Sentado assim, na quinta-feira santa, sob uma lua cheia que me alumia as horas, ouço o quase ruído do silêncio. Os grilos, à distância, preenchem os ares do mundo com um zunido constante e agudo. Aqui e ali, percebo o coaxar de um sapo que renasceu do período de estivação, processo da lentidão metabólica que conserva a vida. Afinal, estão voltando as chuvas. Há boas novas, se diz, pois que os céus encharcaram os campos no dia de São José. Raios, trovões e relâmpagos estão previstos no final de semana consagrado à Paixão. Muito longe daqui, um cão quebra o mutismo instalado nesse mundão de muito verde, ainda. Cumpre o próprio desiderato: o de latir para a lua cheia. Imagina-se um lobo nas gélidas estepes. E o bacurau isolado repete o funesto canto. Anuncia, por certo, a sexta-feira santa ou lembra o luto fechado de minha avó e as proibições que fazia, a de cantar as músicas profanas e até o ato simplório de assoviar: “fiu–fiu!”.
Foi um sabiá que me recebeu com o seu mavioso canto, assim que cheguei e me acomodei em casa. Sabiá-gongá imagino eu, cantando ao longe, convidando a fêmea de todos os encantos ao mais sublime dos atos: o da reprodução. Bastou abrir a janela para admirar o jardim ainda orvalhado, quase molhado pela parição da manhã, que trouxe o sol aclarando o dia. Na relva, que faz da frente de casa um tapete verde e viçoso, havia uma festa de rouxinóis, num agradável palrar dessa passarada de um marrom fechado e vistoso. Já tinha visto de outra janela no Recife um desses bichinhos saltitando nos contornos do campinho de futebol, como se aqueles ferros da modernidade fossem os galhos que vi crescer em Santo Amaro da infância. No Mercado da Encruzilhada, também, nos beirais da igreja nova, da pentecostal seita, havia outro, trinando esses mesmos acordes. Mas o espetáculo maior é por aqui, em Aldeia, no Bosque das Águas.
E a sexta-feira amanheceu assim, linda, fechada pelas nuvens do céu e a neblina tomando conta dos ares. Estavam escondidos os pássaros, mas na casinha que trouxe de Santa Felicidade, em Curitiba, o homem saiu à rua e a mulher recolheu-se. Sinal de muita chuva e de muita umidade, de paz e de amor, de felicidade enfim! Uma coruja passou, todavia, rasgando a mortalha: Valha-me Deus! Antecipa, por certo, os horrores da cruz! A paixão e a morte do Cristo. Jesus não queria morrer, defendeu em artigo o pensador católico Frei Aloísio Fragoso. A morte, na Via Crucis que viu em Bariloche, o Senhor tem a face tomada pelo sofrimento da dor, mas há uma criança num braço da cruz, para quem o crucificado olha e sorri. É o fenecer da vida em prol de outra ou de outras, porque se assim não fosse, morreria todo o povo de Deus! Talvez a coruja, bicho de mau agouro, aziago, lembrasse as minhas visitas à imagem do Senhor morto e o beijo nunca higiênico dos penitentes.
Bom mesmo era participar da despesca do viveiro da casa de meu tio Delgado, em Duarte Coelho, nos começos de Olinda, antes que a estrada sufocasse o mangue e estrangulasse os peixes ou condenasse à quase extinção os caranguejos de andada. A família toda de minha mãe se juntava e era uma festa para a meninada, quase rapaziada já, que se atolava na lama até os joelhos, ajudando aquela pisciforme coleta. Não lembro mais como era a divisão do exigido alimento dos dias reservados ao jejum e à abstinência. Comia-se peixe, nunca a carne dos pecados. Foi essa exigência que me tornou inábil para acender o fogo do churrasco, pelos perigos da vermelhidão da picanha. Só a grelha elétrica foi capaz de matar o meu pecado da gula.
A vida é bela por tudo isso, pela largueza das estradas e até pelos obstáculos a serem vencidos, às custas do próprio sangue, tantas vezes, como na cruz, no eternizado sacrifício em prol do bem maior, da humanidade inteira, numa redenção ainda hoje vivida e revivida. E se até o Cristo, no momento derradeiro de um padecer enorme, voltou-se para o Pai e em suplicantes palavras verbalizou seu desespero – “Senhor! Senhor! Por que me abandonaste?” –, como pode a criatura não aceitar a sua fragilidade? Que não se iluda o penitente dessas paragens mundanas, a ninguém é dado atirar a primeira pedra! Toda gente caminha contabilizando nos embates vitórias e derrotas, louros e fracassos e a gratuidade das críticas, dos menosprezos e dos desprezos não pode se alinhar com as frágeis características do ser, nascido à semelhança, apenas, do Criador, mas com a perfeição posta na perspectiva do inteiramente utópico. Todos nós temos a nossa paixão e ao final a grandeza da ressurreição, que pode ser terrena, simplesmente - E o é, também! - ou eterna, na crença de muitos.
A juventude é o tempo dessa paixão, desse sofrimento d'alma, de um padecer ameaçador, que parece misturar, nas ambivalências da idade, as tentações da matéria com as contenções do espírito, gerando todos os conflitos. Mas, a maturidade que chega e faz o cabelo pratear ou faz o corpo vergar à força dos anos, traz um sentimento a mais: o da felicidade. Eu sou feliz com as pequenas coisas. Com o churrasco improvisado, o tilintar das taças do vinho bem escolhido e o beijo carinhoso que o brinde trouxe: “Saúde!”.
Eis a minha inspiração diante da chuva forte da sexta-feira santa e diante da umidade que vem do abstrato que é o tempo. Boa Páscoa a todos.
