segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Pranto da Caatinga





O homem de estático semblante, sem a dinâmica que os traços da  face oferecem, recostado à porteira, como se fosse possível ao inteiramente inerte suportar o peso dos vivos, mesmo que os vivos sejam quase mortos, assistia ao drama que a terra passava. As plantas e os bichos em prolongada agonia da fome e da sede, a tombarem nos sertões sob os acordes mais do que fúnebres da seca desoladora. Do lado de fora da cerca uma grande árvore de galhos desfolhados parecia abrir os braços em súplicas dos horrores, clamando por água que pudesse sanar a secura das raízes ou sarar as feridas do calor abrasante. Sob o vegetal, morreu a vaca malhada, de couro branco e manchas negras que desenhavam o mapa de todas as desditas. E o predador dos céus, de um preto muito preto, um desses com a marca da realeza no encarnado da cabeça, desceu para cumprir o desiderato da hora: limpar o mundo das podridões e das carniças.
Rios que secaram e inúteis barreiros, leitos expostos aos ares do nada, infeliz momento da natureza chorando o pranto seco da caatinga, sem lágrimas! A mulher morena, de pele curtida, segurava nas mãos os filhos que tinha! Crianças tristonhas, de semblantes parados, olhando o infinito das coisas em busca de um sinal que fosse, de nuvens chegando. Nada para ver e nada para olhar! O caçador que armou a espingarda com a pólvora e o chumbo não encontrou a caça do dia e de volta pra casa, com o vazio no bornal, fez a mãe de sua prole cozer a palma endurecida e amarelada de antigo plantio. O mandacaru na panela deixou-se virar em baba, imitando a quiabada bem cuidada, alimentou a família e sufocou o grito enorme dos estômagos em contrações do oco. Há muito não se tem por cá, nessas bandas do Sertão, Canidé acima e Canidé abaixo, comida de gente que mate a fome. E na mesa do almoço, o menino de olhar pidão fitava o prato, absorto! O homem, então, sofre a metamorfose de sua natureza e em bicho se transforma!
O cavalo mais que esquálido, de costelas à mostra e de pernas cambaleantes, passou à frente do carro, atravessando lentamente a rodovia, buscando, na verdade, um lugar no qual pudesse expirar definitivamente. Entregar-se ao destino cruel do tempo e da hora! Ao longe, a égua e o seu filhote procuram na terra um resto de relva, do verde viçoso de um antes de esperanças nascentes, mas é a palha do chão que engana o herbívoro animal, adulto e velho, de cujas tetas não goteja mais o branco do leite. Resistem os carneiros, o bode e a cabra, mesmo que magros, sem a lã das friorentas paragens e de pêlos quebradiços, indeléveis marcas das secas vividas, da água faltando e do capim rareando. Se agrupam e o rebanho segue, investindo aqui e ali na amarelada penugem que ainda resta no solo.
Comem até pedra, explica o moço, justificando o pouco de vida na paisagem desgraçada dos sertões esturricados. O Velho Chico, porém, nas proximidades daquela secura, corre caudaloso e fértil, traz nas águas o húmus que faz a terra parir comida para alimentar a gente e o gado, para nutrir o homem trabalhador e o bicho pachorrento, a vaca e o boi, mas também a galinha poedeira e o peru de roda. Se à força da bomba a água sai e vai regar o roçado, cresce o quiabo e o milho brota, o feijão desabrocha e a mandioca mergulha nas intimidades do telúrico, a cebola ganha peso, cheiro e cor para temperar na cozinha a costela ou a cabidela, a buchada ou a dobradinha, o sarapatel de sangue pisado ou o fígado reluzente do criatório de casa.
Não é à toa que as experiências da CHESF mostram a valia da irrigação, complementando a geração de energia, dando à criatura a completude do humano. Engenheiros humanizados, inquietos com a natureza, insatisfeitos com a dignidade do homem das desprezadas margens do grande rio. Gerentes dos convívios, das vivências e das convivências tupiniquins!

