domingo, 13 de maio de 2007

Tampa de Chaleira

Nos meus inícios na Faculdade de Medicina, na fase em que estudava o esqueleto humano, colega meu dos bancos acadêmicos, visto distraidamente de olhos fechados passando a mão, levemente, numa tíbia apoiada entre o seu próprio queixo e à mesa de dissecação, não se livrou do cognome para o resto da vida: Chupa Osso. Na realidade, fazia ali, daquela forma e daquele jeito, o necessário exercício do aprendizado dos segredos da anatomia, percorrendo com o tato as saliências e as reentrâncias ou identificando orifícios por onde emergiram ou imergiram nervos, artérias e veias. Afinal, sabia da importância dessas bases morfológicas para o mister hipocrático e não podia descuidar dos esforços paternos, com os quais se sustentava, oriundo que era dos contrafortes da Borborema. Muitos anos depois, em congresso importante, outro colega me indaga: “Como é o nome, mesmo, de Chupa Osso?” Não podia, com certeza, tratar o companheiro daqueles anos pelo apelido em ambiente assim, de ciência e de pesquisa. E não o tratou, porque do prenome, pelo menos, eu sabia.

Os apelidos foram, realmente, a tônica daqueles convívios. Por qualquer motivo que fosse surgia um cognome a mais e de pronto a turma toda – 165 alunos – adotava essa imposição de um batismo improvisado e até desavisado. Fosse rapaz ou fosse moça, dado a bincadeiras ou sisudo na forma da lei, cada qual carregava um e ainda hoje, nas reuniões de aniversário dos anos de formado assina-se uma lista, em tudo parecida com a do passado e de quebra se acrescenta o nome dessas eras. Alguns, todavia, são de todo impublicáveis, mas outros, francamente, despregam as bandeiras, socializando o riso. Como esquecer do nosso Fofa, do Defunto ou do Gia, do Velho e de Bico de Ouro, conterrâneos esses dois, amigos até na morte? E a morte levou Cachorrão e carregou, do mesmo jeito, o caríssimo Timbu. A outros levou, também, roubando, de todos nós a chance desses convívios. Ou ainda, como não lembrar de Todo Feio, virado hoje e muito bem, num poeta de boa rima, prosador dos melhores? Esquecer de Mongrô é atentar contra a paz, a serenidade e os bons costumes. Pior do velho Barney? E o Pluto, vejam só?

O maior de todos os cognomes dessa turma, na emergência já dos quarenta anos de formada, não poderia ser outro, senão o de Tampa de Chaleira. Ora que o homem, chovesse ou fizesse sol, estivesse na sala de aula ou nos laboratórios, nas ruas do Recife ou nos anfiteatros de anatomia, suava feito um desadorado. Molhava a camisa em grandes rodas e chegava até a umedecer o pano das calças, dizia! Certa vez, o velho Tampa, chegando a um representante farmacêutico, acompanhando um périplo de estudantes, numa romaria em busca de amostras, sem saber que remédio pedir, perguntou ao colega mais próximo o nome de um produto qualquer. E o companheiro, irreverente como era, não titubeou, lembrou-se da recepcionista, mulher quarentona e viçosa, de ancas largas e busto protundente, com prenome diferente e recomendou que pedisse Fulana. O Tampa, na inocência do gesto, ainda insistiu mais, indagando se pedia em comprimidos ou em pó, em xarope ou injetável. Quase apanha da figura! Queria de qualquer forma aquela farmacêutica fórmula, fosse como fosse, e não entendeu a mulher, que raivosa e impiedosa, sustentando-lhe pela breca, perguntava-lhe, em voz alta: “Como se chama a sua mãe?” Guardei o necessário sigilo das relações entre o apelido e o nome. Não vou, agora, apontar colegas que na prática do dia-a-dia são expoentes da ciência, pelo cognome, então. E tampouco dizer o meu próprio, escrito aí por cima. Guardei também para mim, apenas, os demais apelidos, aqueles atribuídos às moças, por hesitação da consciência. Mas desses, pode crer o leitor, há alguns que são deliciosos, simplesmente.
E por aí vai.
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