Foi um sabiá que me recebeu com o seu mavioso canto, assim que cheguei e me acomodei em casa. Sabiá-gongá imagino eu, cantando ao longe, convidando a fêmea de todos os encantos ao mais sublime dos atos: o da reprodução. Bastou abrir a janela para admirar o jardim ainda orvalhado, quase molhado pela parição da manhã, que trouxe o sol aclarando o dia. Na relva, que faz da frente de casa um tapete verde e viçoso, havia uma festa de rouxinóis, num agradável palrar dessa passarada de um marrom fechado e vistoso. Já tinha visto de outra janela no Recife um desses bichinhos saltitando nos contornos do campinho de futebol, como se aqueles ferros da modernidade fossem os galhos que vi crescer em Santo Amaro da infância. No Mercado da Encruzilhada, também, nos beirais da igreja nova, da pentecostal seita, havia outro, trinando esses mesmos acordes. Mas o espetáculo maior é por aqui, em Aldeia, no Bosque das Águas.
E a sexta-feira amanheceu assim, linda, fechada pelas nuvens do céu e a neblina tomando conta dos ares. Estavam escondidos os pássaros, mas na casinha que trouxe de Santa Felicidade, em Curitiba, o homem saiu à rua e a mulher recolheu-se. Sinal de muita chuva e de muita umidade, de paz e de amor, de felicidade enfim! Uma coruja passou, todavia, rasgando a mortalha: Valha-me Deus! Antecipa, por certo, os horrores da cruz! A paixão e a morte do Cristo. Jesus não queria morrer, defendeu em artigo o pensador católico Frei Aloísio Fragoso. A morte, na Via Crucis que viu em Bariloche, o Senhor tem a face tomada pelo sofrimento da dor, mas há uma criança num braço da cruz, para quem o crucificado olha e sorri. É o fenecer da vida em prol de outra ou de outras, porque se assim não fosse, morreria todo o povo de Deus! Talvez a coruja, bicho de mau agouro, aziago, lembrasse as minhas visitas à imagem do Senhor morto e o beijo nunca higiênico dos penitentes.
Bom mesmo era participar da despesca do viveiro da casa de meu tio Delgado, em Duarte Coelho, nos começos de Olinda, antes que a estrada sufocasse o mangue e estrangulasse os peixes ou condenasse à quase extinção os caranguejos de andada. A família toda de minha mãe se juntava e era uma festa para a meninada, quase rapaziada já, que se atolava na lama até os joelhos, ajudando aquela pisciforme coleta. Não lembro mais como era a divisão do exigido alimento dos dias reservados ao jejum e à abstinência. Comia-se peixe, nunca a carne dos pecados. Foi essa exigência que me tornou inábil para acender o fogo do churrasco, pelos perigos da vermelhidão da picanha. Só a grelha elétrica foi capaz de matar o meu pecado da gula.
A vida é bela por tudo isso, pela largueza das estradas e até pelos obstáculos a serem vencidos, às custas do próprio sangue, tantas vezes, como na cruz, no eternizado sacrifício em prol do bem maior, da humanidade inteira, numa redenção ainda hoje vivida e revivida. E se até o Cristo, no momento derradeiro de um padecer enorme, voltou-se para o Pai e em suplicantes palavras verbalizou seu desespero – “Senhor! Senhor! Por que me abandonaste?” –, como pode a criatura não aceitar a sua fragilidade? Que não se iluda o penitente dessas paragens mundanas, a ninguém é dado atirar a primeira pedra! Toda gente caminha contabilizando nos embates vitórias e derrotas, louros e fracassos e a gratuidade das críticas, dos menosprezos e dos desprezos não pode se alinhar com as frágeis características do ser, nascido à semelhança, apenas, do Criador, mas com a perfeição posta na perspectiva do inteiramente utópico. Todos nós temos a nossa paixão e ao final a grandeza da ressurreição, que pode ser terrena, simplesmente - E o é, também! - ou eterna, na crença de muitos.
A juventude é o tempo dessa paixão, desse sofrimento d'alma, de um padecer ameaçador, que parece misturar, nas ambivalências da idade, as tentações da matéria com as contenções do espírito, gerando todos os conflitos. Mas, a maturidade que chega e faz o cabelo pratear ou faz o corpo vergar à força dos anos, traz um sentimento a mais: o da felicidade. Eu sou feliz com as pequenas coisas. Com o churrasco improvisado, o tilintar das taças do vinho bem escolhido e o beijo carinhoso que o brinde trouxe: “Saúde!”.
Eis a minha inspiração diante da chuva forte da sexta-feira santa e diante da umidade que vem do abstrato que é o tempo. Boa Páscoa a todos.
Dr. Geraldo,
ResponderExcluirSempre acompanhei seus artigos no Jornal do Commercio e com satisfação li a coletânea constante do livro. Contudo, não sabia da existência do Blog. Fiquei feliz, pois, nós leitores e admiradores de sua escrita, ficamos de alguma forma mais próximos de sua inspiração, e não dependemos mais do dia da pauta do jornal. Parabéns. Abraços de mais um leitor amigo.
Meu Caro Marcus
ResponderExcluirBondade sua. Generosidade de sua parte, apenas, da qual fico devedor. É sempre muito agradável a leitura de um texto assim, como o seu. Se contasse com o seu e-mail, responderia diretamente, mas terei satisfação em lhe atualizar sobre o Blog, se me enviar o endereço eletrônico.
Geraldo Pereira
Dr. Geraldo,
ResponderExcluirAgradeço suas palavras e terei imenso prazer em visitar esta página, sempre que atualizada. Meu e-mail é marcusviniciusrocha@bol.com.br
Um forte abraço!