Meu querido e mui amado pai.
Nesta hora de tanto padecer, de tanto
sofrer, num machucar constante da carne e do espírito, inquieta-me a
impotência do meu ser e do meu saber diante da tua dor. A ciência que aprendi
às custas do teu suor, derramado, gota a gota, sobre o teclado da máquina de
escrever, falece, frente à proximidade do inexorável – desgraçada proximidade.
Sou agora uma desesperada criatura e o meu desespero não pode mais chegar aos teus
ouvidos, como dantes. Não suportarias este problema, esta questão que guardo e que
vivo!
Tudo mudou, meu pai, em tão pouco
tempo! Ontem, menino de calças curtas, ouvia as tuas recomendações e às vezes
nem as seguia, peralta que fui. Depois, na metamorfose da existência, os
conselhos rejeitados na inquietude que marca a adolescência serviram de guia na
maturidade, para a escolha dos caminhos, das trilhas da vida. Adulto, mesmo,
quantas vezes fui à tua procura, quantas vezes ouvi a tua bem pesada opinião!
Hoje, pai, precisas de mim perto, bem perto, como se dispusesse eu, pobre
mortal, da porção mágica, quase, que restaura a injúria orgânica, tão larga,
já. Ah, se eu pudesse! Ah, se Deus me ouvisse!
O meu sentimento é de profunda
depressão, é de incapacidade para enfrentar a perda que vai chegando, pouco a
pouco, vergando-te o corpo mais e mais, roubando-te a voz e incapacitando-te.
Somente a inteligência, atributo superior da criatura, está preservada, numa lucidez
impressionante dos fatos e das coisas, da percepção, inclusive, desta
proximidade com o imponderável. Ouvir de tua boca que preferes o desenlace à
vida assim, com as dores da doença, cortou-me o coração, deu-me a mais absoluta
certeza de que estamos perto, bem próximos da eterna distância. Saber o quanto
admiras, agora, os outros, andando ágeis, de um quarto para outro, subindo e
descendo escadas, enquanto tu, que já foste assim, quase não podes mais
caminhar, leva-me às lágrimas. É isso mesmo, pai, são os desígnios do Criador,
é a vida em sua seqüência cruel, amputando com lentidão as funções, dificultando
a normalidade das coisas. Gostaria de poder, ainda, ouvir palavras tuas sobre
as grandes questões que enfrento daqui para frente no meu ofício, que foi
sempre o teu, o de transmitir o conhecimento, o de preparar a juventude, de formar
as pessoas. De conversar sobre o passado, sobre os nossos passeios, de mãos
dadas, ao velho Parque 13 de Maio, por alamedas da infância; sobre o nosso
debruçar diante do Capibaribe, vendo passar a água célere e um barquinho
pequenino. Ou sobre as nossas reuniões de fim de ano, interrompidas agora, em
1991, numa antevisão tua do futuro imediato, de um porvir diferente.
Guardo, ainda, o teu derradeiro
telefonema, para falar de mim, para dizer: “Meu filho! Você é um vitorioso!” As
minhas vitórias, pai, obtidas a sangue, suor e lágrimas, reconhecem na gênese
primeira o teu papel de condutor, de educador, dando-me a rota das coisas e mostrando
a turbulência dos mares da vida. Pena não possas mais assistir ao esforço que
faz teu filho agora, primogênito da prole, no galgar de mais um degrau, em cuja
base te vê, verdadeiramente. Durmo contigo esta noite e te ofereço, ainda, o
que puder, com os olhos marejados, já, pois que pressinto o fim. Um dia,
contigo, nas brumas do eterno, outras estórias hão de rolar e vamos rir às
bandeiras despregadas, novamente!
PS: Texto escrito na véspera do
falecimento de meu pai – Nilo Pereira. Crônica que levo à Fliporto, como exemplo do que escreve o cronista, quando está sob emoção forte. Levei, realmente, mas não houve tempo de ler. Desejando o leitor comentar, o faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com
Só um coração sensível como o seu para expressar a tristeza e a dor de uma forma bela e emocionante. Ontem foi vovô, hoje vovó busca também o fim da dor, o descanso. Nós que ficamos temos muita saudade e lágrimas, mas precisamos ter racionalidade o bastante para olhar a dor do outro, não a nossa.
ResponderExcluirLinda crônica, pai.
Geraldo,
ResponderExcluirLeio emocionada uma verdadeira carta escrita com a pena do coração emocionado que anteviu a "proximidade do inexorável."
Achei bonito o seu reconhecimento quanto a transmissão de valores de papai e as suas recordações, alicerces do seu futuro que chegou com muitas láureas.
O momento atual leva você a viver e a reviver o que passamos com muita tristeza.
Que a nossa mãe possa receber de Deus o conforto que diminua o seu sofrimento. Rezemos e sejamos cúmplices, pois os seis filhos de papai e mamãe( que somos nós ) sofrem da mesma forma...
Eliana
Caro Geraldo, bonitas são as suas lembranças do Prof. Nilo Pereira. E elas nunca terminam, posto viverem dentro da sua alma e não do cérebro. A memória da primeira é bem mais forte que a do segundo. Ao meu pai, dediquei meu livro "Uma vez..." como bem sabe você. Foi o máximo que até hoje consegui, por não ter o seu talento como cronista maior. Um abraço, com a minha costumeira admiração. Silvio Costa, o da UFPE.
ResponderExcluirObservo o ar cinzento da impotência, a calma tensa de gratidão, despedida doçura quente. Força. Um abraço sincero amigo Geraldo.
ResponderExcluirHermenegildo