sábado, 24 de novembro de 2012

Um menino peralta

               O menino era endiabrado, fugia de casa o dia inteirinho e a mãe corria atrás, pedindo ao engraxate da esquina que a ajudasse na captura do fugitivo infantil. Até que um dia o homem dos sapatos justificou que seu oficio era outro, diferente daquele, isto é, da captura de meninos fugidos. Fazia mal às galinhas do terreiro e maltratava os gatos. Curou o galo que estava com um gogo desgraçado. Aplicou-lhe uma descarga violenta de ar com uma bomba de encher pneu de bicicleta. E a ave curou! Um dia, comprou um petardo de São João, prendeu num barbante de boa fibra e amarrou do rabo de um gato preto; diante do estouro o bichano deu um salto mortal e ainda hoje corre para se livrar do incômodo.

Havia pras bandas das touceiras de banana – banana maçã -, um ninho de uma galinha pedrês e a bicha, choca como estava, corria atrás do primeiro que se aproximasse. Ora, o menino soube por ouvir dizer que a água tirava o choco e pegando a penosa pelas asas levou-a ao tanque de lavar roupa. Foi grande a surpresa quando se viu invadido por pixilingas, das mais agressivas daquele quintal e disso nunca esqueceu. Coçava-se feito bicho com tapuru da mosca varejeira. Foi preciso um banho com muita água corrente e álcool para se livrar dos piolhos.

Quando os cupins quase dão conta das estantes do pai, exultou de alegria, afinal as madeiras foram descartadas no terreiro. O menino reuniu as bandas das estantes e construiu uma cabana. Era um barraco armado ali, no terreno de casa. Um dia, já na boquinha da noite, Gelda passou e ouviu do menino a frase definitiva: “Gelda! Sabe a cor do cavalo branco de Napoleão?”. E a mulher, inocente de pai e de mãe, disse que não sabia e entrou para tomar ciência. Resultado descobriu e fez descobrir o amor. Virginia também entrou por lá e fez a narrativa de seus dias no canavial de Palmares, onde se perdeu – ou se achou! – num dia com sol a pino.

Maria de Camocim já sabia da fama do minúsculo cantinho, quando foi conhecer detalhes do barraco. Acomodou-se em banco da feira de Santo Amaro, trazido na cabeça por “pássaro triste”, e danou-se a falar. Era daquele lugar quase santo, porque tinha um convento e uma santa devota, mas resolveu sair a Caruaru com primo de sua confiança e uma criança habituada a pastorear moça casadoira. Não prestou não, nas imediações da estação, o primo de nome Maneca, levou-a a uma pensão vagabunda e fez o serviço. Não sabia, ainda naquele tempo, se o resultado fora ruim ou se fora uma benção de Deus. Não meta Deus nessa história, dizia o menino contrito, porque era coroinha e como tal devia se comportar. E muitos anos depois, era o menino já um adulto e do alto de uma pensão nas imediações do mercado ela gritou: “Genésio!”. E o homem parou; parou e olhou: “Maria estava grávida de um trabalhador do porto. E a vida seguiu!”.

E como coroinha ajudou muitas missas de muitos padres. Passou a vida lembrando do dia em que o sacerdote pediu vinho pela segunda vez e ele respondeu: “Acabou-se! O senhor está bebendo demais!”. Não fora assim, o menino derramara na pia da sacristia o máximo que pudera da bebida quente e amarga. O sacerdote com raiva nunca mais quis o coroinha em suas missas. O menino tinha uma fantasia e com ela dormia, imaginava as moças da igreja dirigindo-se para a comunhão com os seios à mostra e assim ajoelhadas. Era o cúmulo do sacrilégio dissera o padre confessor ao saber do quanto o imaginário do menino viajava em mares revoltos.

