quinta-feira, 28 de junho de 2007

Fogueira e Quadrilha

No Recife do antes, quando o mês de maio, que era o mês das noivas, das novenas e das trezenas, chegava ao fim, todos se preparavam para as festas de junho, para o Santo Antônio, o São João e o São Pedro. Era um alvoroço, as quadrilhas sendo arranjadas aos pares numa folha de papel chulo. Os ensaios começando em tardes de sábados e o medo da chuva na véspera do dia do santo estimulando as súplicas aos céus, que segurassem as águas lá por cima mesmo, nas nuvens, contanto que o baião de sonoridade melosa pudesse animar a todos. Muitos casamentos nasceram assim, nesses encontros vespertinos, nos rodopios improvisados e no balancé nem sempre ritmado. No derradeiro momento, tudo pronto para a apresentação, corria a cota para pagar o sanfoneiro e o custo da carroça puxada a cavalo, que traria o noivo e a noiva, o padre e o delegado.

Ai, quando o Dia dos Namorados aflorava no calendário de casa, véspera do padroeiro das solteironas, não era de se estranhar o movimento na matriz com o nome do santo, no centro da cidade, onde pontificava a figura de um cura singular, fiel seguidor da retórica de Vieira: o Monsenhor Nogueira. Moças e mais moças em verdadeiras romarias, a acenderem velas e a rogarem por um marido, qualquer que fosse, contanto que se pudesse assegurar o matrimonio, o vestido branco arrastando no chão, o véu e a capela. E os milagres aconteciam, menina feia e mal cuidada, atrasada nos estudos, sem cabeça pra fiar conversa, ao primeiro flerte caia na rede de um incauto qualquer. E a celebração se dava de logo, antes que o noivo absorto descobrisse a interveniência das forças eternas nos desígnios da existência terrena.

Melhor ainda uma outra véspera, a do São João, com os costumes e as crenças do Velho Mundo neste tupiniquim mundo novo. Às seis da noite, com chuva ou sem chuva, acendia-se a fogueira no terreiro de casa ou na rua e se assim não fosse, um dos integrantes da família terminaria por se render à bruxa desgraçada da morte. Quando o fogo fazia estalar ou estralar a lenha, às vezes ainda verde, com um espelho cada um se aproximava, buscava encontrar a própria imagem, para garantir também a sobrevivência, por mais um ano que fosse. Na mesa, forrada com a toalha branca de muito bom linho, o pé-de-moleque coberto por apetitosas castanhas, a canjica de milho verde raspado em velho ralo comprado na feira e a pamonha amarelinha, sem as novidades de hoje, sem o queijo de coalho e outros acréscimos. E o café preto, bem preto, fervendo no bule de alumínio.

Começava, então, o foguetório, bombas e bichas, vulcões se espraiando nos ares num jato enorme de fogo, que parecia soprado pelas boca de todos os anjos, busca-pés correndo atrás da rapaziada e as cobrinhas para assustar as meninas. Era a hora do cortejo, dos pares se organizarem em fila mais que indiana e do zabumba marcar a cadência e lá vinha pelas ruas do Recife, quadrilhas e mais quadrilhas, umas da Boa Vista e outras de Santo Amaro das Salinas, algumas do Pombal e muitas de Casa Amarela, Casa Forte e Imbiribeira. Um misto sociológico de todas as classes, da menor para a maior. E a sanfona de oito baixos, que fez Gonzaga encantar todo mundo, chorando a melodia que nos rincões mais distantes canta o telúrico, faz da seca o pranto do homem e mostra que do alto vem sempre a redenção, rasgava os ares com a sonoridade matuta.

Era um mês de muita festa, de se assistir aos ensaios e de se ver as danças em cada esquina ou em cada uma das ruas e das vielas, nas casas dos remediados e nas moradias mais simples. Até nas mansões do Espinheiro o espírito junino tomava conta de todos e tome forró a noite toda. Ninguém dispensava as adivinhações, a busca do futuro na bacia d’água com os papelotes flutuando, uma inicial em cada um, de “A” a “Z”. E a juventude consultava o santo desse jeito ou enfiando na bananeira do quintal uma faca virgem, a qual, no dia seguinte, quando retirada do caule fibroso, traria, com toda certeza, o nome, pelo menos o prenome, da eleita ou do eleito.

