sábado, 28 de agosto de 2010

Fernando de Noronha

Realizei um sonho dourado: conhecer a Ilha de Fernando de Noronha! Embarquei num Bandeirantes da Nordeste, cruzei uma nesga do Atlântico e cheguei por lá disposto a tudo, pronto para a êxtase do espírito. Tomei quarto em pousada modesta - a Verde Livre -, da D. Severina Helena Maria, mulher de tres nomes próprios, sem sobrenome, mas com a capacidade triplicada, também, de receber. O aconchego do lar, o tempero caseiro e a disponibilidade em servir a toda hora, a todo instante, formam o tripé da hospitalidade dessa pernambucana matuta, virada em ilhéu, sustentada por verdadeiro "cotoco", atributo paraibano de ancestrais remotos de quem está "Sempre Alerta".



A "Esmeralda do Atlântico" é indescritível! Transcende a alma e a pena do mortal comum, dado à escrita na forma habitual da prosa, como aqui e agora, pois que só o poeta, em versos de boa rima, pode exprimir a exuberância e a beleza, sensual, quase, de recanto assim, virginal, ainda. Mesmo a fotografia, que é estática ou a dinâmica de cenas filmadas em equipamentos modernos, nada representam. São fragmentos, apenas, de um todo! Somente a perfeição da retina, pela qual responde o Criador, pode admirar, assimilar e gravar criação assim, de perfeição infinita. A intimidade telúrica é o ventre que acolhe a imensidão líquida, deixando brotar, em parições repetidas, instantâneos diversificados da ligação constante, secularmente perpetuada, entre a terra que é mãe e pode gerar e o mar.



Foi assim, no sincrônico embalo da água sobre a areia, sob as vestes puras, de tão brancas, de ondas a se espraiarem em sinuosos desenhos, que nasceu o amor daquela loura, paulista, pelo cafuzo ilhéu. Viu no rapaz a liberdade de ir e vir a qualquer hora, pra qualquer lugar, segundo o seu desejo e conforme a sua vontade. Admirou a simplicidade do trajar, o jeito de sair andando sem camisa - um descamisado honrado -, metido numa bermuda surrada, vaidoso com os óculos cor de laranja e a pulseira colorida de pano chulo. Despiu-se toda, quase isso, expondo, por inteiro o busto, em tributo à natureza e viveu a fantasia, o sonho de uma paixão. Depois, no aeroporto, permitiu que rolassem duas lágrimas, a da perda do amante e a do luto que a separação impõe. Retornou à realidade urbana, inserindo-se, outra vez, no contexto da cidade grande. Que crueldade!

A mesma coisa se diga, louvando-se uma outra sereia, hábil mergulhadora, em busca de tocas submersas na praia do Sancho. A água, translúcida, absolutamente translúcida, permitia observar o "ballet" íctico dessas espécimes, em tudo, coloridas, com todas as cores do mundo, numa homenagem marinha à maior das criações: a mulher. Batendo pernas e braços, mais as pernas que os braços, parecia, ao mergulhador neófito, munido de óculos de bom aumento, a escultura perfeita de artista, também, perfeito.

A despedida de tudo isso, de tanta beleza junta, da natureza exuberante, da loura de olhos azuis, duas contas marcando a face e da sereia bonita, metade mulher e metade peixe, mais metade pra baixo que pra cima, deu-se em manhã de domingo, com o sol forte, a pino o tempo todo. Um passeio de barco, do porto à Ponta da Sapata, com direito ao acompanhamento aéreo de pássaros pescadores, famintos por sardinhas novinhas e com a saudação ruidosa, mas lúdica, de golfinhos engraçados, saltitantes e felizes.



O avião levantou-se no ar, cruzou, novamente, a nesga do Atlântico e me entregou de volta ao conturbado mundo em que vivo. Depois do sonho dourado - É inexorável! -, a realidade toma conta das horas e dos dias! É isso mesmo!

(*) - Uma crônica escrita há muitos anos pra trás, 20 ou 25 anos, talvez, depois que voltei de Fernando de Noronha, onde pude me saciar com a paisagem e me embevecer com a beleza. Comente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com  

sábado, 21 de agosto de 2010

A Agonia de um Recanto

Aqui, nessas distâncias praieiras, recanto dos meus devaneios e canto dos meus encantos, onde tenho podido partilhar muito dos meus amores e dividir o pouco das minhas dores, tudo está diferente. Quase não posso mais ensaiar as fantasias paridas de meu imaginário, farto e forte, confesso, desde a mais tenra das minhas idades ou quase não posso mais entoar o cântico dos meus ardores, sinfonia d’alma ou melodia dos espíritos saciados com a beleza da vida e da existência terrena. Tiraram a paz do lugar e mexeram com o bucólico dos ares, promoveram assim a metamorfose desadorada do simplesmente urbano, trazendo a civilização para um misto de mar e campo. Os coqueiros de Pau Amarelo, agora, sucumbem à força do fogo, que devasta e deixaram de dar adeus, com as palhas balouçando ao vento, às ondas do mar, curvam-se, na verdade, em estalidos mais do que sonoros, despedindo-se do oceano enorme. E até as areias cálidas, tão livres outrora, permissivas até, com os amantes em flor, atores importantes dos espetáculos dos inícios, encheram-se de gente, daqui e dalhures, tomando jeito de praia grande e buliçosa.

