Em mureta de contorno de prédio construído em dias da modernidade já, no Bairro do Recife, onde tudo remete ao passado, a velha prostituta fiava conversa com parceiro, igualmente, antigo, resgatando pretéritos. De cabelos ralos e louros, às custas da milagrosa água que doira o piloso manto feminino, dando graça às moiçolas em flor, vestiu-se com o melhor que dispunha e se cobriu com longo casaco de frio, prevenindo-se do malfadado vento encanado, nascido nas entranhas do porto. E com uma toalha muito usada de se enxugar no banho, recobriu as pernas, isolando-se, dessa forma, do mundo todo. Tinha a pele vincada pelas marcas dos caminhos e dos descaminhos, sulcos dos espinhos, sem a trajetória dos ganhos. Mesmo assim, recebeu o senhor de tez negra, vindo, por certo, das periferias urbanas para aquele centro mais do que citadino, recuperado, agora, graças às interveniências do alcaide, acolhendo-o na sala de visitas do recanto, um canto, então, de muitos encantos. Viajaram no tempo, em busca das histórias vividas e revividas naquele instante mágico do reencontro, aprazado às vésperas, para que fossem recuperadas, na distância dos anos passados, vivências e convivências a dois, na alegria sepultada, hoje, em tumba das saudades. Lembravam de tudo, das ambiências e dos amores, das músicas e das dores, dos afetos e dos desafetos, de afagos até, nascidos no embrionar dos sentimentos, ao som da música lenta ou dos acordes de um tango qualquer.
Testando o velho parceiro, sua memória dos tempos idos e sua capacidade de fixar momentos, indagou se lembrava em detalhes das noites no Chanteclair? Ora, respondeu, como esquecer daquilo tudo, da radiola de fichas tocando, dos pares se abraçando em rodopios no salão e das escapadelas aos quartos, para um quarto de hora, que fosse, nos enlaces desses amores de ocasião! Jamais! Tanto é, complementou, que antes de estacionar o veículo de se que vale nesses dias que correm, depois de anos e mais anos de trabalho, circulara por lá, nas imediações da antiga casa, sem poder ouvir os acordes dos antanhos, exauridos, como estão, nos ares das lembranças. Mas, deixou o toca-fitas do carro executar Gardel! Escutou a tudo, com a atenção que a ocasião exigia, sentindo uma lágrima rolar pelo canto da face e pôde reviver os anos! Pôde rever marinheiros vestidos com a pureza do branco, tomando pelas mãos as damas de então e no largo salão das danças marcando os passos do ritmo, em amplexos precursores dos gestos, dos atos e dos fatos sobretudo. Onde andará toda essa gente, perguntou? Aparecem por cá, vez ou outra, como fazia ele próprio, ampliou a indagação? Não, senão raramente, respondeu a mulher! Muitos estão postos no muro das lamentações, tomados pelos achaques da vida e outros aposentados do tudo e do todo, dispensados assim dos outroras da vida!
E as companhias femininas daqueles anos, indagou mais uma vez? Desejava recompor as cenas, buscando nas coxias do hoje figurantes tão ativos de alegres encenações. Sabia de uma ou de outra, apenas! De Maria da Anunciação tivera conhecimento de logo, quando nos idos de sessenta deixara a casa e a zona por Antônio Maria, embarcadiço de passagem, enlouquecido pelo porte da morena matreira! Mulher de feições largas, rechonchuda de corpo, fazia com as cadeiras o acompanhamento cadenciado da música solta nos ares, de um bolero, que fosse, como se de seus quadris emergisse a batuta de um maestro ou de um samba moroso, parindo saudades! E Maria Pureza, acrescentou, que só tinha pureza no seu sobrenome? Merecedora do cognome porque pecava, mas pagava a penitência, devidamente, segundo os preceitos e dentro do que lhe mandava o cura da Matriz. Contava, ajoelhada, as proezas todas das noitadas na zona, incitava até a certos devaneios o jovem padre, mas aguentava o repúdio das leis, feitas pra reis, dizia muitas vezes, não para a fragilidade da carne de mulheres simplórias, como ela mesma. Casara, soubera, fixando-se em cercanias do Mercado Público pras bandas de Afogados e no bairro não aparecera mais, apagando as lembranças e as faltas!
E quando a hora avançou, o parceiro de velhos e já muito distantes anos, levantou-se. Afinal, tinha casa e tinha filhos, grandes é bem verdade, barbados todos, mulher a quem cuidar e netos a quem mimar! Tirou do carro um saco de pipocas e deu à companheira de seus pretéritos, ligou o motor, manobrando o veículo e lá se foi, para a rotina da vida. A loura se assentou no banco da praça, enrolando-se, mais uma vez, com a toalha de banho e tirando as pipocas do saquinho, uma por uma, mastigou a solidão desadorada, lentamente! Pra não se dar por vencida ou pra não perder os hábitos daqueles pretéritos, chamou pelo nome o flanelinha da esquina, menino nos seus vinte anos, convidando-lhe ao deleite de sua alcova carcomida, mas de todas as experiências. Dispensou resposta e só, sempre só, aguardou o movimento exaurir-se, para se exaurir, também, na finitude de seus tempos!
(*) - Um texto escrito há mais de uma década pra trás, quando o Bairro do Recife - o Recife antigo - tinha sido restaurado recentemente e vivia dias de muito movimento. Gente circulando pra lá e pra cá! Comente o leitor, sendo ou não sendo pernambucano. O faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com
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