sábado, 10 de março de 2012

Uma tumba e um telegrama

Era começo da década de noventa e o meu pai estava doente, muito doente. Morreu quando se iniciava o segundo ano da mesma década. Chego para visitá-lo, como fazia de hábito e minha mãe vem se queixar de algumas ligações vindas do cemitério próximo, Santo Amaro por designação oficial. Indago-lhe de que se trata exatamente e ela diz que desejam uma autorização para que uma certa tia minha, encantada no infinito das coisas, continuasse a dispor da tumba. Para tanto, era preciso uma assinatura de seu filho único, também falecido e doente mental no tempo em que esteve entre nós. Foi, mais ou menos, assim:

- Meu filho! Eu não aguento mais! Eles ligam seguidamente e de nada adianta dizer que não há herdeiros e que o único filho tinha morrido antes dela. Veja, seu pai doente, eu louca, acima e abaixo, enquanto essa gente parece não ter o que fazer e tira o tempo para me aperrear.

- Não se inquiete tanto e tenha a mais absoluta certeza de vou resolver o impasse!

- Como? Vai fazer uma ligação pra lá? Que atitude vai tomar?

- Vou passar um telegrama ao Secretário de Saúde da Prefeitura, que na realidade é o responsável pelo campo santo e em última análise a autoridade coatora. Penso que se diz dessa forma!

- Não será perigoso? Essa gente não tem o que perder! (Essa era uma manifestação frequente dos receios de minha mãe, dos medos até que um de seus filhos se expusesse.)

Passei a redigir o telegrama, que tomou, aproximadamente, a forma que se segue:

Sr. Secretário de Saúde

Prefeitura do Recife

Minha mãe vg seguidamente vg incomodada ligações telefônicas do Cemitério pt Meu pai gravemente doente pt Desejam autorização permanência tumba tia minha há muito falecida pt Querem assinatura de filho igualmente falecido e doente mental em vida pt Solicito vossa excelência informar Centro Espírita credenciado vg sentido alfabetizar meu primo e dar-lhe o necessário juízo.

É desnecessário dizer que a mocinha encarregada de ouvir essa lengalenga toda e digitar (ou datilografar) as estranhas frases, teve dificuldade em aceitar a mensagem, sobretudo porque dirigida a uma autoridade de governo. Fez diversas perguntas, indagou se eu me responsabilizava e finalmente despachou o telegrama.

Ao que soube, o Secretário recebeu o texto, leu e releu algumas vezes, mostrou aos assessores imediatos e quase tem uma apoplexia de tanta raiva. Deu murro em mesa, quebrou uma cadeira, derrubou uma xícara de seu cafezinho e expeliu fogo pelas narinas. Mandou que olhassem na relação de médicos da Secretaria se constava o meu nome. Não o encontrou, claro. Finalmente, deu um despacho mandando que se deixasse em paz a senhora e sua família.

E nunca mais se recebeu um telefonema do cemitério. Graças a Deus!



























2 comentários:

  1. Sou um amigo da Lúcia, sua sobrinha, que foi quem me recomendou a leitura desta belíssima peça. O humor bem urdido é de beleza e estilo ímpar... E não é fácil construí-lo com todo esse requinte. O telegrama, tal como relatado, é uma peça fantástica... Parabéns! Agora já sei de onde Lucinha, a sobrinha, herdou todo a inquietação talentosa que a caracteriza... Bendita árvores paternal! Abraços gaúchos do poetinha JM.

    ResponderExcluir
  2. Meu caro, tivesse você falado comigo à época tudo se resolveria sem qualquer inconveniente. Falaria com Maria Aparecida, Pai de Santo dos melhores de Casa Amarela, devidamente credenciado pelo além túmulo. Ele traria o primo "aqui" ele meteria o jamegão no papel (com a assistência dela, claro) e tudo estaria resolvido.
    Normalmente Aparecida só cobraria a vinda, por ser o retorno caminho já conhecido do "vindo". Sendo, entretanto, seu primo desprovido do juízo ela cobraria uma "taxa de retorno" a fim de evitar possíveis contratempos. Silvio Costa

    Nesses casos Maria Aparecida cobraria uma "taxa de retorno" para acompanhamento do "cidadão" de volta.

    ResponderExcluir