segunda-feira, 28 de março de 2011

E o Primo Encantou-se

Depois de ter visitado minha mãe, internada há alguns dias na UTI, tomei o carro e fui direto ao outro hospital, ia ver meu primo; primo/irmão disse a esposa quando me viu. Chegando lá soube que ele já estava a caminho do cemitério. Embarguei a voz e me deixei tomar pelo pranto da perda. Liguei do celular para a minha mulher e por mais que explicasse, com a voz de choro, ela não entendia nada e eu desisti. Vim pra casa, me abriguei no quarto e apenas chorei.

Era uma figura de fino trato, com o biótipo semelhante ao de Tio Grácio, o galã, com muito gosto, da família. Não apenas o biótipo, mas o gingado era o mesmo, além do bigode bem cuidado e aparado a cada semana. Parece que o DNA do tio fora transmitido a ele; a ele e ao irmão. Talvez um pouco a mim também, já que vou criando um bigode bem cortado duas vezes por mês, pela tesoura ou pela máquina de Edson, dos começos da rua da Hora. Por lá também faço as unhas do pé, mas há três semanas, contadas nos dedos, Sonia não vai. Os dedos do pé vão virar casco de tartaruga, é o que acho.

Vez ou outra visitava um outro primo, Vadeco por apelido, sendo eu convocado sempre como adjunto de anfitrião. Era eu quem insistia com mais uma cerveja, quando a mulher só queria que ele tomasse uma. “Deixa ele tomar mais uma! É só essa!”. E ela deixava e ele tomava. Era nessas ocasiões que se contavam os casos pitorescos da constelação parental; pitorescos e picarescos. Um dia contaram que sendo Grácio ainda muito novo, se fez de aleijado, dependente de duas muletas. Assim deu sinal para o bonde que esperou um tempão para que ele subisse e depois mais um tempo para que descesse. Ao sair do bonde saiu correndo a toda velocidade, rindo às bandeiras despregadas. Ele, Jamerson – o Pilon – e outros mais.

Na Semana Santa, em Duarte Coelho, antes que a avenida cortasse as duas cidades, Recife e Olinda, havia em casa de outros primos a despesca do viveiro e Rogério tinha autorização para entrar na lama, coisa que nunca tive – minha mãe não permitia –, razão para sair do lamaçal vitorioso, com duas botas de lama. Beleza pura! Dali saia o peixe da Sexta-Feira, invariavelmente. Hoje o cimento armado tomou de assalto a água do viveiro e não há mais como reunir tanto exemplares cevados por meses a fio. Eu me lembro dele muitos anos atrás, na praia de Boa Viagem, quando se veraneava por lá, numa pescaria histórica, na qual ele voltou trazendo um polvo como troféu.

E certa vez, precisando falar com ele (Rogério), atendido pela mulher fui protagonista do seguinte diálogo:

- Rogério está?

- Quem fala?

- Diga a ele que é o primo de Vadeco!

- O senhor não tem nome não?

- Tenho senhora! Mas a satisfação de ser primo de Vadeco é tão grande, que eu prefiro me apresentar assim.


E a mulher dele bateu o telefone.

 Rogério se foi, encantou-se no infinito das coisas, desapareceu. Nunca mais se terá o riso frouxo e o diálogo franco.

Mais um primo integrando a galeria parental dos que partiram.

(**) O Blog também é publicado pelo Jornal da Besta Fubana. Leia e comente.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A Saudade

O dia hoje é de despedida! O netinho volta para o frio de Madri! Deixa o calor dos trópicos pra trás e vai se agasalhar até não poder mais nas distâncias de Espanha, onde, pelo que soube, fez 3°C nos últimos dias. Um horror, para quem como eu vive em terras de sol a pino. Segue em boa hora, porque vem por ai o equinócio, é o que se diz, com temperaturas altas, acima de 36°C e sensação térmica de 40°C, é a febre do universo. Mas, deu muita graça por aqui, desarrumou a casa toda, recolheu, ninguém sabe pra onde, as canetas de minha cabeceira. E soube arranhar os CDs de uma coleção feita ao longo de muitos anos. E muita coisa mais! Repetiu as minhas filhas nos começos da vida.

Fez com a avó uma ligação especial. Deitou e rolou! Lá por Aldeia armou acampamento e foi ver de perto a coleção de “Branca de Neve e os Sete Anões”, que o vizinho mantém em seu jardim. Beijou a todos, na santa inocência dos infantes. Chama bonecas de “Queca”, dando o masculino para os bonecos. Os viu em quantidade, mas encantou-se mesmo com a decoração do Carnaval, chegando a expressar, no seu português espanholado: “Queca, Queca, que lindo vovó”. Dançou o frevo e ensaiou o Maracatu, fez da rua uma passarela de seus mimos. Sai daqui falando mais em português que em espanhol, mas quando chegar por lá, na Península Ibérica, volta ao palavreado próprio do castelhano bem falado.

