Desta
janela da sala vejo tudo o que se passa lá por baixo, sobretudo na pracinha
fronteiriça; pracinha, ou melhor dizendo, um refúgio, como chamam os que
entendem dos equipamentos urbanos. Vejo e até ouço, porque a gente de agora
fala muito alto. Os diálogos e às vezes os quase monólogos por telefone, tudo
audível até muito longe. Se tiver maiores dificuldades, é só ir à varanda e
apurar os ouvidos, para escutar conversas e até o falatório solitário de alguns. Os
isolados, à falta de quem falar, conversam horas sozinhos, indagam e eles
próprios respondem. Há no refúgio uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, aquela
das devoções de minha mãe, que a teria acudido em momento de desespero, quando
a casa foi invadida por ladrões.
Esse negócio
de telefone e de gente gritando, como aquela jovem na manhã de um domingo,
discutindo com o parceiro o desejo (o dele) de ir ao desfile das virgens,
me fez lembrar o antigo equipamento da Farmácia Lobo, em meu bairro, o qual
sendo rudimentar, não permitia esses desencontros, tal o volume da voz no bocal
do aparelho. Impossível não saber os detalhes de quem se desentendesse. Mas, hoje, os que se utilizam
da invenção de Grahm Bell, tão estilizada como está, não ligam se ouvem ou se não
ouvem parte da interlocução. Escutei muito da briga do casal; ela,
diga-se de logo, empregada doméstica, trabalhando em pleno descanso remunerado.
Mas,
lembrei de um telefonema que atendi numa sexta-feira de Carnaval. A moça
procurava o seu namorado, assim: “André está?”. Não havia ninguém com esse nome
em casa, ao que respondi: “Completamente embriagado no bar da esquina!”. E ela:
“Eu não acredito! Ele me prometeu ir amanhã ao Galo! Eu vou matar esse homem!”.
E eu não sei ainda hoje o destino de André! Ao final, poderia ter reparado o
dano, mas como era uma coisa de menor poder destrutivo, resolvi deixar. Não soube
do resto! Pior aquele homem rústico que ligou errado para o celular e eu o
considerei piloto de um avião em pane e ele: “Meu senhor! O senhor me
desculpe! Nem andar de avião andei!”.
Sentam
no refúgio pessoas que conforme as respectivas idades e classes sociais
escolhem os momentos. Pela manhã logo cedo se acomodam nos bancos os empregados
da construção, aguardando a hora do batente pesado. Fiam conversa em voz muito
alta e qualquer penitente que queira prolongar o sono, desperta com o vozerio
lá em baixo. Durante a manhã, as domésticas andam ali com os cachorros das
madames, uma ou outra arrisca um abraço ou um beijo roubado no namorado
eventual ou efêmero. À tarde, quando o sol baixa, é fácil observar que a gente
da terceira idade vai por lá para um fresco. Por vezes com a cuidadora, essa
profissão da modernidade das coisas; das coisas e das idades.
À noite, as
meninas “ficam” com seus namorados ou quase isso. Vez ou outra passa e para um obsessivo
e faz gestos medidos, às vezes, repetidos. Outros aproveitam a madrugada e
deitam nos bancos, dormem de roncar e amanhecem contando as horas para o nada
que fazem todos os dias. Por fim, as que chegam em carros novos, expõem as
pernas, como que lembrando certos outroras e certas proibições.
(*) Crônica do meu hoje, de minhas reflexões em torno do que se passa diante de mim, de minha janela da sala. O leitor amigo comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails pereira.gj@gmail.com ou pereira@elogica.com.br
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