Esse traçado urbano que percorro agora, sob os acordes mais que nostálgicos da orquestra de frevo, foram os meus caminhos também em tempos idos e vividos. Velhas igrejas erguidas na frouxidão do mangue, ruas antigas enfeitadas com trilhos. Tudo isso me traz de volta um passado assim revivido, durante o desfile do Nem Sempre Lili Toca Flauta. Um bloco que sai no Recife, mas chega a Tóquio, na palavra escrita em bom português por Harumi Royama, morta de saudades das alamedas estreitas de São José, sem saber ainda das mudanças no roteiro das lembranças. Onde estão as lojas de minha infância? Os lugares dos meus presentes de Natal? Cantos ou recantos das escolhas carnavalescas, do quepe de almirante ou do gorro de marinheiro! O meu pai fazia questão de sair no sábado de Zé Pereira, andar pela cidade e comprar o lança-perfume, a fantasia e os confetes.
A Casa do Atleta e a Casa do Esporte, a Capa Argentina e a 4.400! A Editora Nacional e depois a ponte, a Sloper e a Viana Leal! Não passei na Sertã, onde estava o consultório do meu tio, em cujas mãos zunia a broca que escavacava os meus dentes. E o sanduíche da Confiança? Pão de caixa prensado e o queijo se derretendo! Ou o sorvete do Gemba e o chá da Casa Matos? Tudo isso está gravado na minha memória! Tudo isso eu pude reviver ao som do frevo cantado e da manhosa musicalidade, revendo os meus dias da adolescência, que se foram nas brumas do tempo. Mais ainda com o passeio a Bezerros, onde os mascarados, papangus, fazem a festa o dia inteirinho, com o abraço caloroso e a saudação ruidosa. Não fosse a higiene do banheiro público, muitos teriam ficado na cidade até a noite chegar!
Na volta, uma parada em Gravatá para degustar um feijão verde bem cuidado e um bode guisado, contando com o acolhimento do Sr. Camilo Brito, português bom de prosa, leitor dos fatos antigos, das origens nacionais e das viagens de seus patrícios às terras do Brasil. Dado ao cultivo de belas orquídeas e no antes do tempo caçador sem histórias. Arraigado à melosidade do fado, que canta a tristeza, atiçando as saudades. Na casa ao lado, entretanto, o som deixava escapar vozes diferentes daquelas que Momo reconhece: “Quem eu quero não me quer/Quem me quer mandei embora/...” Chego mais perto e permito ao imaginário fantasiar o momento, considerando que o dono do bangalô era um cinqüentão saudosista que não gosta do tríduo! Prefere ouvir a melodia das saudades.
O melhor de tudo, porém, no Carnaval que se foi, como tantos outros, está no presente que recebi de vizinho meu, Guedes de sobrenome. Uma cópia de gravação antiga da Banda do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal. Ali está a sonoridade dos meus começos! Versos puros de meus princípios, de vivências que experimentei quando era imberbe quase! Ficava horas ouvindo As Pastorinhas ou A Dama das Camélias, o Rasguei a Minha Fantasia ou o Hino do Carnaval Brasileiro. Naqueles distantes antanhos poucos tinham radiola em casa e poucos podiam deliciar-se com essas músicas. Mas, a vizinha do lado, que só me procurava quando precisava remendar o pneu da bicicleta Monark, tinha um equipamento assim e gostava de rodar essas belezas todas. Como ouvir a ninguém incomoda, eu também escutava!
E a quarta-feira chegou, amanheceu com o mundo parado e as cinzas nas Avenidas e nas ruas, menos nas alamedas dos meus sonhos e de meus devaneios, nos quais reina a majestade das recordações, acomodada no trono doirado das lembranças.
(*) Crônica antiga, escrita quando o bloco Nem Sempre Lili Toca Flauta fez um roteiro diferente, ainda mais diverso do último trajeto. Tudo muda, afinal! Crônica redigida depois de um curto convívio com o Sr. Camilo Brito, português de origem, com quem gostava de fiar conversa, ouvindo-lhe as peripécias de homem migrante. A ele ofereço a prosa de agora, para que no infinito das coisas possa lembrar desses efêmeros momentos.
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