As entradas de estrada batida, dos lados contrários ao do mar, que levavam às matas de cajus, cruzadas, às vezes, pelos pequeninos cursos d’água, verdadeiros maceiós, abriram-se e desfolharam-se. Há dezenas de novos conjuntos habitacionais prontos, para o atendimento da classe média, uns em ofertas e outros não, mas sedutores todos e a população flutuante, de veranistas e forasteiros, vai aumentar, certamente. Desapareceram, todavia, tangidos pela febre da civilização, os saguins das frondosas árvores e com eles o bailado vespertino do enlevo da natureza, de galho em galho, saltitantes. Que pena! E aquele galo-de-campina, o último, talvez, daquelas paragens mistas - mar e campo -, mais místicas que míticas, também. Pra onde foi? Antes tivesse se achegado à minha janela, onde cantava, mesmo que à distância, as loas do alvorecer e pedido para abrir a porta do alçapão dos meus desejos! Pior o timbu, habituado a me fitar à noite, acomodado num arbusto de casa, tão fixamente, que dava medo encarar! Sumiu, simplesmente, foi buscar guarida noutras bandas! Nem o calango, verde, quando convinha, invasor da sala e terror das meninas, filhas minhas, sem os hábitos dessas interveniências silvestres, apareceu mais! Restam por lá umas rãs, com tudo muito espantadas, nada mais! Proliferaram, entretanto, os pernilongos, cantores macabros de todas as árias da funesta ópera das doenças!

Hoje, o movimento dos carros na pista principal lembra, em tudo, aquele das metrópoles e das megalópoles. Anda-se voando, quase, sem o respeito necessário aos transeuntes, nativos do lugar, muitos, os quais, de quando em vez, sucumbem atropelados. Não entendem porque morrem assim, num lugar agitado, dantes tão pacato, tão calmo! Mas morrem! Passear de automóvel, como antigamente, em marcha vagarosa, admirando o coqueiral e vendo os animais pastando, no pachorrento jeito dos cavalos e dos bois, fiando conversa, resgatando afetos e afagos, nunca mais! Os outros ficam buzinando às costas, têm pressa, parece, sempre! É correr, também, feito um desadorado da vida, descortinando visões dantescas, como a de um avião que fizeram aterrissar por lá, virado em bar, no momento! Ninguém sabe as razões dessa empreitada, de um velho DC3, merecedor de um lugar condigno no museu dos ares, exposto dessa forma, às inclemências do tempo. Ninguém sabe, sequer, como chegou por lá, se puxado a cavalo ou voando nas asas do pretérito! Em Maria Farinha, fim de linha dos meus passeios, ambiência de carícias postergadas durante o ano, é impossível ver o rio. Um muro enorme, num aterro grande, às margens do Timbó, cobriu, com os tijolos do nada, o tudo das águas, doces e tranqüilas.

Havia uma marina no Timbó, há duas marinas agora e por certo, outras marinas virão! Só não se pode ver uma Marina qualquer, banhando-se na largueza das águas e trazendo a magia que encantou o poeta no rio das capivaras, num alumbramento, em tarde morna, na Várzea do Capibaribe.

(*) - Crônica antiga, guardada no bau das lembranças, dos tempos em que veraneava em Pau Amarelo, era jovem e podia apreciar as belezas do lugar. O diabo é que estou encontrando esses textos velhos e descobrindo que eu escrevia até direitinho. Preciso resgatar essas nostalgicas lembranças, para me expressar melhor, penso eu. O leitor que comente, o faça neste espaço mesmo do Blog ou mande uma mensagem para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