Eis o pranto da caatinga, que é o choro dos sertões, que vi e que ouvi em minha viagem a Xingó! E ainda há quem fale desse Nordeste sofrido, de tantas mazelas e de tantos horrores!

* Crônica de uma viagem a Xingó. Um diário da paisagem e da gente simples nos caminhos de Canidé. Visões que tive de uma seca enorme, contrastando com a fartura das margens do rio São Francisco.

Comente o leitor aqui mesmo no espaço do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com A crônica é também publicada sempre pelo Jornal da Besta Fubana, em cujo espaço pode o leitor igualmente comentar.

A crônica vai oferecida ao meu ilustre colega Juracy Nunes, autor de Sangria de Risco, uma visão do sertanejo e ambientalista, habitante dos sertões esturricados.  

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Parição da Tarde

Bucólica manhã esta, a de um domingo qualquer, em tudo tropical. Ruas desertas de gente, sossegadas e silentes, como se o descanso se estendesse, também, ao inanimado urbano ou como se a brutalidade do concreto vergasse diante do bem maior: o dia consagrado ao Senhor. Sentado em cadeira branca, de plástico, sobre a laje de entrada da construção, o operário olha a avenida, preenche o tempo do ócio da prática que exercita, a de vigiar a massa de pedra e cal que ajudou a erguer, reunindo apartamentos nos quais hão de morar os remediados da sorte e os burgueses empedernidos. Durante a semana, vai sentando tijolo sobre tijolo, depois, reveste, com a massa fina e bem cuidada, parede por parede, sabendo que jamais poderá ser acolhido ali, naqueles cômodos. Estará condenado, sempre, às periferias insalubres ou aos distantes e sofridos rincões rurais.

O casal de idosos que chegou foi visitar uma das unidades, o chamado apartamento decorado, nunca inteiramente pronto. O operário levantou-se de sua tediosa pousada e acompanhou a dupla, passo por passo, com a lentidão da velhice. A boa idade, dizem alguns, escondendo as perdas, a falência do viço e a morte da beleza. O homem usava uma bengala para se apoiar, resgatando histórias ou estórias da infância, adivinhações da tia velha: O que é? O que é? De manhã anda de quatro! À tarde anda de dois! E à noite anda de três! A meninada já sabia, de cor e salteado, que era forma metafórica que a tia Deolinda aprendera para representar a criatura e as suas fases de vida, o engatinhar e a maturidade, em seguida a débâcle. Mulher sofrida, nunca casara e vitalina assim, como ficara, guardava nas lembranças a imagem do noivo morto na guerra. Na guerra? Sim, sempre guerra!

Os sanhaçus voaram de uma árvore à outra, a fêmea à frente, como cabe ser e o macho atrás, na protetora atitude. Pareciam bólidos da paz, tal a velocidade que alcançaram e tal o formato de corpo que assumiram. Duas flechas, quase, que sob os acordes matinais singraram os ares da rua. Do outro lado, pousaram e à sonoridade aguda de uma musicalidade sem par, ensaiavam o corruchiar das proximidades, formas carinhosas de seduzir que os homens perderam, por certo. Ninguém passa mais anos e anos andando de mãos dadas, roubando um beijo aqui e outro acolá, alhures também! Agora, é diferente: “fica-se”. E ninguém sabe direito o que é isso, sendo natural imaginar que não se trata de amor e que não pode ser paixão desesperada, que inquieta por algum tempo! Dantes, esses contactos demoravam anos para a completude. Era melhor!