Descobriu por cá a pipoca das barracas e quando descortina uma dessas armações improvisadas, diz de logo: “Coca, mamãe!”. E a genitora, primogênita da casa, já não sabe mais o que fazer com esse pedido desajeitado. Toma seu leite regularmente, numa mamadeira bem cuidada, sabendo pedir o produto de forma peculiar: “Leite com tatai!”. Descobriu, porém, um achocolatado de multinacional do leite e dele não se desgrudou mais. Quando deseja o produto pronuncia na sua linguagem peculiar: “Uco de cocoa”. Isto é, como vem no rótulo a imagem de uma tartaruga, ele verbaliza que deseja suco de tartaruga. Só aqui por casa se toma suco assim, tão diferente e tão especial.

As outras filhas, tias do bebê, receberam um trato especial de Pablo: “Tia Dinda”, a madrinha e “Tia Aol”, também madrinha, mesmo com a reação do Padre Caetano, que batizou o menino na Igreja da Piedade e não queria repetir a tradição do Monsenhor Francisco Sales, Camareiro Papal. E o neném é visto, vez ou outra, cantarolando sozinho, inventando cantoria com as tias, a avó, de seus afetos, e o “vôvô”, com o bico de quem deseja dar ênfase à palavra. Veja só o leitor. Por aqui se diz que minha mulher – a avó –, costuma andar com as fotos do neto e por onde chega o povo já sabe: “Lá vem a mulher do álbum!”. Numa festa que fomos, dizem minhas filhas, em tom de blague, a qualquer cumprimento, ouve-se na hora a resposta: “Já viu meu neto?”.

Mas, é ela, a avó, quem vai sentir mais falta! Rebolou com ele o tempo todo. Fez uma ligação que toda criança gostaria ter com a mãe de sua genitora. Os avós são mais soltos, não ralham com a criança, permitem que os retratos todos da sala sejam espalhados pelo chão e acompanham o garoto no pula-pula, um dos brinquedos favoritos, acho que descoberto por aqui, em terras esturricadas do Nordeste. Especializou-se, no entanto, em comer pipoca caída no chão.

E por ai vai! Levando nos ares do Atlântico as saudades de nós todos: avós e tias. Mas volta! Vem pra cá – quem sabe? – armar sua barraca de acampamento e fincar os laços de família, os quais vêm de longe, do Barão do Ceará-Mirim e do Visconde de Goiana.

E o quarto que abrigava a mãe - minha filha - e o filho - meu neto - amanheceu vaizo, nem um, nem outra. A avó chorou do aeroporto ao restaurante e lembrou dele, que aprendeu a pedir ao garçon: "Moço: água coco, gelo!". Só ele sabia pedir o conteúdo hídrico da fruta tropical de forma tão peculiar. 

segunda-feira, 7 de março de 2011

Cornélio: o pacato cidadão.

Nunca se soube o nome daquele homem, senão o seu apelido, em função do abalo moral que se imaginava viver, tal o seu dia a dia, o seu conturbado cotidiano, com Dona Mirandolina saindo todas as tardes, enfeitada e cheirosa. Seu Cornélio era figura conformada, amava a mulher de qualquer jeito e de mais a mais os boatos não tinham confirmação, nunca tiveram. Mas, dizem isso, que o marido é o último a saber. E assim ia levando a vida.
O diabo é que ultimamente um doido, seu vizinho e cunhado de Zé Índio, conhecido pelo apelido de Dedé, vivia se metendo pro lado de Dona Mirandolina, conversando potoca logo cedo, depois que o dia amanhecia. Um danado como aquele não podia fiar uma conversa diferente, era um abestalhado na forma da lei, embora metido a brabo. Metido não, era brabo de verdade. Contava-se que na velha zona do baixo meretrício, deu porrada em duas guarnições da Rádio Patrulha e ainda mandou que chamassem outra, a terceira, quando foi dominado afinal.
Tinha estado no Rio de Janeiro e dali viera com um gingado todo especial. Falava diferente, usando à semelhança dos cariocas, o artigo antes dos nomes. Isso encantou à Dona Mirandolina! A fez ficar cativa do papo furado de Dedé. As histórias dele eram mirabolantes realmente! Ninguém tivera a ideia de coletar as fichas usadas nas lotações do Rio, recolhendo-as de volta para o próprio bolso. Fazia isso com borracha de chiclete envolvida na ponta de um graveto. O chicle arrastava o que podia de volta e o cobrador, no caso o próprio Dedé, tirava em dinheiro o apurado em sua manobra. Dona Mirandolina, mulher nos seus 45 anos, ia à satisfação inusitada. Repetia-se a mesma narrativa duas, três vezes, até quatro.
Numa certa noite, o homem desapareceu. Procura aqui e procura ali, ninguém o encontrava. Bateram tudo, hospital e necrotério, policia e prisão, locais de sua habitual frequência, becos e vielas e nada. Botaram no programa de rádio e com isso localizaram o fugitivo. Estava acantonado na casa de uma mulher, Dona Confeito, cafetina antiga, dona de lupanar, amigada com um tal de Zé do Gato, que era o seu gigolô, figura de muitas passagens nas dependências do já se chamou “Sorbone da Rua da Aurora”, o buque da cidade, o recolhimento noturno dos desordeiros do Recife.
Seu Cornélio continuava a sua vida pacata, acordando cedo, antes que o sol raiasse no horizonte das coisas, para a varredura da frente de casa. Depois, ficava encostado na mureta da vila em que morava, matutando na vida, refletindo sobre os seus dias e as suas noites. As noites, porque o seu vizinho Dedé decidira dormir em sua casa e mais do que isso, em sua cama. Era demais para ele! Não podia suportar tanta desonra! Uma forma de vingança, porém, passara em sua cabeça. Dormiria sim, mas com ele também, os três na cama. E assim foi! Conta-se que à noite, quando começaram os chamegos, Seu Cornélio não podia perdoar e entre os dois se meteu, impedindo a consumação do ato.
Outras noites se passaram com esse frenesi a três, sem que o Dedé nada conseguisse – é o que se diz –, preservando-se a honra já tão abalada de Cornélio, o pacato cidadão.