Juras de amor cochichadas aos ouvidos criaram esperanças que não vieram ou terminaram na decepção dos enganos. De mãos dadas muitos se foram e cursaram os caminhos da vida, abriram picadas nas florestas das dificuldades e hoje se acomodam no sofá da sala, ouvindo o poeta dos sertões: "... assum preto/cego dos olhos/não vê a luz/canta de dor/..."

Bom São Pedro a cada um dos leitores do Blog
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sexta-feira, 22 de junho de 2007

Asa Branca

Nos ares do Recife, em tempos assim, de ansiosa espera pelo São João, correm soltos os acordes de Gonzaga, entoando a poesia de Zé Dantas, de Humberto Teixeira ou de João Silva, lições que o tempo não há de destruir. Das convivências humanas e dos convívios com a natureza, sobretudo com os sertões e os agrestes secos, esturricados, onde “...a lama virou pedra/E o mandacaru secou/Quando a ribaçã de sede/Bateu asas e voou.../” . Mas, de tudo o que cantou, nos versos dos amores e dos desamores, impressiona a volta pra casa, o encontro com Januário, com quem aprendeu os segredos dos oito baixos. “Quando eu voltei lá no sertão/Eu quis mangar de Januário/..../Mas antes de fazer bonito de passagem por Granito/Foram logo me dizendo/De Itaboca a Rancharia, de Salgueiro a Bodocó/Januário é o maior/.../Luiz respeita Januário/...”
É isso, o pai nem sempre é reconhecido pelo filho, senão quando a voz das ruas chama a atenção para um saber assim, transferido nas horas de casa, alertando, então, a criatura que se julga nos patamares dos êxitos e das glórias, tantas vezes inglórias. Mas, Luiz teve a grandeza de contar e de cantar aos quatro ventos a sua sina, a de ter desprezado os dotes de Januário e a de reconhecer, em seguida, a grandeza do pai, antecipador de si próprio, em tardes ensolaradas, enquanto consertava sanfonas alheias ou em noites de lua cheia, arrancando do fole a melosa sonoridade do baião. Toda gente teve ou tem um Januário, uma pessoa que transmitiu a experiência do existir terreno, marcou os dias de infância e aqueles da adolescência, traçando caminhos e apontando estradas, ajudando a superar percalços, que são pedras nas alamedas do cotidiano.

E Gonzagão, voltado que foi para as paixões femininas, chorou as perdas e exaltou a mulher, a de seus desejos e de suas vontades, nem sempre satisfeitos. Eis o pranto de quem não conseguiu firmar parecerias: “Nem se despediu de mim/Nem se despediu de mim/Já chegou contando as horas/Bebeu água e foi-se embora/Nem se despediu de mim/...” E no poema do Assum Preto, cego dos olhos pra cantar melhor, faz a metáfora das rupturas: “Assum Preto, o meu cantar/É tão triste como o teu/Também roubaram o meu amor/Que era a luz dos olhos meus...” Mas, o romantismo do homem aflora nos versos de Zé Fernandes: “.../Foi numa noite igual a esta/Que tu me deste o teu coração/O céu estava, assim em festa/Pois era noite de São João/Havia balões no ar/Xóte, baião no salão/E no terreiro/O teu olhar, que incendiou/Meu coração/...”

Na flexão da rima de Zé Dantas está a beleza dos sertões recuperados, quando volta a asa branca, sob a força luminosa dos relâmpagos e a sonoridade retumbante dos trovões. O sertanejo, então, um desertor das secas, chega e vem cuidar da plantação. Para o poeta foi Deus quem se alembrou de mandar a chuva. E na improvisação da hora, insiste que o povo segue alegre, mais alegre que a natureza. Que beleza! Na criação das rimas, forjando o poema que virou cantoria, o autor foi buscar na memória a imagem de Rosinha: “...A linda flor do meu/Sertão pernambucano/...” E convoca o vigário, pois que se não forem atrapalhados os planos e a boa safra chegar, com certeza, vai casar. E depois, já com Helena das Neves tomada por esposa, deu o nome de Rosinha a uma de suas filhas. Se foi de boa lembrança não se sabe e não se viu!

E o homem se foi, encantou-se na dimensão do eterno, mas continua no dia-a-dia da gente do Nordeste, no embolador das feiras, que resiste nos rincões matutos, nas caatingas sofridas e nos desertos desolados. Na palavra de esperança do sertanejo de muita fé, que deposita no banco dos céus as economias de seu espírito, prometendo sacrifícios d’alma, esforços paridos do imaginário, se as nuvens que enchem o firmamento se abrirem, deixando correr as lágrimas de chuva que molham os campos, fazem crescer do gado o capim. Que permitem o milho botar boneca e o feijão ramar, de cada lado uma vagem.