sábado, 14 de agosto de 2010

Uma Sereira no Timbó

Aqui, às margens do Timbó, onde as águas do rio se entregam à enormidade maternal dos mares, a madrugada pariu o dia e a manhã ganhou os ares nos braços do astro que é rei, depois, a tarde embalou a noite, trazendo, outra vez, a negritude das trevas. E a noite se foi, parindo outro dia! Eis a metamorfose do tempo! Um pescador muito velho, de barbas brancas e longas, tomou a jangada bem usada e se fez ao mar, jogando, seguidamente, a rede, de cujo conteúdo há de alimentar a família. Outro, pisando as areias cálidas da praia, tão alvas quanto a pureza do lírio, de tarrafa à mão, reunia no samburá já surrado as espécimes que podia, de tainhas fresquinhas, fresquinhas. O forasteiro, sentado ao largo, vestido à moda urbana, de camiseta estilizada, com inscrição posta na língua lá de fora e de sandálias cobrindo os pés, assistia a tudo isso. Via as mudanças e as transformações, qual observador do cotidiano, anotando vivências e convivências, com as águas, sobretudo. Nos dedos contou os barcos e passou de dez nesse exercício, contabilizou gente que ia adentrando as águas, cumprindo o desiderato milenar de buscar nessas intimidades o pão de cada dia. Aceitou o cumprimento respeitoso do caçador de lagostas, de ferro afiado pendendo do indicador e com o apetrecho destinado à sua própria flutuação: "Bom dia!" E o imaginário soltou-se, libertou-se das amarras que a intelectualidade pode trazer, para rever o tudo e o todo, dali e de fora, do presente e do passado, permitindo-se indagações sobre o futuro.


Como era diferente ele, o forasteiro, daquele povo simples e aparentemente sem complexos que por ali passava, livre das injunções sociais, de preceitos e de preconceitos! Ficou filosofando assim ou matutando, apenas, sentado, como estava, mantendo a sua condição de quase invasor daquele ambiente, tão sagrado e tão puro. Com o calor da manhã e com o sol a pino, já, viu as lanchas sofisticadas roubarem as águas alheias, provocando as ondas do mar, querendo repetir espumas, que na beira da praia beijam as areias, deixando telúricos ósculos. Assistiu o desfilar de outros forasteiros, veranistas também, de coloridos trajes, falantes e desinibidos, com intenções modernas de relax e de outras práticas. Furtam, na verdade, os ares que desses nativos sempre foram! Passaram e sujaram, fizeram de seus luxos os lixos daquele canto, um recanto, ainda, das reflexões de Deus. Vieram das paragens sulinas, parece, a tirar pelo sotaque de todos e pelas conversas que vão fiando, trouxeram a fadiga internalizada na bagagem e largaram por cá esses restos de civilização, contaminando o tempo e maculando o espaço. Promoveram no povo daqui mudanças de hábitos, desusados dantes. Pescadores transformados em guias de turismo, carregando, pra lá e pra cá, gente de fora, em passeios à Ilha de Itamaracá ou à Coroa do Avião. Homens mais velhos com os barcos ancorados, oferecendo passeios, à prainha, dizem, seduzindo os outros, como se faz na cidade.


Mas, é do mister de quem observa, anota e vai se permitir a criação do texto, no transbordar do coração diante da inspiração, como agora, madrugada de um sábado, aproveitar-se de um cumprimento e fiar conversa, de logo. Como estava o movimento, de turistas, sobretudo, aqueles vindos de São Paulo e do Rio, de outros lugares, também? Ruim, respondeu o homem, pescador por profissão e guia por precisão! Depois que fechou o hotel, fugiram daqui os viajantes, foram parar noutros lugares, explicou, justificando! E ficamos a ver navios, disse, fazendo metáfora com as coisas do mar. Tocou a falar, então, de suas experiências, depois que a civilização aportou nessas bandas e o simplesmente nativo foi se adaptando ao inteiramente novo, uma figuração do desenvolvimento emergente. Vira de um tudo por cá, do comum ao inusitado, gente que vai chegando e se deslumbrando com a paisagem do mar, cujo horizonte beija as águas ou com a beleza do coqueiral, no balanço mais que cadenciado das folhas, ao sabor lúdico dos ventos de janeiro. O coqueiro é a árvore do adeus, as suas palhas se despedem, o tempo todo, do viandante que se vai, entrando nas águas em direção às funduras do mar! E o que mais lhe impressionara nesse tempo das novidades? Confessou, então, a sua perplexidade, quando nas águas do rio Timbó, mesmo, viu, depois de trinta anos, se pouco, a sereia de seus devaneios e de seus sonhos, emergindo, sorrindo para o mundo. Não se falaram, disse, porque perderam a intimidade, sem precisar aludir a Fernando Veríssimo, mas filosofando à sua maneira! Entreolharam-se, somente, nada mais!


E para findar a crônica no melhor dos estilos, passou Vando, que da peixaria é o dono, esquipando no alazão tupiniqum, manga-larga da periferia, deixando um dourado aqui e outro ali, um serra para o irmão Getúlio e uma cioba para o escriba. E para Capiba, conterrâneo de Surubim, a prece a Maria Betânia, entoada sob a sonoridade das ondas! E Beto da Goiabeira, que do frágil arbusto caiu em seu primeiro alumbramento, sem invocar o poeta do rio das capivaras, aprendeu de Bandeira os versos cantados na Várzea, dos encantamentos primeiros!