terça-feira, 1 de março de 2011

Direita Volver

Eu não servi ao Exército, porque era magérrimo, tinha 1m76cm e pesava 49 quilos. O médico me pesou e disse sem pudor: “Pesa o rapaz de costas. Ele tem físico para servir na PE!”. Vi que era piada de mau gosto, mas cumpri a ordem do homem e fiquei de costas. Deu a mesma coisa, completou o enfermeiro. Claro, quase digo! Não disse! Mas quando fiquei na fila de espera aguardando o documento, um companheiro achou de gozar com o recruta que fazia a varredura: “Varre! Galinha verde!” Resultado, todos presos, imagino que por desrespeito à autoridade. Eu tive uma idéia e por mim mesmo abri no choro. O sargento indagou a razão do pranto e eu justifiquei que a minha mãe me esperava e já passava do meio-dia. Todos foram liberados.

Mas, no último ano do curso médico fomos nos apresentar outra vez. A mesma coisa, a fila e um exame de vista feito pela autoridade de plantão: um sargento enfermeiro. Chamaram meu colega de estudos e eu, que levava essas coisas na galhofa, disse: “Tás atolado!”. E o homem de bata branca e calça verde oliva, indagou quem tinha falado. Fui eu, disse de logo. E ele: “Vou lhe dar o certificado porque o senhor não serve para o Exército!”. Eu, calado feito um coco, não disse nem sim nem não. Fui embora com o documento pra casa. Um outro colega, levado a ler umas letras numa tabuleta, indagou: “Que tabuleta?”. Ali, naquela parede! E o concluinte: “Nem a parede eu vejo!”. Saiu dispensado.

Pior quando estava formado já há muitos anos e fui convidado para falar sobre Dengue. Ninguém sabia da virose por aqui, muito menos eu, senão de minhas leituras e do exemplo epidêmico recente em Cuba. Entrei no então quartel general sem sequer me apresentar, de propósito, para fazer uma pegadinha. O sargentão saiu com uma metralhadora correndo atrás de mim: “Ei! Vai pra onde?”. Eu disse que ia, mas tinha desistido, tal os gritos e tal a voracidade do gesto. Metralhadora em punho. Justifiquei que tinha sido convidado para uma palestra, mas que ele, sargento, dissesse ao general que eu tinha desistido. O homem quase cai no chão de tanta angústia. E eu segui meu caminho e falei para um auditório repleto.

O diabo é que a reunião era para oficiais superiores, explicaram, e uma tenente da Marinha tinha comparecido. O major responsável chegou junto de mim e pediu que a retirasse do recinto. Meu senhor, o meu papel aqui é apresentar a doença, cujos detalhes eu sei de leituras, o resto é com o senhor. E ele ficou entufado pra lá sem falar com a moça. Depois fui chamado a um hospital militar para ver um doente vindo da África. Entrei do mesmo jeito, sem me apresentar. O dentista de plantão como oficial de dia, veio gritando atrás de mim: “Vai pra onde? Vai pra onde?”. Não vou, foi o que disse, eu ia, mas o senhor grita tanto que desisti. Foi a mesma coisa, o homem quase se ajoelha para me pedir desculpas. E por ai vai!

Só faltou alguém dizer: “Direita volver!”.