Deus queira que o São João faça chegar a Asa Branca!
(Bom São João a todos)
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sexta-feira, 15 de junho de 2007

Pelejando Meu Filho

Diz o nosso caríssimo escritor e contador de histórias Ariano Suassuna que uma cidade do interior tem sempre as suas figuras típicas, como o doidinho e o bêbado. Permito-me acrescentar que nos bairros e nas ruas da metrópole da mesma forma, há atores como esses, das cenas de um cotidiano improvisado, sem roteiros e até sem diálogos. Monólogos apenas de um dia-a-dia insosso e destemperado, mesmo que preenchido também por sobressaltos e imprevistos. Rotineiras repetições das emoções e das surpresas. Pois Borboleta era assim, não que fosse doidinho, antes tinha o vício etílico, pelo que estava impedido de trabalhar em sua função original: varredor de ruas. A Prefeitura mandava que gente assim catasse o mato em torno das árvores. E Borboleta, de machadinha à mão, cumpria o seu mister, bem ou mal recebia ao final do mês a sua féria. Quem o tratasse pelo nome do lepidóptero, ouvia poucas e boas. E a turma não deixava por menos, chamava a toda hora: Borboleta! Borboleta!

Outro personagem típico do lugar – o Pombal, como chamava Paulo Malta -, limites da Boa Vista com Santo Amaro das Salinas, era Sabará, cujo apelido ignoro as origens. Aparecia com freqüência variável, era bissexto na rua, mas não esquecia de entoar: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco esquecer/Aquela ingrata...” Parecia que cantava a própria sorte. Tinha uma voz boa, gutural e imitava bem Vicente Celestino. Era engraçado, também! Certa vez, me vendo sair para a faculdade carregado de livros, disse: “Quando eu estudava, atrás de mim ia uma carroça de cavalo cheia de livros. Esse ai leva três! Ta ruim!”. E ninguém sabe do nosso Sabará, por onde anda, se anda ou se já se entregou à bruxa do nada? O que fez e o que faz, se faz?

Lá pras bandas do Politeama, um cinema de pouca freqüência, nas proximidades do Pátio de Santa Cruz – o polipulga da galera – havia uma maluquinha. Andava nas carreiras, quase, parecia uma carrapeta e tinha a idéia fixa de se arranjar com um dos rapazes do bairro. Eu já não agüentava mais o assédio, até que me ensinaram a fórmula mágica e portanto a solução. Bastava dizer que tinha segundas intenções e que pularia a janela do quarto dela à noite. Ora, foi um santo remédio, daí por diante nem uma palavra mais comigo. Confesso que tive até pena da criatura e da sua decepção. Tempos depois a vi na igreja da Boa Vista, a mesma carrapeta, pra cima e pra baixo no templo.

Figurante importante na rua, pelo simbolismo da representação, era Dona Mimi, mulher de idade, magérrima e sempre vestida de preto, como as viúvas de Portugal, nunca soube se com as sete saias da tradição. Acho que não! Gostava de cumprimenta-la: “Bom-dia Dona Mimi! Como vai a Senhora?” E a resposta sempre era: “Pelejando, meu filho! Pelejando!” Era a rezadeira do lugar, com um galho de planta retirado na hora no jardim fazia seus milagres. O galho murcharia, dizia de logo, sem refletir que longe das origens o destino não poderia ser diferente. Dona Mimi rezou-me um dente e de nada serviu, mas a minha avó paterna fez fé nas orações da senhora velha, muito velha. Morava com uma filha, Maria, que deve casar nesses dias, como acentuava. Mas solteira ficou de tanto esperar por esses dias.

Em todo canto ou em todo recanto deste Recife de Deus havia uma moça desejada por muitos e amada por poucos. Na minha rua também uma menina bem afeiçoada embalava o tempo na cadeira de balanço, ouvindo as mais lindas canções de amor: : "A estrela Dalva/No céu desponta / E a Lua anda tonta / Com tamanho esplendor...". E todos dela gostavam! Mas, caiu pra mim a missão de namorar a musa daquele lugar e daqueles anos. Se sete vezes eu namorei e se sete vezes ela rompeu, o bonde das épocas a levou para o Rio de todos os janeiros. E por lá ficou!
(*) Homenagem do Autor ao Mestre Ariano Suassuna, na passagem de seus 80 anos.

