No primeiro raio de sol, o sabiá-gonga dessas paragens ensaia os acordes das lembranças, cantando saudades da fêmea que se foi no ontem do tempo! E na outra árvore, um bem-te-vi de penas doiradas grita o trinado das distâncias, convidando a companheira para os amores do dia! Vez ou outra, um canário-da-terra estrala num galho qualquer, resgatando aos meus ouvidos a melodiosa sonoridade da infância. E o galo do terreiro de junto saúda as galinhas poedeiras! Assim, me alevanto, espantando os fantasmas, que nas inquietudes das noites vão parindo os sonhos e forjando devaneios, realizando, afinal, desejos e vontades. Afugento as insônias, que sempre me fazem perder as horas! Da varanda vou anotando a rotina das madrugadas, vendo a gente que passa, uns em direção ao trabalho já e outros buscando o lazer do parque; gente branca e gente negra, gente amorenada da pele, cada qual com seu destino.
0 homem da padaria trafega em bicicleta muito antiga, carcomida pela ferrugem. Vai parando e atendendo aos peões das construções, pessoas que fazem os prédios subirem para o alto dos céus, mas que não podem dispor de moradias assim, novas e sofisticadas. Moram, na verdade, nas periferias insalubres! São várias as opções, do bolachão ao pão doce ou do francês ao crioulo, à preferência do freguês e a depender do vil metal. Tudo para acompanhar o café matinal, que pode ser tomado com o cuscuz de rua, de cujo apito afloram outras lembranças. Só não há mais quem venda o mungunzá de bom milho, trazido à cabeça em latas de flandres bem fundido. Ou não ha mais quem venda os bolinhos de bacia, transportados em depósitos de madeira envidraçada. Desapareceu, também, das ruas do Recife o entregador de leite, que deixava nas casas, muito cedo, um litro do precioso líquido.
As sete horas, precisamente, começam as atividade dos
pedreiros e dos ajudantes, uns aqui e outros ali, todos juntos no mister de levantar
paredes no caminho das nuvens, massas brancas do infinito, guardiãs fieis das
fantasias e dos sonhos, de quem vive e sobrevive dessa maneira, embalando o imaginário.
E o prédio vai tomando forma, compondo a paisagem urbana com a frieza do
cimento, limitando espaços internos para as habitações da modernidade, umas
sobre as outras, como se fossem gaiolas empilhadas, contadas as dezenas, de
quatro pra cima. Permito-me, então, a reflexão da hora! Penso nos que moraram
por aqui no antes dos anos, cujas casas tombaram à força da impiedosa da
picareta. Foram felizes? Amaram e foram amados? Quem sabe? Pouco se conhece
dessas antecedências, senão um ou outro detalhe! As oito, entretanto, tomo o
elevador e me ausento desse cotidiano e dessas rotinas. Perco o resto do dia!
Afinal, vou trabalhar, também!
Sei, podem, que alguns desses peões, à falta de um
acolhimento qualquer, se acomodam nas construções mesmo, quando a noite emerge
e o manto negro do tempo encobre o dia. Chegam de distantes paragens, fugidos
da seca, no domingo a noite, enquanto a burguesia assiste ao derradeiro
programa de televisão, desembarcando de jipes duros e desconfortáveis. Por
certo, no final da semana devem levar a féria para a feira e aproveitam a oportunidade
desses retornos para o rever dos amores e o afugentar das dores. Tudo vale a
pena/ Quando a alma não e pequena/..., disse o poeta, o maior de todos em língua
portuguesa. Vale à pena voltar, a cada sexta-feira ou a cada sábado, para a
largueza do completamente rural e retomar convívios. Por lá, com toda certeza,
ainda reina a paz dos anjos e há mulheres de olhos da cor da esmeralda, descendentes
de velhos europeus.
Ao final de cada jornada, no entanto, nenhum desses peões
dispensa a namorada, empregada domestica, pelo geral, dos apartamentos que construíram
nessa redondeza ou nesse entorno. Sentam-se na praça e no banco de madeira
pintado com a cor da pureza, roubam beijos e furtam demorados amplexos. Fazem
de conta que estão na festa da paróquia, girando no carrossel dos ares!
Recolhem-se, finalmente, nos improvisados recantos de oníricos encantos. E novamente
a madrugada chega, o sabiá-gonga expressa lamentos e o bem-te-vi grita
saudades, vez ou outra o canário entoa lembranças! Vou a varanda e declaro
silente o recomeço do meu tudo.