E o operário voltou a seu canto, trouxe um papel branco e abriu com todo o cuidado, leu e releu, entendeu, certamente. Ligou o radinho de pilha e sintonizou na emissora que transmitia uma toada das saudades. Seria uma carta de quem ficou pra trás? Largada nos caminhos? Talvez! Essas manifestações do espírito, que no passado preenchiam os claros das aproximações, estão fadadas a desaparecerem, o computador e a rede vão condenando a forma epistolar de se expressar à simplicidade dos e-mails. Não se gasta mais tinta com declarações, pior com as rupturas. Fica-se e deixa-se, nada mais! Os namoros são virtuais, permitem às fantasias enfeitarem a imaginação alheia com adornos ou contornos que não existem, quando a realidade chega, tudo muda e a vida cai no cotidiano repetitivo de todos os dias.

Na moradia ao lado, a senhora está só. Mesmo assim, vestiu-se com uma blusa da cor da mostarda e uma saia preta, bem preta. Ficou bonita! Arrumada, como estava, desceu os andares e tomou o carro, saiu a passeio. Onde estará o companheiro? Difícil responder! Brigaram? Desentenderam-se? Viajou? Ninguém sabe! Ninguém viu! Mas, voltou logo. Já saiu contando as horas, ao que parece, diria Gonzaga, se vivo estivesse e se por cá viesse. Está um pouco mais gorda que o habitual, nos braços, sobretudo. Há vinte anos se poderia dizer que vive a felicidade a dois, mas hoje, infelizmente, os enlevos d’alma estão reservados às magras, caquéticas e mal nutridas figuras. O diabo é quem gosta! Trocou de roupa e sumiu, foi dormir. Agora, só vai aparecer à janela quando a noite chegar.

E a manhã se esvaiu, pariu a tarde!

