terça-feira, 14 de outubro de 2014

Perpétuas Lembranças

Quando o sol vai raiando no horizonte, em dias assim, de nuvens nos céus e chuva no chão, por aqui já me alevanto e sendo um domingo, como hoje, depois da leitura dos jornais, tenho tempo para os meus sonhos. Vejo no monitor a pureza virginal do editor de textos e enxergo n’alma os meus sentimentos e as minhas saudades. Descortino os anos e as décadas que se foram, encantados nas brumas das lembranças e vou preenchendo este vazio com vocábulos e frases que se juntam e se abraçam quase, para exprimir de meu imaginário os devaneios.
Os velhos de minha infância morreram todos, carregaram com eles os afetos com que me tratavam e não deixaram o derradeiro afago. A minha avó paterna, Beatriz de prenome, gorda e matrona, escondia as peraltices com que preenchia o meu tempo de menino. A tia velha, Deolinda, nascida na noite de Natal, zangava-se quando se dizia que tinha a idade de Cristo. E a tia mais nova, viúva e mártir das imolações de um filho deficiente, não concordava com certos e fortuitos amores domésticos, mas nunca denunciou as cenas que testemunhara.
O meu avô, com o seu cabelo cor de prata, levava açúcar-cande nas manhãs de domingo, prometia o pavão dourado a quem raspasse o prato, mas nunca trouxe essa ave imaginária. E a minha outra avó, Laurinda, como se chamava, não teve mais tempo de me oferecer um retrato de meu bisavô, de quem tenho a sobrancelha, dizia. Agora, o denso traço negro de minha fronte esvaneceu, perdeu a cor e o viço, nada mais representa de genético ou de hereditário. Os meus tios e as minhas tias se despediram da vida, em maioria e estão nas distâncias infinitas, na outra dimensão, então.
E o meu pai, que me viu nascer e crescer, que assistiu o meu desenvolvimento pessoal, também se encantou, foi morar nos confins eternos. Quase posso dizer que se despediu de mim, naquela noite derradeira de tanta insônia e tão sem graça mais. Tinha o que me dizer, ainda, mas deixou para um vespertino encontro, de cuja impossibilidade não foi culpado, entregou-se antes. Nada posso imaginar das suas intenções no aprazado diálogo pra logo mais, à tarde, senão algum comentário sobre as minhas crônicas neste JC, como costumava fazer. Não use esse advérbio ou esse adjetivo, poderia ser! Quem sabe?
Desapareceram, da mesma forma, as pessoas com as quais convivi em criança, os amigos de meu pai. Todos ou quase todos! Sylvio Rabelo e seu irmão, Dácio de prenome, Mário Melo e Gilberto Osório, o mestre Ascenso Ferreira, um grandalhão, com um chapéu de abas largas e um vozeirão de arrepiar, com medo das caiporas: “...Ali mora o pai da mata/Ali é a casa das caiporas...”. O padre Sales, camareiro papal, celebrante agoniado de quinze minutos, somente, sentado no alpendre de casa a discutir e debater o embate eleitoral na faculdade, tornando-se diretor por dois mandatos, orgulhoso do cargo de Deão.
E os mais simples convivas, aqueles das ruas e dos becos, dos labirintos da vila da tecelagem, em cujas ruelas experimentei o lúdico desse exercício do existir? Penso que se foram, em grande parte, viajaram, definitivamente, para as moradas eternas! Onde estará o cantor das calçadas de meu bairro, Sabará por apelido, que entoava em voz sonante: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco encontrar/Aquela ingrata...”? Seria essa a razão de suas incursões etílicas? A perda de um amor? Chorava assim a ingratidão que sofrera? Talvez sim ou talvez não!
O seu Pedro da banana cortou uma perna, do homem que vendia laranjas num saco de açúcar, não tenho notícias, tampouco do mascate, com a sua carroça de um azul desbotado, preenchida por gavetas, nas quais trazia a linha de cozer e o novelo do croché de minha avó. Do homem da galinha, a cavalo, com dois caçoas repletos dessas penosas sabáticas, sequer imagino o destino. E o vendedor de amendoim, com a farinha saborosa embalada em cônico invólucro de papel de embrulho? Não sei! Essa gente fez parte de minha vida e desapareceu por encanto!
Mudaram os atores e trocaram os cenários! Vou fazendo a minha parte, somente!

(*) Um texto muito antigo, um tanto nostálgico, lembrando das pessoas com as quais convivi e que se transferiram para as distâncias eternas. Confesso que sou favorável àquele escritor - creio que Origenes Lessa - que insiste em recomendar como pano de fundo da escrita o sofrimento. Já escrevi bem, quando sofria, agora que não tenho sofrido mais está difícil criar. É o que sinto!
 

2 comentários:

  1. Geraldo: Verdade, existem lembranças que se tornam eternas companheiras.
    Você com o seu dom de escrever, diz bem sobre cada um dos personagens que passaram pela sua vida e deixaram, como se pode notar, marcas e saudades!!!!
    Gostei muito, como sempre. Parabéns..Bjs, Eliana Pereira

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  2. Caro Geraldo:
    Hoje fiquei muito mais emocionada com a sua crônica. Vai ver é justamente esta certeza que temos que tudo passa. As coisas, as pessoas, a vida...
    É preciso se ter cada vez mais coragem para seguir adiante. É imprescindível continuar. Ainda bem que temos o poder de guardar as passagens boas, no invólucro do coração, eternizadas pela memória da saudade e pelas escritas que fincarão morada nos livros da vida. Que estes, sejam lidos para que os mais novos saibam, e quiçá aprendam, como é fácil saber amar. E como era simples ser feliz. Obrigada, pelo prazer da leitura de tão nobre sentimento. Um abraço!

    Lígia Beltrão - Colunista Divulga Escritor, Cálice Literário (Mosqueteiras Literárias), Facebook.

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