Era desses homens fortes, um negro robusto, dos lábios protundentes. Lembrava outro figurante das cenas da vida, que tinha um apelido inusitado: Bico de Ouro. Cognome, aliás, que lhe enchia as medidas e o deixava brabo, violento, capaz de bater em toda gente. Mas ele não, era tratado até com um certo afeto e chamado por um apelido que o envaidecia, quase sempre: Lábios de Mel. É que tinha uma queda muito especial por mulheres e segundo se comentava na comunidade, beijava da forma mais delicada possível, daí uma certa competição feminina em torno do personagem. Morava com a Nega Velha, como intitulou a companheira, em casa alugada, um barraco de dois cômodos, se muito e era dado à bebida. Tomava todas ou quase todas no bar da esquina, saia cuspindo e voltava pra casa, caia na cama e só acordava no dia seguinte. Dia sim, outro também, cumpria o ritual e a liturgia da cachaça.
Certa noite teve um sonho que lhe impressionara. Não era homem de ficar matutando com esses cenários oníricos, criados pelo inconsciente, que os psicanalistas interpretam usando o chamado conteúdo latente do discurso de cada um dos clientes. Ficava mais com a doutrina dos astrólogos ou mesmo aquelas mais simplistas, a dos bicheiros, que enxergam cada uma dessas divagações do sono de cada dia como uma indicação para o tão desejado sonho. O de ganhar dinheiro e ficar rico. Foi ao bar e fez a costumeira solicitação ao balconista de ocasião:
- Uma lapada e a música 3 do disco de Luiz Gonzaga!
A resposta veio em seguida, com toda a serenidade do mundo:
- A música, seu Lábios de Mel, eu não posso tocar, o meu avô morreu ontem!
Ao que respondeu o interlocutor, não sem antes tomar a lapada que pedira:
- E ele levou o disco? Foi? Foi?
Afinal, ao que as evidencias indicavam, o figurante não tinha entendido que o rapaz do balcão guardava o luto, um sentimento ainda existente nas cidades do interior de Pernambuco e nas periferias da metrópole. Veste-se o preto ou leva-se na roupa um sinal com essa cor, as festas estão desautorizadas e a musicalidade mundana afastada dos ouvidos. Quando muito, um canto de igreja ou uma sinfonia bem cuidada. E nada mais. O valente senhor, no entanto, tinha sonhado com um galo, a cujas dezenas deveria se prender (49-50-51-52), sem saber que fora o Barão de Drummond o inventor dessa loteria diferente, inusitada. Há quem sonhe com mulher e jogue na vaca ou quem sonhe com determinados artefatos presentes na cabeça de certos animais ungulados e jogue no touro. Ele não, estava fixado no galo, fora com o bicho penoso e sempre atraído pelas frangas do galinheiro, que tivera a sua inspiração matinal. Mas, dinheiro não tinha!
Bateu palmas no vizinho, seu Manoel da Bezerra e lhe pediu o dinheiro. Havia na outra esquina uma mocinha vendendo desses bilhetes novos, que sorteiam de uma só vez R$ 50.000,00 e mais 5 carros. Explicou tudo isso ao morador parede-meia, prometeu-lhe um carro, com toda a certeza dos números e de sua noturna divagação do inconsciente das coisas. Não havia jeito, o mês estava nos meados e as economias do salário, da aposentadoria da previdência, rareando já. Mas, Lábios de Mel insistiu tanto que o empréstimo saiu. E ele comprou o bilhete que esperava, saiu dali e foi guardar sob o travesseiro da cama. Escondeu o danado do papel; do papel e do número. O domingo ia chegar e ele tinha quase certeza que ganharia o prêmio
No dia marcado ligou a televisão e foi acompanhando o desfecho, prêmio por prêmio. E deu o bilhete dele no sorteio principal. Resultado: fora aquinhoado com R$ 50.000,00 e mais cinco carros de boa marca. Bateu forte com a mão espalmada no balcão da bodega e disse a frase mágica: “Ganhei na loteria. Bota uma lapada e a música 3 de Luiz Gonzaga! Vai ali e chama o seu ‘Manoel da Bezerra’!” O luto foi rompido, a radiola velha deixou sair os acordes da sanfona mágica e a voz do grande mágico do forró nordestino levou pelos ares o velho baião: “Nem se despediu de mim”. E a aguardente serviu para lembrar um amor antigo que fugira, sem despedidas, que já chegou contando as horas.
Lábios de Mel ficou rico. Deu um carro ao Manoel da Bezerra, vendeu três dos seus e passou a desfilar com o quarto, comprou três barracos na Vila Arraes, montou uma mercearia, que era também um bar e passou a freqüentar o clube do bairro, dançava até a madrugada com a Nega Velha e tomava todas. Tomava todas, aliás, de sua própria bodega, instalada com um estoque grande de tudo que era marca de aguardente. O tempo foi passando e o artista bateu com o carro, perdeu o celular e foi vendendo tudo, da mercearia às casas alugadas. Perdeu a moradia reformada e bela, numa briga com os irmãos, donos que eram do terreno. Ficou pobre outra vez, sem eira nem beira, na miséria como sempre esteve.
