me acheguei e de quem sete vezes me distanciei, por iniciativa dela. Eu era um abestalhado, pois acabava o idílio – eu chamava desse jeito –, mas reatava, quando na radiola de sua casa rodava um disco tocando uma música, cuja letra de tão velha sequer a Internet é capaz de registrar: “Volta/Vem rever nossos jardins/Vem amor/Nunca mais te afastarás de mim!”. E a grande rede de computadores dispõe de tudo ou de quase tudo. Se o leitor puder me ajudar, que ajude. Não sei quem canta, só sei que ela tinha o hábito de ouvir Núbia Lafayette e Dalva de Oliveira, mas não posso confirmar de quem era voz tão maviosa, depois de tantas décadas vencidas.
Lembro, no entanto, que na rua apareceu um figurante novo, um gaúcho, filho de um aviador – era o nome que se dava –, comandante da velha Pannair do Brasil, falando com o sotaque que impressionava e impressionou a penitente, encantando-a. Ele não dizia “Você”, engolia as letras e pronunciava apenas o “Cê”, de forma que tendo me encontrado, eu de bicicleta e ele andando a pé, numa volta que dei no quarteirão, de reconhecimento, buscando a presença de intrusos, me abordou: “Cê” já comprou alguma coisa para casar com Estela (nome fictício)? Ao que respondi: “Não! Só tenho 14 anos de idade e não penso em casar!”. Mas, o nosso amigo “Cê” já tinha providenciado um liquidificador e a louça do café. A namorada, não precisa adiantar, com a mesma idade, foi bater nos braços do outro e eu fiquei a ver navios mais uma vez. Depois dessa ruptura e dessa oportunidade, nunca mais a vi, senão uma vez, queixando-se da vida e do casamento. Mas, não casara com “Cê”! Talvez tenha sido a minha vingança!
Naqueles anos os namoros e os contactos todos entre meninos e meninas eram sempre muito distantes. Passava-se uma semana para se pegar na mão e um mês para se enlaçar a moça com os braços sobre os ombros. Um beijo simples se dava aos seis meses e a boca era território sagrado, sendo abordada com um ano, se a memória não me trai. Por isso, me admirei muito quando a babá de casa quase me seduziu, aos 11 ou 12 anos de idade. Não se falava em pedofilia naquela década agora tão distante. Mas hoje em dia, teria sido um caso para qualquer programa de polícia, prato cheio para o espaço televisivo de Datena, o apresentador da tarde. E parodiando o mestre Paulo Cavalcanti: “O Caso eu Conto como o Caso Foi”. Lembro que tendo sido criado com vó, só tinha dois caminhos: Ficar doido ou abilolado. Fiquei doido.
Era uma tarde de janeiro, penso eu, caia uma chuva-de-caju, com tudo a que tinha direito: raios, relâmpagos e trovões. Estavam reunidas no alpendre as mulheres de casa: minha avó, minha mãe e a tia mais nova. Mandaram que fosse tomar banho e designaram a babá recém chegada para me enxugar. De nada serviu dizer que não precisava mais desses serviços ou desses achegos e até desses aconchegos. O medo da gripe assustava toda gente e a moça, vencido o meu tempo na água, subiu os 17 degraus da escada e adentrou o banheiro. Quando abriu a toalha eu já estava de pé numa cadeira antiga, de cor preta, trazida de encomenda da casa de minha avó materna. Uma preciosidade de móvel, pintada depois – em reparação? – de branca. Não entendi a perplexidade da criatura, nova também, talvez nos seus 16 ou 17 anos de idade.
Aproximou-se e me enxugou como nunca tinham feito, com todos os afagos do mundo. Um certo exagero, imaginei! Depois, me chamou para o quarto, com a desculpa de me vestir e tendo aberto as pernas mostrou as suas intimidades, dizendo: “Passa aqui!”. Eu não sabia bem de que se tratava. Tinha ouvido o galo cantar, mas sem noção do terreiro. Era uma idéia vaga, a partir de uma conversa com o grande Sérgio Jibóia, Cacique Moroubixaba Primeiro e Único. Fiquei de tal forma transtornado – o leitor compreende –, que não podia sair dali, mesmo ouvindo um carão: “Menino! Avia! Para com isso! Fica normal!”. O normal era aquilo mesmo, aquela situação inusitada que tinha passado e ainda passava. E as coisas continuaram, sem uma finalização, é claro. Um dia, talvez como forma de cortar a situação, estranha para mim, ou mesmo como uma maneira de expiar minhas culpas, denunciei a menina, pelo simples fato de não ter trazido um copo d’água: “ Papai! Damiana (nome fictício) vive me mostrando o pipi!”. Imagine o leitor o que houve! Meu pai queria prender a moça e no dia seguinte, sob a proteção de minha avó – sempre minha avó – a criatura pegou a maleta e se foi. Se arrependimento matasse eu era um homem morto. Valha-me Deus do céu!
(*) Um artigo dos meus anos e dos meus tempos. Lembranças pitorescas, dolorosas ou generosas, dos meus dias. Uma indagação também ao leitor sobre a letra de uma música que me ficou gravada, em parte apenas, na memória. Comente se desejar ou não comente. Use os e-mails pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Desrespeito à Autoridade