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sexta-feira, 8 de junho de 2007

Os Meus Enganos

Há coisas que acontecem comigo que o diabo duvida de costas, em noite de sexta-feira treze! São ligações telefônicas erradas, recebidas ou discadas ou são anotações de agenda trocadas na minha cabeça. Foi assim que compareci ao casamento de amiga minha, marcado para um dezenove qualquer do ano, sete dias antes e nada ou quase nada encontrei na igreja. Indaguei do flanelinha em bom português se havia por ali um enlace matrimonial e o menino, ávido pelo trocado que não chegou a receber, de pronto confirmou. Não perguntei pelo nome da noiva, porque quem toma conta de carro ignora esses detalhes, faz o seu papel no teatro da vida e nada mais. Entrei e havia pouca gente no templo, pessoas concentradas no meio dos bancos, em torno de um bebê. Era um batizado, na verdade e eu dei com os burros n’água!

Pior com o velório! É que morreu um homônimo de uma pessoa que conheço há muitos anos, da qual me afastei pelas circunstâncias do existir e não tive dúvidas, vesti o paletó, apertei a gravata e parti em direção ao cemitério considerado também um parque e que de parque nada tem. Identifiquei o lugar no qual se fazia o ritual da finitude e cumprimentei a todos. Não havia um conhecido que fosse! Notei uma certa estranheza, como se estivesse completamente fora do contexto e estava. Olhei para o homem largado à própria sorte e observei que usara bigode em vida, característica ausente no meu ilustre amigo. Do celular, mesmo, contei à minha dedicada secretária o impasse. Ouvi a recomendação necessária: “Volte! Ele nunca usou bigode!” Para a família, restou a perplexidade. Afinal, eu nunca tinha visto o pobre do defunto!

Mas, durante uma reunião em Olinda, no convento do Carmo, tocou o telefone. Nunca atendo esse equipamento quando me ocupo. A oportunidade, porém, de ir à janela e dali apreciar o mar, para mim foi uma tentação irresistível. O interlocutor, então, se apresentou: “É Valter!” Há quem pense no prenome como uma identificação definitiva, como se fosse o único no mundo com aquela nomeação. Fiz um esforço de memória, associando a voz com o nome, mas foi debalde. E ele: “Você não está me reconhecendo?” Respondi com todo cuidado: “Estou começando a reconhecer! Aos poucos saberei de quem se trata!” Ai, complementou: “Sobrinho do finado Wilson!” Piorou tudo, inibiu todas as minhas associações! Desesperado, entretanto, explicou: “É Coruja!” “Bom! Coruja eu conheço!” E o diálogo prosseguiu! Tinha morado em minha rua nos tempos de menino e virou pastor, como tantos por ai!

De outra feita, pedi à telefonista que ligasse para amigo meu que dirige instituição importante e que havia me pedido fosse resolvida uma questão de seu interesse, para continuar o trabalho que vinha fazendo. Dei como indicação o prenome e mais o cargo que exerce. A moça, muito solícita aliás, fez a conexão e passou a ligação. Como tinha resolvido tudo, disse, de logo: “Fique tranqüilo! Vamos continuar juntos nessa luta pelo social! Pela gente simples e pela educação!” Ouvi de meu interlocutor de ocasião uma exclamação que estranhei, francamente: “Por que você fez isso? Eu não lhe pedi! Eu não preciso disso! Vivo aqui de meu negócio e não me meto com nada que esteja na esfera do social!” Perdão, quase peço, pois que era da iniciativa privada e não tinha a menor relação com aquilo que lhe transmitia por telefone!

Uma vez, numa sexta-feira de Carnaval – já vai longe –, recebi telefonema de uma certa criatura que procurava pelo namorado, indagando: “André está?” Ora, não existe André por aqui e ninguém com namorada, mas não perdi a oportunidade: “Está no bar da esquina, completamente embriagado!” E ela: “Eu não acredito nisso não! Ele prometeu que iria comigo ao Galo!” E eu: “Você é a quinta pessoa que liga! Ele prometeu a mais quatro!” Não hesitou em responder: “Vou matá-lo!” Não o matou, certamente!
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sexta-feira, 1 de junho de 2007