O menino tinha essa mania; uma mania de ver e tocar nos seios alheios. Fazia uma verdadeira ronda pela vizinhança, olhando as meninas mudarem de roupa. Um dia, viu a mãe de um amigo nua da cintura pra cima. Olhou e fixou a imagem, para depois arrepender-se do ato. E o confessor quase não perdoa tamanha afoiteza. As de sua idade já está de bom tamanho, mas às velhas o respeito que merecem.  Andava nas ruas da cidade a uma velocidade que hoje não poderia repetir e tocava, como se fosse sem querer, nos bustos que podia. Contava esse esforço nos dedos das mãos: 10 a 12 seios!

Um menino peralta, dizia a tia que não costumava usar sutien e nem cacinha. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Proximidade do Inexorável


Meu querido e mui amado pai.

Nesta hora de tanto padecer, de tanto sofrer, num machucar constante da carne e do espírito, inquieta-me a impotência do meu ser e do meu saber diante da tua dor. A ciência que aprendi às custas do teu suor, derramado, gota a gota, sobre o teclado da máquina de escrever, falece, frente à proximidade do inexorável – desgraçada proximidade. Sou agora uma desesperada criatura e o meu desespero não pode mais chegar aos teus ouvidos, como dantes. Não suportarias este problema, esta questão que guardo e que vivo! 

Tudo mudou, meu pai, em tão pouco tempo! Ontem, menino de calças curtas, ouvia as tuas recomendações e às vezes nem as seguia, peralta que fui. Depois, na metamorfose da existência, os conselhos rejeitados na inquietude que marca a adolescência serviram de guia na maturidade, para a escolha dos caminhos, das trilhas da vida. Adulto, mesmo, quantas vezes fui à tua procura, quantas vezes ouvi a tua bem pesada opinião! Hoje, pai, precisas de mim perto, bem perto, como se dispusesse eu, pobre mortal, da porção mágica, quase, que restaura a injúria orgânica, tão larga, já. Ah, se eu pudesse! Ah, se Deus me ouvisse!
 
O meu sentimento é de profunda depressão, é de incapacidade para enfrentar a perda que vai chegando, pouco a pouco, vergando-te o corpo mais e mais, roubando-te a voz e incapacitando-te. Somente a inteligência, atributo superior da criatura, está preservada, numa lucidez impressionante dos fatos e das coisas, da percepção, inclusive, desta proximidade com o imponderável. Ouvir de tua boca que preferes o desenlace à vida assim, com as dores da doença, cortou-me o coração, deu-me a mais absoluta certeza de que estamos perto, bem próximos da eterna distância. Saber o quanto admiras, agora, os outros, andando ágeis, de um quarto para outro, subindo e descendo escadas, enquanto tu, que já foste assim, quase não podes mais caminhar, leva-me às lágrimas. É isso mesmo, pai, são os desígnios do Criador, é a vida em sua seqüência cruel, amputando com lentidão as funções, dificultando a normalidade das coisas. Gostaria de poder, ainda, ouvir palavras tuas sobre as grandes questões que enfrento daqui para frente no meu ofício, que foi sempre o teu, o de transmitir o conhecimento, o de preparar a juventude, de formar as pessoas. De conversar sobre o passado, sobre os nossos passeios, de mãos dadas, ao velho Parque 13 de Maio, por alamedas da infância; sobre o nosso debruçar diante do Capibaribe, vendo passar a água célere e um barquinho pequenino. Ou sobre as nossas reuniões de fim de ano, interrompidas agora, em 1991, numa antevisão tua do futuro imediato, de um porvir diferente. 

Guardo, ainda, o teu derradeiro telefonema, para falar de mim, para dizer: “Meu filho! Você é um vitorioso!” As minhas vitórias, pai, obtidas a sangue, suor e lágrimas, reconhecem na gênese primeira o teu papel de condutor, de educador, dando-me a rota das coisas e mostrando a turbulência dos mares da vida. Pena não possas mais assistir ao esforço que faz teu filho agora, primogênito da prole, no galgar de mais um degrau, em cuja base te vê, verdadeiramente. Durmo contigo esta noite e te ofereço, ainda, o que puder, com os olhos marejados, já, pois que pressinto o fim. Um dia, contigo, nas brumas do eterno, outras estórias hão de rolar e vamos rir às bandeiras despregadas, novamente!
 

