domingo, 11 de abril de 2010

Tempos de Seminário

Aquela cela estreita e úmida em que dormia as minhas noites de adolescente era o palco dos meus horrores. Ninguém devia permitir que um menino – tão menino como eu era – fosse mandado a um seminário para estudar e ser sacerdote, como queriam os meus. Aquele mosteiro em que fazia os meus estudos menores, parecia um velho castelo abandonado em meio a um mundo do pecado se espraiando e contaminando cada uma das moradias do entorno. Eu mesmo sabia do quanto a Dona Monteiro falhava em relação às obrigações conjugais que tinha. De minha janela, tantas vezes, a vi receber em casa o padeiro da esquina, trancar-se com ele no quarto da frente, permitindo-me vê-la na réstia em seu vulto abraçado com o Teles, padeiro e amante. Que coisa! E todo domingo vinha à Missa com o marido, de braços, como se fossem felizes na mesa e na cama.
O meu Diretor Espiritual é que era ainda mais estranho, bem diferente do que poderia esperar de um homem tido e havido como santo, pois que ouvia essas histórias e queria detalhes, estimulava que os fatos fossem repetidos, sob a alegação de que o pecado ensina, promove o aprendizado do bem, o arrependimento nega o mal e cura alma. Eu morria de remorsos e de culpa com as cenas que divisava de minha janela, mas a cada noite fazia uma vistoria, como se fosse responsável pelo levantamento da vizinhança toda. O Padre Bernardo chegava a propor que ficasse a noite inteirinha pendurado em meu visor e lhe fizesse no dia seguinte um relatório completo de tudo e de todos. Descobri, depois, que era também o confessor de Dona Monteiro e fiquei entendendo as razões daquela curiosidade inusitada. Fazia, na verdade, imaginei, um encontro de contas.
Um dia eu também seria confessor dessas beatas do entorno e as ouviria em confissão auricular, sussurrando as mazelas todas da vida, o que faziam e o que não faziam, o que gostariam de fazer e não podiam e o que podem fazer e não chegam a materializar. Ia pedir, como o Padre Bernardo pedia, detalhes de cada uma dessas faltas da carne e assim, cumprindo a missão sagrada do sacramento da penitência, viajar pelos pecados todos dessa turma da vizinhança. Mas, eu sabia que não ficaria no Seminário, propriamente, sendo do hábito e dos costumes a transferência, tão logo ordenado, para uma paróquia qualquer no interior do Estado, distante desses confortos da Capital e longe dessa perseguição do Diretor Espiritual, como o meu, o padre Bernardo, interessado mais no fato como forma de se narrar o ato, do que na gravidade do gesto.
Dona Monteiro era uma mulher de predicados físicos incontestáveis. Nos seus 35 a 37 anos, bem cuidada e bem parecida, de ancas largas, como cabe ser às mulheres pródigas. Os seios, então, eram de uma tentação só, pois que fartos e ao que parece duros, apontando na direção do horizonte das coisas. Bem fazia o padeiro Teles, dispensando-lhe afetos e afagos todas as noites, quando Seu Antônio – Toinho de Zefa como era conhecido –, recolhia-se, depois de encher a cara com a cachaça forte de Euzébio, o dono do bar, o bar da esquina, em frente à praça. A sombra da criatura no quarto da frente mostrava o pecado sendo curtido e no entender do Diretor, quanto mais visto melhor compreendido, uma lição, então, para mim, neófito nessas cenas da intimidade alheia. Até de minha própria intimidade quase nada sabia, nem poderia saber com tantas regras a serem seguidas.
Tomar banho vestido em camisola comprida só no século XIX se via. E à noite dormir trancado pelo padre do dormitório, como se fosse uma fera presa na jaula, só no jardim zoológico. Precisava sempre de minhas férias regulamentares, de voltar a Carpina, lugar em que nascera e me criara, para retomar a vida com as normas mais relaxadas, menos rígidas, menos impositivas. Precisava, sobretudo agora, quando a idade parecia mexer com as minhas entranhas. Doze anos incompletos é tempo de sofreguidão, idade do despertar das coisas e dos instintos. E o mês de julho estava chegando, as provas semestrais terminando e eu me arrumando para tomar a sopa e retornar ao lar paterno/primeiro e derradeiro abrigo. Ia ver, outra vez, meu pai e minha mãe, meus irmãos e meus tios, minhas tias também. Deus que me livrasse das tentações com essas tias às vezes libidinosas. Libidinosas, mais com a gente de batina que com os civis do lugar. Ia correr pelas pradarias, passar por entre os roçados. O milho crescendo por cima e o feijão ramando por baixo.
(*) - Um arremedo de conto. Como se diz de hábito, ninguém inventa a ficção, reinventa-se a história e cria-se a narrativa. É mesmo ficção. Tive vontade de ser padre, mas o meu pai, numa lucidez impressionante, recomendou: "É cedo! Aguarde mais um pouco!". Teria sido um desastre como sacerdote! Sou um admirador eterno do jeito feminino; do jeito e do requebrar. É por ai! Comente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com