A Casa das Caiporas

A Comadre Fulozinha é a alma de um índio que vaga pelas matas, explicou Zezinho, lá de Chã de Cruz, depois de Aldeia. Recostado numa coluna do alpendre de minha casa, o homem dissertou, longamente, sobre essa lenda das florestas. Nunca chegou a ver a figura, mas tem histórias do arco da velha pra contar, desde aquelas de seu avô, que sendo bom caçador, nunca esqueceu de agradar o fantasma com mingau misturado a fumo pisado, sem sal e sem pimenta, porque desses ingredientes não gosta e até se irrita com quem se engana e tempera o alimento. Foi o avô, ainda, quem certa vez se perdeu num bosque, passando a noite ao relento e só encontrando o caminho de volta de manhã cedo, ao despertar de um sono inquieto, sem sonhos e sem devaneios. Mas, a trilha com que se habituara estava em sua frente, escondida pela menina de face meiga.

Nunca viu, mas ouviu dezenas de vezes o seu assobio forte, como aconteceu com o seu irmão numa tarde qualquer, depois do almoço, quando já estava pitando um cigarro no terreiro. Escutou um silvo, de tal maneira próximo aos ouvidos, que perdeu a audição no momento e com medo saiu às carreiras. Pior com uma senhora a quem conhecera, de longos cabelos pretos, que se alevantou com umas tranças tão bem feitas que ninguém conseguiu desfazer e ao marido coube cortar o piloso manto com uma faca de cozinha. O Zezinho perdeu as contas da quantidade de cavalos que encontrou com a crina entrançada, que só a tesoura resolvia o emaranhado. Trabalhava numa baia e por isso tinha essa oportunidade, a de detectar manifestações da fantasmagórica figura. Vez ou outra, porém, a Comadre o chamava no terraço e ele a procurava, sem que encontrasse: “Zezinho! Zezinho!”

A menina baixinha, de cabelos chegando à cintura, protege alguns bichos dentro da mata e àqueles aos quais dedica o seu afeto o caçador não pega, por mais que queira e deseje. Pode passar dias e mais dias pastorando o animal e jeito de abater não existe, senão pra contar com a raiva da Comadre Fulozinha. Melhor conviver em paz com a lendária mocinha e não incomodá-la com matreirices humanas. Ela sabe de todos o nome, conhece os hábitos e os costumes, fazendo brincadeiras quando quer e entende. Numa ocasião, um parceiro do contador de histórias – Zezinho por apelido e Zé Pedro de nome próprio -, tomava um deforete em frente de casa, encostado num tronco de árvore e se virando não viu mais a moradia. Era evangélico e por isso não se apavorou, invocou os céus e novamente se virou, notando que na verdade estava recostado numa coluna do alpendre.

O homem acredita, piamente, na Comadre, por tudo que já testemunhou e pelas conversas que teve a propósito, com gente que foi vítima ou que assistiu a outras pessoas assim vitimadas. De mais a mais, lá por Aldeia, vez ou outra, ouve o assobio entre as árvores e não se assusta mais, tem a certeza de que pode conviver assim, respeitando a moça. Uma coisa considera como certa, a de que um silvo forte significa que Fulozinha está à distância e quanto mais baixo for, mais perto estará. Dizem que tem raiva dos cabelos compridos e das crinas bem cuidadas, daí a trança que faz, para obrigar o corte e impedir a semelhança consigo mesma. Cavalos presos em cercados fechados podem amanhecer soltos, liberados no pasto, sem que se saiba quem os libertou. É capaz de se enfurecer e dar uma surra no penitente até o desmaio e nisso não se meta um afoito qualquer.

Essas lendas do Nordeste, estudadas pelo nosso folclorista Maior – Mário Souto Maior -, são deliciosas, realmente. Disso falava, também, Ascenso Ferreira: "Ali mora o pai da mata/Ali é a casa das caiporas...." Se o Caipora conhece a Comadre ninguém sabe, ninguém viu! A verdade é que protege a flora e a fauna, é rei de todos os animais e costuma punir o lenhador que agride a natureza sem necessidade ou caçador que mata por prazer. Tem os pés virados pra trás e com isso engana a todos, deixando os rastros trocados. Assobia e fecha as florestas! Dá azar aos incautos que esquecem de lhe presentear com prendas especiais: esteiras, cobertores e redes. Quem sabe, são parceiros da mata?

E foi uma lição a mais! É vivendo e aprendendo, diz o povo na sabedoria que tem!
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