Se o sofrimento inspira o verso ou faz
transbordar o coração numa crônica, é claro que outros sentimentos também são
inspiradores. A alegria, a satisfação de espírito, a plenitude d’alma permitem
a criação literária também. Quando se trata de sofrimento, há quem acredite que
o profissional da ciência de Hipócrates é um insensível, isto é quando cessa o
trabalho ao lado do leito do seu cliente, passa também a angústia ou a
ansiedade que a dor alheia produz. Não é bem assim! Quando a AIDS apareceu,
abrimos alguns leitos no Hospital das Clínicas; eram doentes que serviriam ao
ensino, mas também teriam que ser assistidos. Todos morriam, então! Os
profissionais de saúde entraram em parafuso, não conseguiam salvar ninguém.
Angustiaram-se e entraram em grande ansiedade. Foi necessário chamar um
psiquiatra que os visse em grupo.
Mas, muito
mais interessante que isso, é a experiência descrita no opúsculo “O Sofrimento
do Médico: Ontem e Hoje”, publicado pela Academia Pernambucana de Medicina, escrito
por Gilda Kelner e Clézio Sá Leitão, no qual há depoimentos verdadeiros do
último autor, em torno de seu sofrimento diante da doença alheia. Vejamos:
“Para completar o fim de semana, um paciente, Fernando, me foi encaminhado pela
Dra. Érica, competente e dedicada hematologista...Faleceu no sábado e fiquei
muito mal.”. E mais adiante: “Neste mesmo domingo, me ligaram da UTI, eu estava
no sítio, pintando um barco, não pude voltar, não tinha forças, precisava de
energia. Falei com o colega de plantão, que sedou, entubou, depois disso não se
faria mais nada...”. Os depoimentos são apenas para demonstrar que há um
sofrimento do médico, um padecer ao lado de seu doente; um sofrimento que
inspira, tantas vezes, o exercício da escrita.
O esculápio, por força de seu mister, tem
sempre o que contar, tem sempre uma história a mais para acrescentar numa roda
de fiar conversa. Eu, por exemplo, tenho centenas de histórias que poderiam ser
narradas sob a forma de contos, sem ferir a ética, porque não há necessidade de
se revelar o nome dos protagonistas e nem tampouco as circunstâncias em que
aconteceram. À senhora, que desenganada com seu casamento foi recomendada a se
vestir de forma sensual, mas o resultado da orientação redundou numa grande
surra que lhe aplicou o marido. Ou aquela outra que tendo se apaixonado por
mim, me presenteou com um bolo e um queijo do reino de boa marca. A minha
mulher considerou que o bolo poderia estar envenenado, mas a latinha do queijo
foi de logo aberta. E assim por diante!
O grande
Tchékhov, médico que fora, inicialmente profissional de uma área rural – médico
rural – em alguns de seus contos dá a nítida impressão de que viveu aqueles
fatos. Se não os viveu propriamente, talvez tenha visto em outras famílias ou
talvez tenha sabido. Em certo congresso de médicos escritores ouvi o comentário
de um psicanalista, de cujo nome não lembro mais, que dizia não se inventar a
narrativa por inteiro, mas lembrar fatos que se vivenciou, que soube por ouvir
falar ou que tomou conhecimento de outra forma qualquer.
Pois é o
escritor em “Inimigos”, conta que um médico da área rural, Dr. Kirílov, perdeu um
filho com seis anos de idade, vitima da difteria, o crupe, que a tantos
roubou o existir terreno. Quando a criança ainda está em seu leito de morte, toca
a campanhinha e surge o Sr. Abóguin, completamente desesperado com a mulher
doente. A esposa desmaiara na sala de casa e como estava com visita cuidou
juntamente com o forasteiro, o Sr. Paptchinski, e com ele deixou a mulher,
enquanto trazia o médico. O profissional tinha perdido o filho e disso dá conta
ao visitante, mas a insistência foi tão grande e os apelos tão fortes, que
mesmo assim ele se dispõe a atender a senhora doente. Seguem na carruagem rumo
à casa da infausta mulher. A surpresa, quando lá chegaram, foi muito grande,
porque tudo não passou de uma simulação, para que ela fugisse com o amante, o
Sr. Paptchinski.
Em outro
conto, intitulado de “Angústia”, o autor conta a história de um cocheiro que
também perdeu um filho e sofre com aquilo enquanto trabalha. Precisa desabafar
com alguém e puxa o assunto várias vezes com diferentes interlocutores. Ninguém
dá ouvidos, porque a desgraça do outro quase não interessa. Disse Nilo Pereira,
em “Reflexões sobre um fim de século”, a tragédia humana é como um filme,
terminado o enredo, passou também o sentimento. E o pobre do cocheiro termina
contando seu padecer à sua égua. “A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com
seu bafo as mãos do dono...”.
Geraldo: Muito, muito bom o seu texto. O sentimento humano diante da desgraça é terrível. Comovemo-nos porque há em nós uma solidariedade e um sentir com o outro. A sua referência ao livro de autoria de Dra Gilda Kelner e Dr Clézio Sá Leitão, grandes médicos a quem muito conheço de nomes, me levaram a uma grande vontade de ler. Como psicóloga, tenho uma empatia desenvolvida, se é que assim posso dizer.
ResponderExcluirEscreva também o seu Livro com as suas experiências. Será muito necessário, até porque é importante que o Juramento de Hipoócrates seja , cada vez mais, respeitado...
Parabéns!!!!!!! Abraços,
Eliana Pereira: www.blogdepereira.blogspot.com
Meu caro acadêmico Geraldo,
ResponderExcluirOcorrências sérias, outras engraçadas, você nos revela da vida dos seguidores de Hipócrates. E, como sempre, acompanhadas de deliciosa competência literária. Penso que o difícil na profissão é perceber a tênue fronteira que separa a insensibilidade do não envolvimento com o sofrimento alheio. Nem sempre é fácil enxergar as posições intermediárias - virtus in medium est. Nos tempos correntes minha vivência como paciente tem indicado que muitos profissionais da medicina, sobretudo o mais novos, estão pendendo para a primeira situação. Infelizmente. Fraterno abraço. Silvio A. Costa
Caro Geraldo:
ResponderExcluirÉ sempre um privilégio grande, entrar pelos seus escritos e descobrir a mistura de emoções que eles transmitem. Além do que se pode aprender com relatos de tantas vivências. Cá pra nós, já não se faz médicos como antigamente... Que pena! Os mais jovens, ainda bem que não são todos, estão esquecendo o humano e se apegam muito a vaidade e ao monetário, esquecendo-se de cumprir tão belo juramento. Quanto a você, parabenizo-o pelo profissionalismo, elogiado por quem o conhece, e, por seus textos, remédio para as todas as horas.
Um abraço,
Lígia Beltrão - Colunista Divulga Escritor