segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Gente Simples

É interessante notar as peculiaridades da gente simples, da gente que vem ao Recife somente por um dia ou dos migrantes engajados nesse mundo cão de cimento e ódio. Presto atenção a tudo isso, desde menino, quando ouvia a conversa da criadagem - um nome de época - ou assistia aos costumes e hábitos desse povo sofrido que mora em nossa casa e não tem onde cair morto. Depois, na escola da vida, que para mim foi, também, a escola da doença e dos doentes, pude ir tomando contacto mais íntimo com o especialíssimo do matuto e do citadino migrante. Já se vão quarenta anos de médico e mais seis de faculdade - É coisa muita guardada!. A televisão vem deturpando tudo, tirando o regionalismo das expressões e roubando as tradições arraigadas há séculos na cabeça do nordestino. Fala-se em Pernambuco, na Mata ou no Sertão, do mesmo jeito que o paulista se expressa na Augusta. Fizeram desse Brasil grandalhão uma aldeia global. Norte, Sul, Leste e Oeste representam apenas os pontos cardeais aprendidos no grupo escolar, sem grandes diferenças mais. A novela varre o País inteiro, transmite a ilusão do capitalismo e acaba com o sotaque da voz.
Uma vez atendi uma doente, estudante ainda, queixando-se de mal feminino. Doutor, disse pra mim, pensando já ter anel: "Sofro, faz muito tempo, da mãe do mundo!" Ora, leitor amigo, o útero é, em realidade, a mãe do mundo? A "mãe do mundo" dizem algumas, mas a "mãe do corpo", explicam outras. Em ocasião diferente, uma senhora padecendo de mal venereo, adquirido de seu marido, envergonhada com tanta desdita, cabeça baixa e mão cobrindo os olhos, disse: "Estou doente das partes mais vergonhosas!". Que vergonha há mais lá por baixo, meus senhores e respeitabilíssimas senhoras, se na praia o "fio dental" expões pra toda gente as inferiores maçarocas do quadril feminino? Acabou-se isso por aqui! É pena, penso eu, melhor em tempos atrás, quando a imaginação do menino, do rapaz e até do adulto viajava calculando a beleza escondida em peça inteira de banhar-se!
Um certo rapazola da cidade, chegando para a consulta e portador de moléstia do mundo, disse: "Napoleão está doente!". Ora mais que coisa, estão nomeando agitadores de esquerda usando nomes de generais? Outro, mais interiorano, foi modesto: "O peru está doente!". E assim tratei muita gente; gente doente das partes mais vergonhosas e gente sofrendo em seu Napoleão quando burguesa ou de seu peru se do proletariado. Todos usando o instrumento de forma inadequada, sem a camisinha das recomendações do governo e sem a seleção devida de parceiros e parceiras. Agora a coisa mudou, os jovens "ficam" e se vão às vias de fato, com toda certeza é quase sempre com figurantes do mesmo nível. Dificilmente procuram prostitutas estabelecidas, como aquelas da rua da Guia ou da Rangel. Certa vez, nessa última, uma mulher na janela levantou a blusa, expondo os seios. O menino cá em baixo, menor de idade ainda, ficou com as pernas tremendo.
Sapato emborcado, nunca jamais, em tempo algum, dava azar, atraso pra família ou morte no mesmo ano. Roupa pelo avesso, nem pensar, era dose dupla! Ainda hoje essas coisas ficaram, parece que automatizadas, em mim! Mesmo sem acreditar não as faço, por hábito! Será mesmo?
Nas festas de São João ou de São Pedro, a faca na bananeira ou os papéis cortadinhos na bacia, com as letras todas do alfabeto, dariam, com certeza, a inicial do nome daquele que haveria de ser a esposa ou o marido. Fiz isso centenas de vezes, repetindo a operação em várias ocasiões na mesma festa. Na faca nunca pintou coisa alguma e na bacia saíram iniciais de "A" até o "Z". Fiquei com a última, porque os últimos serão os primeiros e estou por aqui satisfeito.Essa gente da cidade pega as coisas do interior e faz tudo trocado! Não entende bem o espírito, mete as mãos pelos pés e deseja imitar a pureza lá do campo. Na casa de meu sogro a fogueira se acendia no badalar das seis horas e tinha que ser, sempre, a mesma pessoa a tocar fogo, transformando em braseiro a madeira lá do mangue. Ora, não é que o cunhado se armava de jornal e álcool, contanto que acendesse o fogaréu.

 (*) Um texto que mostra alguma coisa de minha experiência com a gente simples em meus convívios; gente que desapareceu na esteira da globalização. Queira o leitor comentar e o faça no espaço mesmo do Blog ou para os e-mails pereira.gj@gmail.com e pereira@elogica.com.br  

2 comentários:

  1. Geraldo,gostei muito desse seu texto sobre o falar errado do povo,o falar certo do nosso povo,segundo Manuel Bandeira...aproveito para lembrar que vem aí ,mais uma vez UM SABADO EM 30,abraço Renato Phaelante.

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  2. Geraldo,

    É a vida na evolução dos tempos!!!! Muito boa, sua crônica!
    EP

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