(*) Esta é uma crônica antiga, muito antiga, dos tempos em que veraneava em Pau Amarelo e ia, vez ou outra, passear na praia de Maria Farinha, nativo e bucólico lugar. Por lá, tantas vezes, vi o movimento de pescadores em seus barcos e as idas e vindas de sereias quase telúricas, cujo banho era o exercitar matinal da sensualidade emergente. E o tempo passou! Não há mais aquelas paisagens tão simplória e tão pacata! O inteiramente urbano das coisas contaminou o lugar e só as saudades se amontoaram nos cantos, preenchendo recantos que trazem lembranças. Comente neste espaço do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Ode à Gordinha

Quando eu era menino, nos idos e muito bem vividos anos cinquenta, havia um culto sistemático à mulher gordinha e ao mesmo tempo fofinha, generosa de busto e larga de quadril. Hoje a coisa mudou, pelo menos é o que parece, o gosto passou à magricela, pra o manequim de desfile de modas, caquética estilizada, quase. Isso é coisa de estilista - Só pode ser! - porque à mulherada de pernas grossas, de ancas bem cuidadas e de seios fartos, toda gente tira o chapéu. Em particular tiro eu, mais de trinta vezes, principalmente se a figura dos trinta, também, passou e carrega nas costas mais cinco anos de contrapeso. Quanto mais velha melhor, ensina cunhado meu.

É sobre isso que falo, das gordotas bem parecidas de meu tempo juvenil, destronadas, hoje em dia, por intrigas da oposição. As magrelas se juntaram e uma campanha criaram, reprimindo a gordura e engrandecendo a cintura. Conversa pra lá e conversa pra cá, botaram de escanteio o culote e a celulite, sem que imaginassem o quanto os homens, maduros em maioria, mas os jovens também, gostam desses recantos. Toda essa coisa por que? Desconhecem os grandes quadros, há tantos anos expostos nos museus do Velho Mundo? Ou nunca viram as musas de meus tempos de menino? Sem culote e celulite, mulher não é mulher, é bicho papão, que assombra de dia e ataca de noite.

No quintal de minha casa, num velho quaradouro - havia esta peça em toda casa - diante do galinheiro, sentaram-se grandes figuras, sem que o galo soubesse ou a galinha desse conta; gente branca arabizada, vinda dos limites com o Agreste ou negra, bem preta, desalojada da Mata com medo da fome. Maria, de Camocim de São Felix, alva, danada, do nariz de patola, do busto furando a blusa, naquele movimento pendular, cuja aceleração, por ser constante, marcava-lhe o tecido chulo, esgarçando o pano e o coração da gente. Virgínia, medonha, lá dos Palmares de Zumbi, de pernas tão grandes, tão grandes, cujo fim, que era o começo, nunca se viu.

Outras tantas se sentaram, às caladas da noite, naquele quaradouro de madeira, no princípio e todo cimentado depois. Duro feito uma pedra, mas fofo que nem espuma, quando o menino rompia, nas mesmas noites caladas, consigo e com o pai. Célia foi a última, a derradeira a chegar. Dava trabalho desatar o nó da íntima peça do busto, mesmo a quatro mãos, como nos grandes concertos, quando se toca ao piano outras peças, com emotividade assemelhada. Bichinha desalinhada, não fora o seu conteúdo, amarrada, desgraçada, às custas de muitas voltas.
Desapareceram as musas todas de meu viver juvenil, dos meus tempos de menino, encantadas na noite dos tempos. Levaram pra bem longe, bem longe, as qualidades femininas da época: grandes culotes e celulite à vontade, ao gosto do parceiro. Sumiram, de volta às origens, em direção à caatinga, seca, esturricada, ou ao massapê úmido, gorduroso. Massapê garanhão de Gilberto Freyre. Restam lembranças, recordações daquilo tudo.
Foi sabendo dessas coisas todas que primo meu - Sérgio Marques - passeando nas ruas de Londres e vendo postal da década de trinta, no qual está muito bem retratada uma festa do cabide, não teve dúvidas, selou e mandou. Tres gordotas de costas, monumentos à carne, participam do encontro e enquanto isso, duas distintas senhoras escondem o rosto, amedrontadas com a máquina. Já devem ter passado dessa pra pior, mas o retrato ficou, gravando, para o resto da vida, cena tão diferente naqueles anos de rigidez a toda prova. Fui nomeado, agora, guardião da foto, pelo que a sustento, exposta, na porta do refrigerador, para a admiração de toda gente.