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O Mata-Borrão

Nesses meus sábados ou nesses meus domingos, imperceptíveis, quase, tal a atribulação do meu cotidiano, faço questão de aproveitar a emergência da inspiração e vou transbordando o coração assim, escrevendo. Há tempo para tudo, está escrito, também, para que a alma seja tomada pelas saudades ou pelas lembranças nostálgicas e tempo para que o espírito se encha de satisfação e plenitude. Como há momentos de quedas do humor e outros, de elevação desses sentimentos! Agora, com um computador novo, ganho de presente, da consorte – Com sorte, sempre! Graças a Deus! –, tenho condições diferenciadas para o meu processo, mais do que simples, de criar o texto, pois que ouvindo Josefina Aguiar e Henrique Annes, antecipando os grandes da música universal, Mozart e Tchaikovsky ou Beethoven e Chopin, vou sendo invadido por essa sensação de paz interior, com a sonoridade dos meus conterrâneos ou com os acordes do inteiramente clássico.
Ora, quem como eu fez uso da velha pena, que molhada no tinteiro a intervalos regulares permitia transferir para o papel o pensamento, é muito diferente sentar diante do monitor e observar as letras se juntando em abraços fraternais, formando palavras, as quais se reúnem nas frases e vão dando gosto ao período. Dantes, quando era menino e usava calças curtas, saía de casa para a escola com a minha caneta Compactor e o meu frasco de tinta, da marca Parker e de qualidade Azul Real Lavável! Mas, fiquei maior e na idade de rapaz cheguei, como todos os meus companheiros e não esqueceram os meus pais da lembrança que fazia crescer, também, no reconhecimento dos colegas, por isso me deram uma Parker 51, de cor azul, com a tampa dourada. Usei por anos a fio e tinha a satisfação de dizer a toda a gente que nunca escarrapichou. Há quem saiba mais que verbo é esse? Nem o computador aceita de bom grado a grafia.
E se tudo está mudado, mesmo, na pós-modernidade do tempo, a máquina de escrever desapareceu do habitual das coisas e só as delegacias de polícia resistem à antigüidade do velho equipamento. Era um sacrifício datilografar, diretamente, as minhas crônicas, nem, sempre agradáveis ao leitor, para quem transmito as minhas dores e os meus ardores, os meus amores, igualmente, muitas vezes de maneira tão enrustida, que só os de casa ou aqueles de meus convívios compreendem! Sempre usei os dedos todos das duas mãos em meus trabalhos, pois que na década de 1960, nos inícios desses doces anos, quase tirei o diploma de datilógrafo, para me garantir, dizia meu pai, e trabalhar no comércio, se preciso fosse! Se errasse, todavia, era um problema e a borracha de duas cores – azul e vermelha – entrava em cena, apagando o vocábulo e permitindo a nova escrita, mas ficava tudo borrado, sujo, verdadeiramente.
Um belo dia – já contei isso por aqui –, a minha mãe comunicou a todos, na hora do jantar, que tinha visto uma caneta nova, diferente, sobretudo, e trocando o nome, chamou de “Caneta Estereográfica”, cuja característica mais importante, explicou, em alto e bom tom, era a de não exigir o tinteiro e a de não esvaziar nunca, senão de uma vez só. Uma beleza! E de pronto, todo mundo no Recife adotou a invenção, com o efeito colateral de ter o bolso, quase sempre, completamente molhado pela tinta da novidade emergente. Eram rodas azuis na camisa de muitos pelas ruas, apontando o defeito dos começos, o vazamento comum desses apetrechos que chegavam. As marcas populares ganharam fama e ainda hoje a Bic anda por aí, mostrando a cor azul-escuro da tampa e o transparente do corpo. Rabisca o bom e o ruim, risca os discursos da elite e faz o jogo do bicho, aposta no carneiro e termina dando touro, converte ente e promove a descrença. É paradoxal, então!
E o mata-borrão? Há quem se lembre disso? Só os mais velhos. É que depois da frase escrita, havia a necessidade de secar a tinta, de enxugar os excessos e para tanto funcionava o então conhecido papel de natureza porosa, com o poder de sugar os excedentes da mancha gráfica daqueles antanhos. Eram promocionais, inclusive, porque veiculavam propagandas, de remédios, por exemplo. Estas, distribuídas aos médicos, como ao meu tio Hênio, de Campina Grande, faziam a mídia da época. E ele trazia em boa quantidade para nós outros, para o meu pai e para mim, para os meus irmãos e para a minha tia velha, que fazia de suas cartas a forma de resgate dos pretéritos perdidos em terras potiguares. Em casa havia uma peça de madeira bem cuidada, na qualse colocava o mata-borrão, propriamente, fixando-se fortemente e assim era possível usar de maneira mais ampla, no texto por inteiro, quase!
Tudo isso passou! O tempo mudou ou mudaram os homens? E agora, a máquina substitui a criatura, despreza a pena e aposenta a caneta, vai dispensando o papel e diminuindo as distâncias, dando ao penitente do hoje condições de acessar o mundo inteirinho, da baixaria à nobreza, da pornografia descuidada aos textos da ciência. E viva a pátria, o computador e os avanços! Mas, viva, sobretudo, o mata-borrão!

(*) - Um texto escrito há muitos anos atrás, lembrando peças de meu tempo de rapaz, relíquias hoje nas feiras de antiguidades. Este Blog é retransmitido pelo jornal virtual A Besta Fubana. O leitor comente essas linhas no espaço mesmo do Blog ou para pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Mulher Barroca

Eu ando amedrontado com a onda de mulheres magras no mundo. Não que goste de gordura. Não que simpatize com as mulheres enormes que vejo nas ruas; sem cintura e sem contorno. Figuras horrendas, com seios enormes e quadris que podem conduzir o penitente sentado, facilmente. Sou nascido e criado nos anos das grandes valsas, por isso adoro figuras femininas com algumas gramas a mais, se bem que com o desenho de mulher presente no corpo. Mesmo que haja celulite e mesmo que existam estrias adornando a pele. São figurantes que bem poderiam estar nos grandes museus da Europa, perpetuadas pela pintura. Aliás, sou de opinião que toda e qualquer criatura com traços barrocos deve ser eternizada, para que possa ser admirada pelos anos a fora.

