segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Serpentinas Rasgadas

Nesse tempo de folia - perdoe-me o leitor - pra mim não há magia, pois onde fizeram morada o luto e a dor não há como ter alegria! Antes a nostalgia, lembranças de muitos anos, encantados agora no passado das coisas. De outros carnavais, de fantasias guardadas nos escaninhos já desgastados da memória dos dias de minha infância, de sonhos desfeitos, gestantes ainda no imaginário, sem que pudessem sequer experimentar a realidade do parir, na interface da vida, adolescência do ser, metamorfose do existir humano. Lembranças do menino vestido a caráter em roupinha de marinheiro bem encorpada, assumindo ali mesmo, na vesperal do Clube Português, ares de capitão da grande frota da ilusão, a navegar nos mares do devaneio. De serpentinas rasgadas e amores partidos, num arco-íris de confetes coloridos, escorridos todos dos céus de meus desejos.


Cabelos longos e lisos alguns, pretos ou castanhos em maioria, mas louros também, nascidos assim, doirados. Do perfume da lança e do lança-perfume saudando paixões, fortuitas, exauridas depois, nas cinzas da quarta. Saudades do corso serpenteando a cidade, dos carros enfeitados, estourando o escape, da água de cima pra baixo dos sobrados da Concórdia ou de baixo pra cima da malta se vingando e os remediados da sorte molhando. Dos beijos roubados – efêmeros ósculos –, de promessas e juras desprezadas todas, esquecidas quando a fantasia das coisas tombava e a realidade dos dias voltava. Dos presos olhando do alto das celas a liberdade passando, do adeus de mãos assim, encarceradas, distantes de um afagar carinhoso, meloso, de um manto piloso qualquer que fosse dando forma aos desejos. Pesadas grades aquelas, nítidos limites da violência incontida, na contenção violenta do ferro fundido!
 
Recordações de tantos momentos, tempos felizes da falta de compromisso, do tambor dando ritmo à batucada de improviso na folia do corso. Do caminhão enfeitado com palha de coco, decoração tropical e simplória, na criação fértil do avô materno. Da gente miúda tamborilando e dos mais velhos incomodando, dando ordens e contra-ordens, exigindo do motorista, com nome de santo e santo também - João –, peripécias e piruetas mil. E os primos quatrocentões exercendo a perplexidade paulista, quando o micróbio do frevo tomava de assalto a indisposição sulista. Gostosa folia aquela, que se esvaia ao primeiro sinal da ingratidão da quarta, ameaçadora, com ares de bacalhau à mesa e do vinho tomado com o sabor diluído da sangria bem cuidada. Acauteladora medida do pai comedido, contido com os prazeres do mundo.

E o filho rebelde na gafieira dançando, ouvindo o fiscal de salão, defensor atento daquele recanto da fantasia e do recato. Pacato lugar de tantos amores, casais enlaçados à moda do tempo, frevando e sambando sem poder se tocar, mesclando no passo, no passo da gente, da tradição tupiniquim das coisas, as cores do corpo de morenas melosas, dengosas algumas, com o menino da casa de suas ocupações profissionais e domésticas! Bailes no Clube Atlântico, na Marim dos Caetés, vesperais animadas por esperanças mil. Balzaquianas perdidas, desgarradas, carentes, no meio das músicas soltas, trazidas por firmes acordes dos trombones à proximidade de corações em fogo. Inibições pueris e tímidas incursões, reinados de sonhos em cortes do imaginário. Marcadas frustrações!
 
Neste tempo de folia - perdoe-me o leitor -, pra mim não há magia, pois onde fez morada o luto e a dor, não há como ter alegria!
 
 
(*) Texto escrito há 21 anos, logo depois do encantamento de meu pai, dai o luto e a tristeza que a crônica expressa, nesse lamento meloso.
 

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