Trabalhei como médico de um Sindicato de trabalhadores e cheguei a ser Diretor do Serviço. Outros colegas, inclusive alguns – dois para ser preciso – que são leitores deste espaço, foram também funcionários dali, sendo um desses diretor, também, por um período. Havia uma convivência fraterna, pois nos encontrávamos fora do ambiente de trabalho, sobretudo às sextas-feiras, quando reuníamos o Bataclan, um pretenso clube voltado aos acepipes – camarão e lagosta –, degustados ao sabor de uma cerveja bem gelada. Vez ou outra, na casa de um colega designado, havia uma partida de dominó e ríamos às bandeiras despregadas. Na verdade, Bataclan era um nome emprestado de uma novela da Globo, tendo um sentido completamente diferente do nosso, vez que era o nome de um cabaré. Conosco havia uma pureza primitiva ou uma quase inocência.
Mas, o cotidiano era um número, pois driblávamos a vigilância, ombro a ombro, do Presidente, o Sr. Luiz Galhardo (nome fictício). O homem vivia prestando atenção a tudo e a todos, me chamando por qualquer razão. Certa vez, tendo passado por um consultório fechado, ouviu o típico e insubstituível ruído das pedras de dominó. Mandou, então, me requisitar e o fez enfurecido. Eu já sabia da reação e fui matutando uma saída. Sabendo que o homem cultivava certos hábitos conhecidos nas rodas da malandragem como taras, inventei uma história. E expliquei: “É, Senhor Galhardo, os meus colegas estavam discutindo um caso de perversão sexual e o dominó era uma barreira, para que não fossem ouvidas as considerações.” O homem ficou curiosíssimo, queria porque queria detalhes e eu com a minha habitual matreirice, apenas repetia: “Desculpe! Mas, é segredo médico!” Não havia nada, nem perversão, nem reunião de discussão. O que havia mesmo era um jogo de dominó para encher um intervalo. E eu cansei de dizer aos colegas: "Nos intervalos joguem! Mas, pelo amor de Deus, não façam barulho!"
Correu à boca pequena que um jovem colega ortopedista ia ser demitido e o motivo era muito simples, costumava andar com a camisa aberta, um cordão de ouro no peito e uma pulseira no mesmo metal no braço. Nesse tempo, o Governador de Pernambuco era um político jovial, habituado a esses adereços também, razão para defender o médico com a alegação de que era necessário que ele, o Presidente, mais habituado com a bajulação que com a reação, pedisse a saída, também , do mandatário maior. Com isso, o Galhardo botou o rabo entre as pernas e desistiu da demissão, mas nunca deixou de marcar o profissional. Foi quando aconteceu de outro ortopedista manifestar o desejo de se demitir. E eu: “Não agora! Você fica na reserva, quando ele disser que precisa demitir alguém, vai você!”. E assim foi feito, não sem a admiração ou a perplexidade do Galhardo: “Fica fulano e sai sicrano?”. Quase não faz! Tinha amizade ao demitido.
Depois, surgiu um novo o boato: eu seria demitido. Aquilo para mim seria péssimo. Eu ganhava pouco, mas o salário me servia, somava-se no final do mês ao que fazia na Universidade e ao que recebia do Estado. Montei uma estratégia junto ao colega Ptolomeu (nome fictício), pedindo que ele entrasse comigo no elevador e dissesse em alto e bom som que eu seria chamado para Secretário de Saúde. É que o jovem Governador estava de saída e outro assumiria, como é natural, sempre. Foi dito e feito. Em certa tarde, entramos juntos: eu, Ptolomeu e o Galhardo. Ptolomeu colocou o braço em meu ombro e disse com sua voz gutural: “Já soube da novidade: você será o Secretário de Saúde!”. E eu, mascarado, como faz qualquer jogador de futebol, sem aceitar bem a afirmativa, não negava. Deu certo, fiquei mais um pouco.
Mas, o diabo é que o gestor estadual decidiu por uma visita do Sindicato, eu fui chamado, porém julguei que seria uma temeridade comparecer e lá não fui. Quando o secretariado foi nomeado, o Presidente não hesitou e atirou forte: “Pensei que o senhor seria Secretário!”. Ao que respondi: “É! Não aceitei! Fiquei, entretanto, na retaguarda e vou orientar todas as decisões do ocupante. Acabo de chegar de Palácio.”. Um tempo a mais garantido! Até o dia em que mandou me chamar urgente e eu disse que tinha vários doentes por atender e assim que terminasse o procuraria. Fui demitido por desrespeito à autoridade. Bolas!