Costumo guardar com todo respeito o mandamento: “Não desejar a mulher do próximo.”. Faço isso com a ressalva compreensível de não se tratar de traço barroco na silueta. Certa vez, estando a convite numa residência, fiquei estupefato quando a dona da casa vestiu a roupa de banho e aproximou-se da piscina com um enorme culote à mostra. Amigo meu, sentado a meu lado, reclamou: “Rapaz! Tira olho! Pelo menos olha discretamente!”. Expliquei que não era possível, tinham batido no meu ponto fraco: o culote feminino. E contei a ele que tinha esse trauma infantil, porque tivera uma babá, nascida nos agrestes esturricados, com grandes volumes na raiz das coxas. Disse-lhe, inclusive, que a palavra coxa era um vocábulo pronunciado com muito respeito, pois a suplicante as tinha em grande volume. E o trauma persiste!

No meu tempo – justiça se faça – as mulheres eram gordas, mas tinham o desenho de violão à vista de toda gente. Assim eram as albacoras! Mas, ninguém esquece de Marinete, figura enorme, de grande e volumoso quadril, com coxas de deixar qualquer um embasbacado. Tinha um defeito, era coberta de pelos, das pernas às coxas, um pretume que só vendo. Mas era uma figurante séria, de cara fechada – sabia seu valor –, dando bola, apenas, a quem tivesse lambreta. Não queria conversa com homem sem a motocicleta da moda e muito menos a gente com chave de carro importado, difícil à época. Conhecia seu lugar!

A mesma coisa de diga de Maria de Camocim, mulher arabizada, como aquelas dos encantos de Gilberto Freyre. Criatura em tudo protundente; portadora dos seios mais bonitos que a natureza já viu e de quadril espetacular. Foi ela que se perdeu – ou se achou – com um primo, em viagem que fizeram juntos a Caruaru, trazendo a tiracolo um menor, que cuidava em segurar a vela. Perdida, não foi mais aceita em casa e veio para o Recife, empregando-se em minha casa, para deleite da rapaziada e aperreio de minha mãe. Depois trouxe a irmã, Rita, séria e calada, fechada e inflexível.

Difícil é esquecer Virgínia dos Palmares, negra da cor e de glúteos que homenageavam a mãe África, tal o volume sob o vestido de chita amarrotado. Tinha se perdido na bagaceira com homem branco e traiçoeiro, desses que não assume o que faz e não cumpre a palavra. Nem filho tivera, mas o pai, na severidade do tempo, a mandou de casa pra fora. Fosse fazer a vida por ai e ela foi bater – era o mesmo destino sempre – no portão de minha casa, pedindo emprego. Entre, minha filha, se acomode, disse minha avó, habituada com as coisas do mato.



Fui rapaz de ter muitas namoradas para a época. Mas, de uma coisa fique certo o leitor: só arranjei mulher de traço barroco.


