domingo, 4 de novembro de 2007

Mordomia Extravagante

Um amigo meu, muito sério e muito puro, integrante, aliás, da confraria dos Veranistas Descalços de Pau Amarelo, se bem que meio distanciado do papo e da areia da praia, me contou uma suficientemente capaz de fazer o leitor cair para trás mais de trinta vezes. Disse que residia perto de um motel aqui mesmo no Recife e embora para as bandas do recanto do amor não olhasse, senão com os olhos do perdão, mas anotou fatos e casos dignos de registro. O mais extravagante eu conto agora.

De hábito, às segundas, quartas e sextas, no pátio dessa moderna casa, na qual se pratica o exercício do amor, estacionava uma ambulância e dela saía um casal, o motorista e a atendente, invariavelmente. Ora, sendo o veículo alto, grandalhão, não havia como se acomodar numa das garagens de prédio assim, cujos cômodos têm destinação tão específica. Ficava ao sol, expondo o letreiro vermelho, cor de sangue, a sirene com a luz encarnada e a placa oficial.

Com as medidas saneadoras do uso e do abuso de carros do governo, o ilustre amigo resolveu meter o bedelho na questão, isto é, interrogar o motorista sobre as incursões que fazia ali, em tempos como esses, de tantos rigores. Queria, também, detalhes a propósito da morena bonita, faceira, tipo dona boa dos anos 1950, assídua, de igual forma, naquele lugar. O barnabé municipal justificou-se como pôde, dizendo que fazia viagem longa e estafante, do Agreste até aqui, agüentando o frio de manhã cedo e o calor o resto do dia e quando chegava ao Recife, depois de se desobrigar dos doentes, desejava sombra e água fresca. Escolhera o motel por ser mais isolado, mais aprazível, lembrando um pouco, pelo menos por seus jardins, o recanto agrestino onde nascera e agora vivia. Admirava, também, a tecnologia avançada do videocassete e de outros aparelhos mais, os quais não chegaram, ainda, para os lados em que morava. No lugarejo em que sobrevive, explicou: “Não havia motel e muito menos filme com enredo erótico.”

Conversa vai e conversa vem , à sombra de um Ficus benjamim, na beira da calçada, confessou a sua paixão pela morena de belos contornos. Era casada e bem casada, além de ser carinhosa e bem apetrechada. Mas, em cabine de ambulância, viajando pra cima e pra baixo, léguas e mais léguas, não há quem resista a uma conversa bem fiada. Conhecia outros casos, envolvendo sempre motoristas do Agreste ou do Sertão. Nunca com a gente litorânea ou com o povo da Mata. Não que seus colegas do litoral, os matutos criados com cana-caiana sejam desprovidos da arte de fiar conversa ou que as mulheres sejam feias e pouco atraentes. A pouca distância, o trânsito engarrafado e o movimento exagerado atrapalham o papo, botam gosto ruim na conversa. Assim, tomou-se de amores pela morena e passou a bater ponto naquele motel. Chova ou faça sol, às segundas, quartas e sextas aparece por ali. Vai tomar um deforete da vida puxada que leva.

É isso aí, amigo leitor, se a moda pega, vamos ter camburões da polícia, carros de bombeiros e até veículos funerários fazendo ponto em motéis. Já pensaram num rabecão com o coveiro e a zeladora do cemitério, estacionado no pátio de casa assim, especializada em amor? Das duas uma: ou os motéis se adaptam, construindo grandes garagens, verdadeiros galpões, ou os administradores públicos tomam jeito. As mordomias federais estão se diluindo, ao bater do martelo, mas ficaram as periféricas: as estaduais e as municipais.

(*) Texto escrito há cerca de 15 anos atrás, quando o Governo Federal resolveu disciplinar e fiscalizar o uso dos carros oficiais. Comente também para pereira@elogica.com.br

(**) - Desde já convido a todos para o lançamento de meu livro - Fragmentos de Meu Tempo -, no dia 22 de novembro, a partir das 20 horas, no Memorial da Medicina. São artigos e crônicas publicados no Jornal do Commercio, do Recife, falando de minhas lembranças e de minhas saudades. Tratando de meu dia-a-dia, de um cotidiano feito em palavras agora. Ficarei satisfeito com a presença. Ao final será servido um coquetel simples.