PS: Texto escrito na véspera do falecimento de meu pai – Nilo Pereira. Crônica que levo à Fliporto, como exemplo do que escreve o cronista, quando está sob emoção forte. Levei, realmente, mas não houve tempo de ler. Desejando o leitor comentar, o faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Trotes telefônicos e outros trotes

 Eu sou vidrado em trotes telefônicos. Comecei pedindo a uma padária - já se vão 50 anos - 100 pães para a vizinha. Já dei trote em todo mundo e seu Raimundo! Desses, talvez aquele em que liguei da extensão de casa, menino ainda, e falei com minha Tia Deolinda, parece ter sido o mais criativo. Ela atendeu o telefone e eu disse que falava diretamente do Purgatório. Indagou se já ligava de lugar assim, eternamente distante? Estamos em experiência, respondi justificando, e expliquei que no espaço do galinheiro havia uma botija. Fosse por lá e cavasse, mas sem permitir a presença de outra pessoa. Claro que corri pra junto e vi a pobre da velha com uma enxada nas costas, mandando que eu saísse de perto. Assim: “Saia! Saia daqui! Saia!”. E não houve jeito de admitir que tinha sido eu o protagonista da ligação.
Já contei por aqui o telefonema que fiz para uma clínica veterinária, falando um espanhol atrapalhado e imitando a voz de um dono de circo. Dizia que o elefante estava com uma diarréia incontrolável, que já tinha tomado 34 vidros de Kaomagma, sem resultado e que eu estava disposto a levar o bicho para a clínica, deixá-lo internado. A pessoa que atendeu (não era o veterinário) quase enlouquece, justificando que cuidavam somente de cães e gatos. Não tinham espaço maior que coubesse um animal assim, tão grande e tão exigente em cuidados. Eu insistia de um lado e o interlocutor se justificava de outro. No fim, no fim, sem um acordo que fosse, fecharam a clínica naquele dia. Melhor dessa forma, pensaram!
De outra feita, tendo descoberto que o meu telefone fixo tinha uma secretária eletrônica, facilidade que não se usava de hábito, resolvi deixar, eu próprio, recados e observar a reação das pessoas. Com voz gutural disse: “Nos velhos mosteiros de Olinda os monges ainda se cumprimentam assim: lembrai-vos da morte!”. E pedia, ao final, que o interlocutor de ocasião deixasse o seu recado. Muita gente deixou exclamações, como aquela: “Liguei para a casa de um padre!”. Numa ocasião fiz um inquérito sobre o que achavam do Padre Marcelo Rossi. Encontrei respostas diversas. A melhor foi: “Eu gosto do padre e das coisas que ele diz!”. Por fim, em determinado dia de finados, data de aniversário de meu avô paterno, disse: “Orai pelas almas que sofrem no Purgatório, no meio a de meu avô Fausto!”. E houve quem começasse uma ave-maria.
Mas, dentre os outros trotes, isto é, trotes que não foram telefônicos, esse foi demais da conta. Numa tarde fui ao colégio disposto a repetir o que certo aluno fizera com meu pai. Quando o professor de geografia fez a chamada, ao dizer meu nome, ouviu em gregoriano legítimo: “Preeeeeeesente!”. Fui expulso da sala de aula para tomar jeito e ter respeito pelos mais velhos, sobretudo se estiver diante de um mestre. Quando inventei que o dia era o do aniversário do mesmo professor, ele negou de forma peremptória e chegou a consultar o calendário, ao que expliquei: “O senhor está se guiando pelo calendário gregoriano e eu sigo o calendário Juliano!”. Na sala ninguém se aguentou e foram cantados os parabéns e a aula do dia devidamente morta.