Crônica que vai oferecida ao meu ilustre colega Almir Peter, encantado para o infinito das coisas, Presidente perpétuo do Bataclan. Comentários para pereira@elogica.com.br ou para pereira@gmail.com

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Isso é coisa do PT!




Passei um bom tempo dando consultoria a uma indústria farmacêutica. Era uma atividade boa, porque leve, de poucos encargos. Dava aulas aos propagandistas e acompanhava as pesquisas cientificas; pesquisas realizadas como forma de fechar o processo obrigatório de liberação das drogas ou com o objetivo de “semear”, como diziam, o produto novo, recém lançado e exigente em receituário. Sempre tive muito cuidado com a ética e nada desenvolvia que me levasse a suspeitar – apenas suspeitar – que feria os princípios morais da profissão. Isso, vez ou outra, produzia um choque com a minha chefia em São Paulo, mas nada que estremecesse o relacionamento, pois não fazia e não fazia mesmo, custasse o que custasse. Não admitia argumentos quando a minha consciência acusava a necessidade de cuidado e de respeito.

De quando em vez precisava viajar. Numa das oportunidades, tendo acordado muito cedo, acompanhei o final de uma partida de tênis na quadra do hotel, recebendo na torcida um dos jogadores. Era um senhor de meia idade, alto e galego, estrangeiro, parecia. Queixava-se da dureza da quadra e eu, sem arrodeio, sugeri: “O senhor deveria dotar os seus sapatos de amortecedores!”. Não havia ainda esse apetrecho nos calçados esportivos. Uma das pessoas ao meu lado, admirou-se tanto que indagou: “Sabe que esse é o Presidente da companhia?”. Eu não sabia e tranqüilizei o meu interlocutor com a informação de que ele também me ignorava e ignorava a ele próprio, seu advogado de ocasião. Voltando desse encontro, já no avião, sentei em poltrona tendo a meu lado um passageiro neófito. A aeronave começou a jogar, balançando pra lá e pra cá, e ele: “É normal! Foi o que me disseram!” E eu: “Não é não!”. O susto foi tão grande que ele molhou a camisa toda de suor. Ainda hoje tenho remorsos.
Em outra ocasião levei muito pouco dinheiro e de São Paulo deveria viajar a Juiz de Fora (MG), para visitar uma tia gravemente doente. Quando se leva pouco, pode se preparar: vai ser pior! E foi mesmo! Já no aeroporto, inventei a besteira de alugar um táxi comum, achando que faria grande coisa. O motorista, de saída, indagou de mim, forasteiro na cidade grande: “Por cima ou por baixo?”. Eu não imaginava a resposta e me sai com essa: “Faça como achar melhor!”. Mas, o pior é que me atrapalhei com a leitura do taxímetro e desprezei a vírgula, porque já desbotada, perguntando no caminho se a corrida era tão cara? A moeda era outra, mas foi mais ou menos assim: o marcador acusava R$ 5,20 e eu li R$ 52,00, dez vezes mais. O motorista aproveitou-se do matuto aqui e no desembarque ainda tripudiou: “Vou dispensar a aplicação da tabela. Afinal, o senhor é nordestino como eu!”. E paguei o que eu mesmo calculei. No hotel me gozaram até não poder mais!
