O livro do
sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, intitulado O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX, no
qual estão transcritas algumas dessas manifestações comerciais com os negros D'
África e comentadas outras tantas, há muito o que se tirar sobre as doenças
dessa gente assim, submetida pelo semelhante de tez branca. Anúncios de escravos
fugidos eram mais sinceros e francos, absolutamente honestos, diz Freyre, do
que aqueles das ofertas para venda ou para troca, porque ninguém oferece o seu
produto, mesmo que humano, apontando defeitos e perdas. Destaca o autor que o
tratamento dado aos servos se aproximava mais das coisas - peça da Guiné - ou
dos animais - cabra -, que da condição de criatura, como deveriam merecer.
Negros que
andavam, muitas vezes, com máscaras de flandre, contanto que não se atrevessem
a comer terra, por conta da carência mineral, certamente, determinada pela
anemia de origem verminótica. Hábito, aliás, que perdurou entre nós durante
anos e mais anos, graças à infestaçào das chamadas populações excluídas pelo Necator americanus. No velho Hospital
Pedro II, era comum a referência dos doentes à precisão de se alimentarem com
barro e não raramente chegavam a se utilizar do reboco das paredes das
enfermarias ou das tampas dos filtros d'água potável. Talvez daí tenha surgido
o ditado comum em décadas passadas: "Amarelo de Goiana come barro com
banana!". Mas, negros, também, eugênicos, alguns, como os sudaneses;
homens e mulheres bonitos, de feições mais delicadas e esbeltos, saudáveis,
pois.
Era comum,
relata o escritor, a alusão a certas deformidades, como as amputações, das
falanges e dos dedos, das mãos até, conseqüências, ao que parece, dos acidentes
de trabalho com as moendas dos engenhos. Referências, também, à falta de
dentes, dos incisivos, sobretudo, perdidos por conta dos descuidos no trato,
fato, entretanto, corriqueiro no século XIX,
com os senhores e as senhoras, com sinhazinhas, até. E a precariedade higiênica
respondia pela quantidade de piolhos de que eram portadores, razão para se
vender os pentes específicos e para justificar o costume disseminado de "catar
piolhos". A Tuberculose matava a muitos e havia moleques que
"entisicavam" no trajeto oceânico e eram entregues de quebra, quando
da compra de adultos sadios, tal o estado em que se encontravam.
Negros
esfomeados, submetidos a dietas restritivas nas viagens, as quais não passavam
da fava fervida, simplesmente. Portadores, depois, de Raquitismo e do Mal de
Luanda (o Escorbuto). Ou negros opilados, inchados, edemaciados, por falta do
aporte necessário, de Ferro e de outros nutrientes vitais. Ou ainda com a marca
da "Cegueira Noturna", em função da carência da Vitamina A. Negros,
também, com grandes inchaços nas pernas, difundindo a Filariose através do
mosquito transmissor, perpetuando a parasitose até os dias que correm. Homens e
mulheres saudosos da África, sofrendo de Banzo e afogando as tristezas das
separações na aguardente de cana, adoecendo de cirrose e carregando, vida a
fora, a chaga do alcoolismo.
O "Bicho
de Pé", que ainda hoje incomoda a gente dos aglomerados periféricos, era
de grande frequência e a coceira apreciada, por ser exigente e repetitiva. Já
aparece, de igual forma, nessas descrições gilberteanas o Vitiligo, chamado de
"Calor de Fígado" no palavreado vulgar e o "Ainhum",
manifestação dermatológica que o Prof. Octávio de Freitas, fundador da
Faculdade de Medicina do Recife, atribuía à Hanseníase, mas que parece ter uma
disfunção genética na causalidade. Negros, enfim, expatriados, sofridos no tudo
e no todo, apartados, da mesma forma, precocemente, dos convívios maternos,
quando da Lei do Ventre Livre, sem a maternagem de que se ressentem os humanos,
mal alimentados e deseducados, tratados como bichos do mato ou como coisas,
simplesmente. Vendidos despidos, expostos à curiosidade pública, sem respeito
às vergonhas, escolhidos conforme as dimensões dos órgãos sexuais, apreciados
na cama e mal tratados no eito.
(*) Um texto escrito há alguns anos, quando escrevi um trabalho enfocando a investigação de Gilberto Freyre em torno dos anúncios em jornais. O Blog é publicado de hábito no jornal virtual A Besta Fubana. Comentários no espaço mesmo do Blog ou para o e-mail: pereira.gj@gmail.com
Isso é uma aula de história. Magnífico. Se todo texto na internet tivesse essa consistência e profundidade, que beleza seria navegar nessas "ondas". Parabéns.
ResponderExcluirAprofundado e realista, histórico atrvés dos tempos, valeu muito a leitura deste texto. Desta feita, mostrou, enfaticamente, os seus estudos e socializou com os seus leitores o que nos enriquece culturalmente.
ResponderExcluirA gente que escreve e lê muito, vez ou outra, precisa disseminar os conhecimentos. Isto é muito gratificante. Gostei!!!!
Eliana
Caro confrade Geraldo, seu texto é uma síntese, bem urdida e conduzida, do triste e negro período da escravidão negra no Brasil, chaga ainda semicicatrizada em nosso pernil auriverde. O Mal de Luanda (ou Loanda), comuníssimo na época, era também o que muitos chamavam de Peste do Mar, que acometia os mareantes das longas viagens transoceânicas, matando, muitas vezes, a maior parte das gentes que navegavam, como aconteceu com a própria frota de Cabral que se dirigiu às Índias depois de "achar" o Brasil. Grande abraço
ResponderExcluirminha vó dizia 'come sapo com banana'. Sobre tal deficiência, o cirurgião pediatra Gilvan Bandeira conta: 'quando vi o menino amarelo daquele jeito, perguntei : ele come barro? E a m~e respondeu: já comeu doutor, mas agora vem comendo sandália japonesa. Aí perguntei, é havaiana e ela disse: não doutor é da outra'.
ResponderExcluirpaulo caldas