sábado, 31 de março de 2007

Pé de Jucá

Todos os dias está por lá, no seu espaço de trabalho, por trás de um balcão no 4º andar do Hospital das Clinicas, atenciosa, delicada e solícita. Nunca se negou a servir um cafezinho e nunca deixou de trazer o copo d`água do aplacar das sedes que se instalam nas reuniões e nos encontros; bendita água, que tantas vezes quebra o gelo e aproxima as pessoas e junta as instituições. É medrosa, corre das almas perdidas que vagam nos corredores hospitalares – é o que se diz e o que se pensa –, não entra em cemitérios e passa bem longe das assombrações e dos fantasmas. Fica arrepiada se o interlocutor de ocasião fizer uma referência à comadre fulozinha. Margarida, de prenome, dia desses me surpreendeu, contou-me a história inteirinha de suas origens indígenas e ainda me pediu que contasse por aqui, neste espaço de mídia. É o que faço, então!

É nascida e criada nas terras secas dos contrafortes da Borborema, me disse, pras bandas de Campina Grande, numa localidade com o nome de Boi Seco. Ouviu e prestou sempre muita atenção aos mais velhos fiando conversa, daí ter aprendido e entendido de onde veio. É que o seu bisavô, caçador como era, saia pro mato quase todos os dias cercado de cachorros adestrados para acuarem uma onça ou um veado, uma seriema, às vezes. Desse esforço misto, ao mesmo tempo humano e canino, sobrevivia a família. Certa vez, porém, numa briga com uns índios da região, os cães acuaram uma criatura no alto de uma árvore e a surpresa daquele homem rude dos sertões paraibanos foi enorme: era uma indiazinha de três anos se muito. Um ser humano primitivo aquela criança, quase agride o caçador com as unhas.

Trouxe a menina pra casa e os hábitos domésticos foram sendo passados aos poucos. Foi preciso no começo, enfatizou Margarida, amarrar a criança no pé da mesa, para conter as intenções, justas e esperadas, de uma fuga imprevista. Só queria comer carne crua e enjeitava a comida de panela, o nosso dia-a-dia na mesa. Mas, como fez questão de expressar no diálogo: “Foi ficando domesticada.”. Certa vez até, tendo sido trancada num quarto, enquanto a família saia a um dos costumeiros passeios do interior – uma missa ou uma quermesse, uma volta na rua ou um deforete na praça – fez com as unhas um buraco na porta e quando voltaram a cabeça da mocinha já passava pela brecha que conseguira abrir. Frustraram, todavia, o desejo da volta, do retorno às origens. E civilizaram a índia. Um tempo diferente, de bichos e índios no meio do mato. Hoje, nem os animais correm soltos e os nativos que restaram vestem calças jeans.
Mas, o interessante de tudo isso e ai a árvore genealógica de Margarida se configura melhor, foi que o seu avô, filho do caçador de onças, veados e seriemas, do homem sempre arrodeado de cães, apaixonou-se pela garota e o namoro nasceu nos entornos da moradia. Vai pra lá e vem pra cá, saiu o casamento nos 13 anos da menina e em 1913 – duas vezes o número 13 – nasceu o pai de nossa miscigenada figurante, protagonista também deste relato a pedido escrito e a pedido divulgado. A indiazinha, como ainda hoje é tratada, atravessou bem a chamada “fase de doutrinação”, justificou a senhora descendente desse povo das florestas, tornando-se um ser humano civilizado. Casada e mãe de filhos, avó de outros tantos netos e agora bisavó, se viva estivesse, de descendentes que misturam a arte do arco e da flecha com os hábitos da gente considerada no ápice do desenvolvimento, sob forte estresse geralmente.

E desse casal nasceram homens e mulheres hoje acima dos cem anos, resistência adquirida nas caatingas, com leite de cabra e carne de bode, livre ou quase isenta das inquietações de um cotidiano buliçoso, de um consumismo desenfreado e de um materialismo que ultrapassa o simplesmente humano. Vivências e convivências sem a solidariedade que aparece até nos animais, no macaco que coça a cabeça da companheira ou da fera que lambe o filhote depois que nasce. E sob a promessa de conhecer essa gente interiorana, nunca exatamente velha, porque apenas antiga no tempo, encerrei a minha conversa e voltei com a missão de rascunhar estas linhas.

E foi desse episódio num pé de jucá, madeira que o cupim não rói, do dizer de minha mãe e depois de Ariano, que surgiu Margarida!

pereira@elogica.com.br