Mas, a chefia em São Paulo foi mudada mais de uma vez no período, terminou nas mãos de um colega muito reservado, tímido, mofino até, demorado com as decisões e sobretudo submisso aos diretores leigos da companhia. Quando fui eleito e nomeado Diretor do Centro de Ciências da Saúde, da Universidade Federal de Pernambuco, o penitente tomou conhecimento e eu comecei a ter mais dificuldades em comparecer aos eventos. Um belo dia me ligou e disse que diante do meu novo cargo, melhor seria me afastar do lugar. Concordei com ele, mas com a ressalva de que tinha 10 anos de casa e gostaria de uma indenização. Acertamos os ponteiros e eu fiquei aguardando um telefonema dele sobre o montante. Mas, com aquele bota-fora, sentiu-se no direito de suspender o meu pagamento e o fez naquela tarde. Não prestou!
O Diretor pediu que não dissesse a ninguém de minha saída, alegando que sendo eu muito conhecido na classe, poderia não agradar a alguns e prejudicar as relações na propaganda. Decidi, então, por uma solução amigável: um trote. Ora, eu sabia que o mofino ligava uma secretaria eletrônica no almoço e telefonei, justamente, na hora. Fui atendido pela cortesia da máquina e soltei o verbo: “Você me pediu para não dizer nada a ninguém! Eu não disse, mas recebi uma ligação da revista Olha (nome fictício), indagando os motivos de minha saída! Não respondi nada! Pedi que me ligassem às 16 horas!”. Era tempo de eleição para Presidente e quando o tímido chegou quase enlouquece. Ligou, imediatamente, e depois das perguntas de praxe, largou a afirmativa definitiva: “Isso é coisa do PT! Já estava suspeitando que iam aproveitar o fato! Fique calado! Não diga nada!”: Claro que eu condicionei tudo ao depósito de meus proventos. E às 17 horas conferi o saldo: o numerário estava certo.

(*) - Texto que aflorou agora, numa manhã de quarta-feira, véspera da publicação no Blog. Desejando comentar, não hesite, escreva para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Ricardo Soares

Quando o pai morreu, informou a toda gente e promoveu as exéquias segundo os costumes. Mas, no sétimo dia ligou para comunicar a Missa fúnebre e à minha indagação de onde seria a cerimônia litúrgica, não hesitou: “Em qualquer igreja tá valendo!.”. Não quisera pagar o óbolo do ofício. Por coincidência, na mesma semana, uma voz gutural não identificada ameaçara a família com uma sentença certeira: “Olha a cheia!”. Eu fui acusado e não houve nada que o convencesse em contrário. Afinal, quem tinha fama de passar trote na enfermaria era eu e quem tem fama deita na cama, diz o ditado popular. Viajei à Europa pela vez primeira com a incumbência de identificar nos museus da Inglaterra a espada que pertencera a seu pai, um nobre ou quase nobre na Índia, injustiçado pelo governo de sua Majestade. Nem liguei para essa missão enlouquecida.