A crônica é de hábito publicada também no Jornal Besta Fubana

domingo, 2 de janeiro de 2011

Ano Novo

Os que estão na minha faixa de idade têm muitas histórias para contar e muita conversa para fiar, neste ano que chega, vencida a primeira década do milênio. E ninguém imaginava chegar tão longe na vida. É que sou nascido na efervescência da Segunda Guerra Mundial e criado no pós-guerra. Assim, pude assistir de camarote ao desenvolvimento todo da ciência e pude participar das grandes mudanças que sofreram os hábitos e os costumes. Sou do tempo da rádio AM, dos telefones funcionando com quatro números, das ligações para Boa Viagem intermediadas pela telefonista e das radiolas enormes tocando os velhos discos long-play, os quais voltam a cair no gosto dos mais velhos. Ou sou do tempo das cadeiras na calçada, das avós gordas e de longos cabelos, cegas ou quase cegas, com catarata e glaucoma. Ou ainda, dos colégios masculinos isolados dos femininos, da farda caqui e da gravata azul, dos alunos do Nóbrega brigando com os do Marista ou aqueles do Salesiano.
Quando o fim de ano chegava e as férias começavam – três meses de desespero para os pais –, pela manhã havia uma pelada jogada na rua, com bola de borracha ou de meia e à tarde outro futebol, no chão de terra batida da rua Padre Miguelinho ou se armavam os alçapões, um desses de rede, para aprisionar canários abarrancados do Parque 13 de Maio. À noite, a roupa bem passada, calça de mescla e camisa de buclê, tempos depois o nycron e a helanca. E os intermináveis passeios na Festa da Mocidade, sem respeitar as severas determinações paternas: “Tudo! Menos o teatro de rebolado! Tenho escrito no jornal artigos de condenação a essa prática, que atenta os costumes!” Assistíamos a tudo, aos ensaios e às apresentações da
mulherada de Walter Pinto, todas bem compostas, se comparadas às de hoje. Às vezes, uma fé no jogo de azar, às escondidas do Marcha–Lenta, o cabo responsável pela segurança do lugar. Muito raramente, uma dose de Cinzano para animar.
Na noite do Natal, a Missa do Galo era parada obrigatória no mundano das coisas. Prestava-se mais atenção às meninas, de véu à cabeça na pureza do branco, que ao cura celebrante. Alguns dos penitentes, mais precoces que os outros, enlaçavam as namoradas e sussurravam juras deixadas nos ares. À hora do ritual, a confissão antecedia o ato de comungar e ao padre se dizia, aos cochichos, os pecados todos do ano, firmando-se o compromisso de nunca mais falhar. Passava-se uma semana, sempre, evitando os pensamentos, as palavras e as obras, mais os pensamentos que as palavras e mais as palavras que as obras. Vencida essa carência, repetia-se tudo, da mesma forma. E de culpa em culpa a rapaziada juntava remorsos e aguardava a próxima vez, para revelar aos santos ouvidos as malícias de todos os dias. Certo sacerdote dormia a sono solto no momento da escuta e se contava tudo e um pouco mais. Haviaquem confessasse os próprios pecados e os dos outros, dos amigos ou dos colegas! Houve quem aproveitando a oportunidade já sussurrasse as faltas futuras, merecendo o perdão antecipado.
Quando chegava o dia de Ano Bom, era uma festa na casa de toda gente. O peru, cevado às custas de um pirão bem cuidado, empurrado de goela abaixo aos bolões, morto às vésperas, depois de ter sido anestesiado com aguardente da venda da esquina, sofria o necessário cozimento em panela apropriada, sob tempero das avós, especialistas naqueles tempos em aves e noutros acepipes. Preparava-se a mesa e autorizava-se a champanhe, mesmo aos meninos, impedidos pela idade de acesso a qualquer líquido alcoólico. Nas proximidades da meia-noite as luzes eram acesas, pois que se uma única restasse desligada seria de mal agouro, para o dono da casa, sobretudo. O Dr. F. Pessoa de Queiroz pronunciava seu discurso e o relógio tocava as doze badaladas, anunciando a mudança do calendário. Nos postes da iluminação pública, de ferro fundido naquele sanos, a molecada batia forte e o barulho do metal contra o metal estimulava os abraços. Feliz Ano Novo, diziam todos! Não se imaginava que assistir o passar do século! E ninguém deu atenção às histórias das avós, sobre igual passagem noutros pretéritos!

E saleta - havia esse cômodo outrora - o pintassilgo despertava, com o movimento da casa e a claridade da luz. Daqueles acordes maviosos nunca esqueci. Ainda ouço o cantar belíssimo da ave.

(*) - Uma crônica adaptada de outra escrita ao tempo da passagem do século e do milênio. Comente o leitor se desejar, no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com Ou ainda acesse o Jorna da Besta Fubana que faz o grande obséquio de publicar a crônica. Bons anos a todos.