(*) E a história foi contada e a publicação pedida por Edvaldo Ferreira de Lima, motorista no NUSP/UFPE, o meu lugar, leitor deste Blog. Mas, há os necessários acréscimos da ficção, para se administrar o espaço disponível e para se oferecer um certo ar de graça ao relato.
Certa noite teve um sonho que lhe impressionara. Não era homem de ficar matutando com esses cenários oníricos, criados pelo inconsciente, que os psicanalistas interpretam usando o chamado conteúdo latente do discurso de cada um dos clientes. Ficava mais com a doutrina dos astrólogos ou mesmo aquelas mais simplistas, a dos bicheiros, que enxergam cada uma dessas divagações do sono de cada dia como uma indicação para o tão desejado sonho. O de ganhar dinheiro e ficar rico. Foi ao bar e fez a costumeira solicitação ao balconista de ocasião:
- Uma lapada e a música 3 do disco de Luiz Gonzaga!
A resposta veio em seguida, com toda a serenidade do mundo:
- A música, seu Lábios de Mel, eu não posso tocar, o meu avô morreu ontem!
Ao que respondeu o interlocutor, não sem antes tomar a lapada que pedira:
- E ele levou o disco? Foi? Foi?
Afinal, ao que as evidencias indicavam, o figurante não tinha entendido que o rapaz do balcão guardava o luto, um sentimento ainda existente nas cidades do interior de Pernambuco e nas periferias da metrópole. Veste-se o preto ou leva-se na roupa um sinal com essa cor, as festas estão desautorizadas e a musicalidade mundana afastada dos ouvidos. Quando muito, um canto de igreja ou uma sinfonia bem cuidada. E nada mais. O valente senhor, no entanto, tinha sonhado com um galo, a cujas dezenas deveria se prender (49-50-51-52), sem saber que fora o Barão de Drummond o inventor dessa loteria diferente, inusitada. Há quem sonhe com mulher e jogue na vaca ou quem sonhe com determinados artefatos presentes na cabeça de certos animais ungulados e jogue no touro. Ele não, estava fixado no galo, fora com o bicho penoso e sempre atraído pelas frangas do galinheiro, que tivera a sua inspiração matinal. Mas, dinheiro não tinha!
Bateu palmas no vizinho, seu Manoel da Bezerra e lhe pediu o dinheiro. Havia na outra esquina uma mocinha vendendo desses bilhetes novos, que sorteiam de uma só vez R$ 50.000,00 e mais 5 carros. Explicou tudo isso ao morador parede-meia, prometeu-lhe um carro, com toda a certeza dos números e de sua noturna divagação do inconsciente das coisas. Não havia jeito, o mês estava nos meados e as economias do salário, da aposentadoria da previdência, rareando já. Mas, Lábios de Mel insistiu tanto que o empréstimo saiu. E ele comprou o bilhete que esperava, saiu dali e foi guardar sob o travesseiro da cama. Escondeu o danado do papel; do papel e do número. O domingo ia chegar e ele tinha quase certeza que ganharia o prêmio
No dia marcado ligou a televisão e foi acompanhando o desfecho, prêmio por prêmio. E deu o bilhete dele no sorteio principal. Resultado: fora aquinhoado com R$ 50.000,00 e mais cinco carros de boa marca. Bateu forte com a mão espalmada no balcão da bodega e disse a frase mágica: “Ganhei na loteria. Bota uma lapada e a música 3 de Luiz Gonzaga! Vai ali e chama o seu ‘Manoel da Bezerra’!” O luto foi rompido, a radiola velha deixou sair os acordes da sanfona mágica e a voz do grande mágico do forró nordestino levou pelos ares o velho baião: “Nem se despediu de mim”. E a aguardente serviu para lembrar um amor antigo que fugira, sem despedidas, que já chegou contando as horas.
Lábios de Mel ficou rico. Deu um carro ao Manoel da Bezerra, vendeu três dos seus e passou a desfilar com o quarto, comprou três barracos na Vila Arraes, montou uma mercearia, que era também um bar e passou a freqüentar o clube do bairro, dançava até a madrugada com a Nega Velha e tomava todas. Tomava todas, aliás, de sua própria bodega, instalada com um estoque grande de tudo que era marca de aguardente. O tempo foi passando e o artista bateu com o carro, perdeu o celular e foi vendendo tudo, da mercearia às casas alugadas. Perdeu a moradia reformada e bela, numa briga com os irmãos, donos que eram do terreno. Ficou pobre outra vez, sem eira nem beira, na miséria como sempre esteve.
(*) E a história foi contada e a publicação pedida por Edvaldo Ferreira de Lima, motorista no NUSP/UFPE, o meu lugar, leitor deste Blog. Mas, há os necessários acréscimos da ficção, para se administrar o espaço disponível e para se oferecer um certo ar de graça ao relato.
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