Diz o nosso caríssimo escritor e contador de histórias Ariano Suassuna que uma cidade do interior tem sempre as suas figuras típicas, como o doidinho e o bêbado. Permito-me acrescentar que nos bairros e nas ruas da metrópole da mesma forma, há atores como esses, das cenas de um cotidiano improvisado, sem roteiros e até sem diálogos. Monólogos apenas de um dia-a-dia insosso e destemperado, mesmo que preenchido também por sobressaltos e imprevistos. Rotineiras repetições das emoções e das surpresas. Pois Borboleta era assim, não que fosse doidinho, antes tinha o vício etílico, pelo que estava impedido de trabalhar em sua função original: varredor de ruas. A Prefeitura mandava que gente assim catasse o mato em torno das árvores. E Borboleta, de machadinha à mão, cumpria o seu mister, bem ou mal recebia ao final do mês a sua féria. Quem o tratasse pelo nome do lepidóptero, ouvia poucas e boas. E a turma não deixava por menos, chamava a toda hora: Borboleta! Borboleta!
Outro personagem típico do lugar – o Pombal, como chamava Paulo Malta -, limites da Boa Vista com Santo Amaro das Salinas, era Sabará, cujo apelido ignoro as origens. Aparecia com freqüência variável, era bissexto na rua, mas não esquecia de entoar: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco esquecer/Aquela ingrata...” Parecia que cantava a própria sorte. Tinha uma voz boa, gutural e imitava bem Vicente Celestino. Era engraçado, também! Certa vez, me vendo sair para a faculdade carregado de livros, disse: “Quando eu estudava, atrás de mim ia uma carroça de cavalo cheia de livros. Esse ai leva três! Ta ruim!”. E ninguém sabe do nosso Sabará, por onde anda, se anda ou se já se entregou à bruxa do nada? O que fez e o que faz, se faz?
Lá pras bandas do Politeama, um cinema de pouca freqüência, nas proximidades do Pátio de Santa Cruz – o polipulga da galera – havia uma maluquinha. Andava nas carreiras, quase, parecia uma carrapeta e tinha a idéia fixa de se arranjar com um dos rapazes do bairro. Eu já não agüentava mais o assédio, até que me ensinaram a fórmula mágica e portanto a solução. Bastava dizer que tinha segundas intenções e que pularia a janela do quarto dela à noite. Ora, foi um santo remédio, daí por diante nem uma palavra mais comigo. Confesso que tive até pena da criatura e da sua decepção. Tempos depois a vi na igreja da Boa Vista, a mesma carrapeta, pra cima e pra baixo no templo.
Figurante importante na rua, pelo simbolismo da representação, era Dona Mimi, mulher de idade, magérrima e sempre vestida de preto, como as viúvas de Portugal, nunca soube se com as sete saias da tradição. Acho que não! Gostava de cumprimenta-la: “Bom-dia Dona Mimi! Como vai a Senhora?” E a resposta sempre era: “Pelejando, meu filho! Pelejando!” Era a rezadeira do lugar, com um galho de planta retirado na hora no jardim fazia seus milagres. O galho murcharia, dizia de logo, sem refletir que longe das origens o destino não poderia ser diferente. Dona Mimi rezou-me um dente e de nada serviu, mas a minha avó paterna fez fé nas orações da senhora velha, muito velha. Morava com uma filha, Maria, que deve casar nesses dias, como acentuava. Mas solteira ficou de tanto esperar por esses dias.
Em todo canto ou em todo recanto deste Recife de Deus havia uma moça desejada por muitos e amada por poucos. Na minha rua também uma menina bem afeiçoada embalava o tempo na cadeira de balanço, ouvindo as mais lindas canções de amor: : "A estrela Dalva/No céu desponta / E a Lua anda tonta / Com tamanho esplendor...". E todos dela gostavam! Mas, caiu pra mim a missão de namorar a musa daquele lugar e daqueles anos. Se sete vezes eu namorei e se sete vezes ela rompeu, o bonde das épocas a levou para o Rio de todos os janeiros. E por lá ficou!
(*) Homenagem do Autor ao Mestre Ariano Suassuna, na passagem de seus 80 anos.
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