As coisas no Recife mudaram inteiramente nos últimos 40 anos e a minha geração, mais que sessentona, assistiu a tudo isso. A vida é assim! As transformações se materializam ao longo das décadas, fazendo com que os mais velhos tenham lembranças que os jovens sorriem e se justificam: “Seu tempo era outro!”. Novos hábitos e novos costumes estão por ai, no cotidiano da cidade, levando a gente contemporânea a convívios e convivências diferenciados. Há uma liberdade exagerada, parece, sobretudo dentre os que emergem para o exercício da existência humana. O trabalho quase não existe e se o cidadão consegue engajar-se no mercado tudo é diferente, a máquina vai se ocupando das rotinas, a competência tem prioridade sobre tudo e sobre todos, influenciando as formas de absorção da mão-de-obra.
Os cinemas de antes fecharam as portas, em maioria, mesmo com a resistência hercúlea do São Luiz, cuja freqüência não se compara ao ontem do século que se foi. Os shoppings levaram para bairros finos as casas de exibição, as quais promovem as estréias mais importantes. O comércio, também, deixou o centro urbano e as lojas integram os condomínios dessas modernas construções coletivas, onde se vende do alfinete a veículos motorizados. Na Imperatriz e na rua Nova, por mais esforço que haja dos proprietários, é rara a presença das pessoas de classe média. Não há o lanche gostoso, apetitoso até, da Confiança, cujo sanduíche de queijo prensado no pão de caixa fez sucesso no pretérito. A sorveteria Gemba - na rua da Aurora - encantou-se pra trás e os sabores tornaram-se industrializados, nunca assemelhados àqueles. Os médicos e os dentistas dispersaram-se pelos bairros nobres.
Ninguém deseja mais residir em casas com jardins e quintais repletos de fruteiras. O cajá, o caju, a pinha, o jambo e o sapoti são produtos expostos nos supermercados. Eram presenteados outrora, de um vizinho a outro. Proliferam os prédios enormes, de altura que superam, em muito, a do arranha-céu da pracinha ou a do Edifício Capibaribe, na Aurora. Acabaram-se as mercearias das esquinas e uma das últimas, vencida pelo afastamento da freguesia, sofreu a metamorfose dos tempos, virou restaurante de bom tempero. O cuidadoso dono guardou por lá sacos de feijão, de arroz e de açúcar, reavendo assim um passando gostoso. Nesses estabelecimentos, tantas vezes vizinhos das farmácias, os aposentados e outros menos ocupados fiavam conversas em fins de tarde. Traziam o pão da ceia e a manteiga de boa procedência. O ovo era recolhido no terreiro, de uma galinha poedeira qualquer e frito na banha de porco.
Sentava nos bares o povo simples e os remediados da sorte raramente tomavam bebidas alcoólicas, senão nos aniversários ou nos assustados, nas festas de fim de ano e na folia de Momo. E se eram adeptos das noitadas, restringiam-se ao bom whisky, raramente ultrapassando os limites da sobriedade. O mestre Jordão Emerenciano, monarquista convicto, tinha gosto com essas festas e por lá andavam o meu pai, mais o geógrafo Gilberto Osório de Andrade e outros da sociedade da época. Juntavam-se para fiar conversa, enquanto a hora avançava nos relógios. Havia quem dançasse e quem não dançasse, saraus deliciosos que ficaram na memória e até uma confraria foi criada, com o nome de Ordem do Chocalho de Ouro, numa justa homenagem ao apetrecho usado por bodes e cabras nos agrestes. Cada um tinha o seu instrumento e o trazia atado ao pescoço, como se uma medalha fosse. Peças, todavia, do metal chulo com o qual se fazia iguais badalos nos esturricados sertões.
As quermesses e as comemorações das paróquias preenchiam o lazer em alguns meses do ano. Os carrosséis, os jogos de azar e o tiro ao alvo faziam a festa. Vez ou outra um conhaque para animar o cidadão menino. Flertes e muita conversa pra cima das meninas, moiçolas em flor, disponíveis para um beijo roubado ou um abraço furtivo. Namoros nascidos assim, em plena fuzarca, uns prosperando ainda hoje em sólidos casamentos e outros que ficaram pra trás. Filhos grandes já, casados ou não, mas com perspectivas de futuros incertos. Ninguém antecipa o que será de uma criança aos dez anos de idade, dizia-se em filme que assisti numa volta da França, onde havia deixado a primogênita. Que beleza! Nunca pensei nisso!
Eis a minha geografia sentimental!
Eis a minha geografia sentimental!
(*) Um texto que serve de interrupção (interrupção?) a uma série de artigos em torno da vida de uma seminarista, cuja continuidade só a manifestação do leitor poderá me estimular. Os Blog - qualquer blog - é assim, interativo, sobretudo, porque contando com as opiniões que fluem de quem se ocupa em ler, segue um ou outro caminho. Há quem pense que o seminarista é o autor e há quem compreenda que o escrevinhador dessas linhas nunca entrou em casa de formação católica. Sendo assim, comente no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com
Geraldo
ResponderExcluirGostei muito da crônica. São recordações a que não se diz adeus. Texto bastante comparativo com a realidade atual, que de parecida ou igual nada tem com a anterior.
É isso aí: o mundo que avança, que se modifica e a nossa certeza: adivinhar ou prever o futuro de uma criança não é mais possível.
Ainda mais que o tempo vem se trans formando numa velocidade galopante. Afinal, é a vida..... abços Eliana
Homem de Deus,
ResponderExcluirVc remeteu-me ao pretérito, com uma descrição irretocável! Bom mesmo é que, em cada oração da sua bela composição, pude vislubrar uma serie de outras lembranças. Revi, com emoção, a Confeitaria Confiança, meus namoricos e linhadas, no cinema de arte e nas tardes de domingo do cinema São Luis. Ah! como meu morava bem proximo de Jordão Emerenciano, lembrei-me dos ditos saraus lembrados por vc. Passado, passado, pretérito.
Parabéns amigo!
Girley Brazileiro