Era uma grande figura, sem dúvida alguma. Verdadeiro ator com a sua trupe no picadeiro da vida, mais do que propriamente um ser humano qualquer, como nós outros, nessa sociedade de consumo. Até porque sequer consumia mais que a conta – a conta bem contada –, pois que reconhecia a sua peculiar condição de mão-de-vaca, de sovina, de grande avarento no teatro da existência. Viajamos juntos vezes e vezes, em idas e vindas aos congressos: ele médico e eu médico, também. Gostava de me apresentar como seu assistente e aquilo me irritava, me fazia responder de forma azeda, tantas vezes: “Me apresente direito, homem de Deus!”. A correção vinha rápido: “Vai negar que é meu assistente?”. E ficava o dito pelo não dito! O ruim, mesmo, era que nos restaurantes costumava pedir abatimento e eu morria de vergonha até a morte. Pedir abatimento depois da leitura do cardápio? É demais! Ou não é?

Somítico, como era, costumava passar à distância de qualquer movimento de arrecadação de fundos, fosse o que fosse. Numa ocasião até, sendo o dia de meu aniversário, chegou junto e disse: “Que história é essa de fazer cota para um bolo? Vá comemorar o seu aniversário em casa! Isso aqui é um ambiente hospitalar!”. E eu, na perplexidade na hora, fiquei engasgado: “Bolo? Para mim?”. E o pior é que era mesmo e ele se negara a contribuir, como sempre. Foi ai, diante desse comportamento inusitado, que resolvi mandar-lhe uma carta anônima, contendo Cr$ 1,00 para ser doado como esmola, trazendo-lhe a boa nova de que enriqueceria, se cumprisse o pedido da missiva. Na hora da saída, como vinha comigo, comunicou-me o desejo de fazer uma caridade, ao que contestei: “Você? Não acredito!”. E ele explicou que precisava cumprir esse desiderato por mais algumas semanas. Foi lá fora e fez o gesto.
Era um conquistador inveterado ou gostaria muito de o ser, tal a goga ou as bravatas com que contava suas aventuras. Numa dessas até, em São Paulo, em dia de domingo, com muito frio no espinhaço, chamou uma penitente ao quarto de hotel. Fez lá o que bem desejava e ao final não esqueceu de pechinchar: “Minha senhora! Eu sou um professor universitário, pobre e mal pago, por isso gostaria de um abatimento!” Ao que respondeu: “Meu senhor! Sou estudante e pago a minha faculdade com esse dinheiro!”. Calou-se e cumpriu com o contrato que verbalmente fizera. Mas, a melhor dele foi outra. É que escreveu para uma revista masculina e deu o nome trocado: Ricardo Soares. Expôs os seus predicados – os que achava ter –, deixando o telefone do hospital para um contato qualquer. Me explicou dez vezes essa peraltice e falou de seu cognome, lembrando que se alguém ligasse procurando o misterioso senhor, o chamasse imediatamente.
Eu nunca atendia telefone, mas naquele dia o cão atentou com vara curta e eu peguei o fone, respondendo à chamada: “Alô!” E a interlocutora de ocasião: “O Sr. Ricardo Soares, por favor!”. Eu não podia me fazer de rogado e tripudiei o quanto pude com a ligação: “O Sr. Ricardo Soares? Ricardo Soares?, Ricardo Soares?...Vou ver se tem esse por aqui?”. E ele, na minha frente, aos sussurros: “Sou eu Pereira! Sou eu!”. Atendeu e acertou os detalhes com essa transitória suplicante. Era uma mulher casada de Salvador, convidava-lhe para um contacto a três: ele, a criatura e o marido. Valha-me Deus, disse, vai ver que o marido dela assiste a tudo e depois entra em cena, querendo passar o amante também. Quase fica doido com a minha assertiva e pensando melhor, desistiu.
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