A sonoridade
do interfone é típica e indica sempre que o porteiro do prédio – este
profissional novo na roda das coisas – deseja falar com alguém da casa. Ouvi a
campainha do equipamento, em tudo contemporâneo, e quando a moça que trabalha
por cá disse: “O Sr. Moisés? Um momento!” E me indagou se podia mandar subir a
pessoa. De imediato raciocinei que se tratava do meu fraterno amigo de infância
Moisés Diniz, irmão de Mozar – Mozar sem o “t” do compositor clássico –, figura
das mil estripulias. Inventor do motel móvel, pois que a sua Kombi se
transformava, a cada noite, em lugar reservado aos amores emergentes de seus
amigos, em tempos de vacas magras. Pois que suba o homem! Mas, chegou
acompanhado de um funcionário do edifício, Alonso de prenome, e eu, admirado com
aquela medida de segurança, indaguei depois a razão: “Achei que era um
profeta. E não ia deixar o senhor sozinho com aquele homem da barbona!”. À
porta de casa o recebi, com toda pompa e circunstância. Fazia um bom tempo que
não nos víamos e o abraço foi diretamente proporcional à distância em meses ou
em anos.
Sentou-se à
varanda e começamos a lembrar os bons tempos. As nossas idas e vindas à Festa
da Mocidade, o pastoril do Velho Faceta e as pernas das pastoras, sobretudo as
coxas roliças da mestra e o busto protundente da contra-mestra ou o jogo de
azar, onde se perdia o dinheiro curto da mesada. A pelada na rua Padre
Miguelinho, sem que soubéssemos – sequer suspeitássemos –, quem era o
sacerdote, além de ser o verdadeiro patrono do bate-bola dos sábados. A briga
de Moacir com Nino, numa manhã de carnaval e tantas coisas mais. De repente,
levanta-se o meu interlocutor de ocasião e procura nos bolsos um objeto que
ignorava o que fosse. Tira um relógio da marca Mondaine, a corda, antigo e
modesto, verbalizando o seguinte: “Este relógio você me pediu que consertasse!
Eu consertei, realmente! Mas, como já faz 40 anos, nem sei se lembra dele!”.
Claro que lembrava, ganhei de meu pai no aniversário dos 10 anos de idade. Mas,
não descuidei e disse: “Mas, Moisés, 40 anos para consertar um relógio?” E ele:
“Pois é! E está funcionando a contento!”.
Não precisa dizer que o velho mostrador do tempo parou e agora para todo
o sempre. E não precisa dizer que desaconselhei a minha mulher a pedir ao
profeta para consertar, também, o seu relógio: “Você chega aos 100 e o relógio
não volta!”.
O homem tem
história que o diabo duvida de costas, numa sexta-feira santa à noite, no
portão do cemitério. Lembra de toda gente, do nome e do sobrenome, do jeito de
ser e de andar, das fofocas e dos defeitos, das qualidades também. Lembra
de Zé Ventinha, um camarada com uma úlcera crônica no nariz, que falava fanho –
coitado! – e era ruim da cabeça. A meninada afoita passava junto do pobre homem
e puxava o paletó. Era se preparar para a carreira. Uma das vezes eu corri
tanto que terminei rodando o quarteirão inteiro. E Sabará? O bêbado da rua –
toda rua tem um bêbado – que cantava repetindo o gesto do poeta: “Tornei-me um
ébrio/E na bebida/...” Eu saia de casa para as aulas carregando o livro de
Anatomia, um volume enorme e ele: “Quando eu era estudante, ia na frente e uma
carroça de cavalo atrás carregando os meus livros! Esse ai leva um livro só!”.
Lembrou que sonhara, recentemente, com uma crônica a ser escrita por mim, na qual
afirmava que a segurança nos anos de menino era tanta, mas tanta, que o guarda
noturno que tínhamos era um anão. E era mesmo! Andava com um cassetete do cão,
pra cima e pra baixo, apitando e vigiando.
Falou da
luta de boxe que promoveu, certa vez, reunindo um rival que eu tinha na rua,
interessado numa namorada minha e eu próprio, inteiramente virgem de qualquer
experiência em ringues e outros lugares assemelhados. O adversário era um
gaúcho renitente, morador novato da rua, mas logo, logo, encantado com a menina
que gostava de ouvir, se balançando, os
melhores momentos de Núbia Lafayete ou a sonoridade de Dalva de Oliveira. Resultado, ganhou a disputa e levou a moça. Mas, não casou e dela não sei o destino. Pra onde foi e o que fez da vida!
(*) - Desejando o leitor comentar, use o espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira.gj@gmail.com
Meu caro Acadêmico Geraldo, acho que o passado, para nós mais que sessentões, em muito se assemelha.
ResponderExcluir"Marca Águia",era o apelido de um sujeito aqui de Olinda, que fazia bem duas coisas: pequenos furtos nas residências, e tomar cachaça com o "resultado do seu trabalho". Convivia, pacificamente, no meio da gente, na Praça do Carmo.
Zé Doidinho,como explica o apelido, era ruim do juízo, mas carregava as partituras da Banda do Liceu - cujo maestro chamava-se "Meu Joia" -, que se apresentava no coreto da Praça do Carmo,aos domingos. Ele cantava com orgulho: "eu sou da banda do Liceu, 'todas minina gosta d'eu'..."
A figura do "Guarda Noturno" era, também, ponto importante. Nunca soube a razão, mas quando se queria xingar alguém, dizia-se: "filho de guarda noturno, com mulher de cego!".
O velho faceta, conheci, dizia-se que o nome dele, era uma "rima rica"...
Finalmente, nosso motel não era móvel, era fixo, situava-se no quintal da cada de Raul, onde tínhamos, pela frente, uma "pinica" e, por trás, a brisa gostosa do mar. Silvio Costa, o da UFPE.
GERALDO,
ResponderExcluirLi o seu texto em plena madrugada, quando estava ainda acordada. Lembrei de Moisés , com quem me encontrei na Missa de mamãe. Demos um abraço apertado.Quisera , também, lembrar com ele de tempos passados, que diferem das suas lembranças. É uma figura...
O texto muito bom e espirituoso, tira do sério os seus leitores. Você lembra o passado e dá o seu toque pessoal.
Parabéns, Eliana