sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Criado com Vó

Os meus leitores sabem, de cor e salteado, que fui criado com Vó. A minha avó paterna morava conosco, ela e uma irmã, a tia velha, como chamava. Ela, reconheço de bom grado, me adorava, não podia ver nada que me incomodasse, um carão ou um castigo das determinações paternas; mãe e pai sempre ciosos de minha educação, embora inquietos com o meu próprio futuro, inseguros, talvez, com as orientações que me davam e o meu desiderato de vida: levado da breca como era. E quando a minha avó, Beatriz de prenome, descobriu que eu estava namorando uma moça de minha rua, não suportou a precocidade do neto, aos 13 anos incompletos:

- Nilo! É o seguinte: Geraldo está namorando uma moleca de rua, que pinta os olhos.
 
O meu pai ficou meio atordoado, por certo não estava, ainda, preparado para a iniciativa do filho, a de namorar a jovem, linda como era, e sobretudo uma pioneira nas coisas femininas, capaz de se maquiar com um traço na pálpebra. Não era moleca de rua, era uma moça precoce, também, nas coisas do amor e das paixões, com quem namorei sete vezes e sete vezes ela acabou. Eu ficava tristonho com a ruptura e dois ou três dias depois ela ligava a radiola e fazia o vinil tocar Diana: “Não te esqueças meu amor/Que quem mais te amou foi eu/ Sempre fui o teu calor e minha alma aqueceu...”. E eu, feito um bestalhão, subia na janela do banheiro e prometia voltar. Ou ela fazia o equipamento antigo tocar: “Volta/Vem rever nossos jardins/Vem amor...". Era um fuzuê do cão, porque logo em seguida íamos passear de bicicleta no quarteirão. Numa das vezes, lembro-me bem, havia prova de História do Brasil no outro dia e eu tinha que ler a matéria no livro de Borges Hermida. Era tudo ou nada, tinha que decidi! Resultado, tirei zero.

Fui convocado para uma reunião no gabinete de meu pai e ouvi uma das mais sérias reprimendas de minha vida. Coisa mais ou menos assim: “Eu sou professor de história e você tira zero em sua prova? O que dirão os meus alunos? E os meus colegas?”. Eu ouvia calado a repreensão e achava que ele tinha mesmo razão. Prometi melhorar pela décima vez, talvez, e não houve jeito.  Assim que eu era escalado para ir ao túmulo de Dom Vital, sobre quem o meu pai vinha estudando; ir ao túmulo para pedir, de mãos postas: “Dom Vital: fazei que eu melhore, meu pai não aguenta mais!”. Eu não entendia bem porque ele não aguentava, mas não cabia perguntas ou indagações, cabia fazer e fazer era rogar ao bispo a graça da melhora. E eu nunca melhorei! Eu tinha horror ao padre, quase um santo, por não atender aos meus pedidos e depois ficava com a culpa desses horrores.
 
E a pobre da minha avó – coitada! Deus a tenha! – plantava as mudas de mamoeiro no quintal e todos os dias cuidava em regar mudinha por mudinha. Pois no futebol da tarde, quase sempre, a bola quebrava uma dessas plantas. Eu corria e mais que depressa fazia o reparo com fita adesiva. É claro que nunca obtive êxito nessa tentativa de restaurar. E ela, com a sua vista curta, reduzida pela catarata, ainda dizia: “Parece que está murchando!”. Mas, se contentava em saber que na verdade sentia a mudança de lugar, a troca do substrato. Certa vez, estava lá por casa Moisés, meu amigo de infância ou seu irmão, Mozar – Mozar sem o “t”, insistia -, igualmente amigo e um canário caiu morto às custas de um tiro de bodoque. Minha avó deu a perereca, mas um deles foi em casa, trouxe outra ave e tendo colocado dentro de uma quenga de queijo do reino deu umas pancadas e considerou o pássaro ressuscitado. E a minha avó aceitou o milagre.
A última história já contei por aqui, mas vale a repetição. É que o meu pai estava dependendo de uma nomeação do governo e o ato sai hoje, sai amanhã, nunca sai. Ela me chama e diz: “É a pombinha que você está criando! Ela dá azar!”. E eu triste, quase assumindo o dano, ainda indaguei: “A pombinha? Não! Não é! Não tem nada a ver!”. Mesmo assim dei o bichinho e no outro dia, creia o leitor, a nomeação foi publicada e paz voltou a reinar. Eu ainda perguntei se podia buscar de volta a pomba, mas ela foi irredutível: “Não! De jeito nenhum! O seu pai vai perder o emprego!”.
 
(*) E o menino levado da breca, traquino, peralta, hoje está se preparando para lançar mais um livro - o último - do historiador ilustre que foi meu pai. Ninguém imagina o quanto aprendi com a leitura e as várias releituras de "A Revolução Peregrina e Outros Estudos". Fiz diversas revisões. Foi bom ter feito isso, tomar essa iniciativa, porque pude introjetar mais ainda o quanto de saber havia naquela criatura: meu pai. O leitor que comente e o faça aqui mesmo no espaço do Blog ou escreva para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com  

Um comentário:

  1. Geraldo,

    As suas crônicas, contando das suas lembranças marcantes, são gostosas de se ler.
    Têm um tom espirituoso que dão ao leitor uma suavidade e uma leveza muito atrativas
    Ótima, irretocável!

    Eliana

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