sexta-feira, 30 de março de 2007

Um Solitário Galo-de-Campina

Aqui nestas distâncias praieiras, recanto dos meus devaneios e canto dos meus encantos, onde tenho podido partilhar muito dos meus amores e dividir o pouco das minhas dores, tudo está diferente. Quase não posso mais ensaiar as fantasias paridas de meu imaginário, farto e forte confesso, desde a mais tenra das minhas idades ou quase não posso mais entoar o cântico dos meus ardores, sinfonia d’alma ou melodia dos espíritos saciados com a beleza da vida e da existência terrena. Tiraram a paz do lugar e mexeram com o bucólico dos ares, promoveram assim a desadorada metamorfose do simplesmente urbano, trazendo a civilização para este misto de mar e campo. Os coqueiros de Pau Amarelo agora sucumbem à força do fogo que devasta e deixaram de dar adeus, com as palhas balouçando ao vento, às ondas do mar, curvam-se, na verdade, em estalidos mais do que sonoros, despedindo-se do oceano enorme. E até as areias cálidas, tão livres antes, permissivas até com os amantes em flor, atores importantes dos espetáculos dos inícios, encheram-se de gente daqui e dalhures, tomando jeito de praia grande e buliçosa.

As entradas de estrada batida, dos lados contrários ao do mar, que levavam às matas de cajus, cruzadas tantas vezes pelos pequeninos cursos d’água, verdadeiros maceiós, abriram-se e desfolharam-se. Há dezenas de novos conjuntos habitacionais para o atendimento da classe média, uns em ofertas e outros não, mas sedutores todos e assim, há aumentar a população flutuante de veranistas forasteiros. Desapareceram, todavia, tangidos pela febre da civilização, os sagüis das frondosas árvores e com eles o bailado vespertino do enlevo da natureza, de galho em galho saltitantes. Que pena! E aquele galo-de-campina, o último talvez daquelas paragens mistas - mar e campo -, mas místicas e míticas também: pra onde foi? Antes tivesse se achegado à minha janela, onde cantava, mesmo que à distância, as loas do alvorecer e pedido para abrir a porta do alçapão dos meus desejos! Pior o timbu, habituado a me fitar à noite, acomodado num arbusto de casa, tão fixamente que dava medo encarar! Sumiu, simplesmente, foi buscar guarida noutras bandas! Nem o calango, verde quando convinha, invasor da sala e terror das meninas, filhas minhas, sem os hábitos dessas interveniências silvestres, apareceu mais! Restam por lá umas rãs, com tudo muito espantadas, nada mais! Proliferaram, entretanto, os pernilongos, cantores macabros de todas as árias da funesta ópera das elefantíases!

Hoje o movimento dos carros na pista principal lembra, em tudo, aquele das metrópoles e das megalópoles. Anda-se voando, quase, sem o respeito necessário aos transeuntes, nativos do lugar muitos, os quais, de quando em vez, sucumbem atropelados. Não entendem bem, certamente, porque morrem assim num lugar agitado, dantes tão pacato, tão calmo! Mas morrem! Passear de automóvel, como antigamente, em marcha vagarosa, admirando o coqueiral e vendo os animais pastando, no pachorrento jeito dos cavalos e dos bois, fiando conversa com a patroa, resgatando afetos e afagos, nunca mais! Os outros ficam buzinando às costas, têm pressa sempre! É correr também feito um desadorado da vida, descortinando visões dantescas, como a de um avião que fizeram aterrissar por lá, virado agora em bar! Ninguém sabe as razões dessa empreitada, de um velho DC3, merecedor de um lugar condigno no museu dos ares, exposto dessa forma às inclemências do tempo. Ninguém sabe, sequer, como chegou por lá, se puxado a cavalo ou voando nas asas do passado! Em Maria Farinha, fim de linha dos meus passeios, ambiência de carícias postergadas durante o ano, é impossível ver o rio. Um muro enorme num aterro grande, às margens do Timbó, cobriu com os tijolos do nada o tudo das águas, doces e tranqüilas.

Havia uma marina no Timbó, há duas marinas agora e por certo outras marinas virão! Só não se pode ver uma Marina qualquer banhando-se na largueza das águas e trazendo a magia que encantou o poeta no rio das capivaras, num alumbramento, em tarde morna, na Várzea do Capibaribe.


(*) Crônica escrita na primeira metade dos anos noventa. Fase de ocupação intensa e talvez desordenada das praias do litoral norte.
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