segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A Mangueira e a Cerejeira

Em tarde assim, de suave tropicalidade, com os ventos alísios assoprando o frescor dos ares, mesmo que a ansiedade fustigue a intimidade d’alma, antecipando momentos de tensão emergente, nada pode ser melhor que saborear uma manga Rosary, presente de Oswaldo Martins de Souza, leitor habitual desses meus escritos. Ainda mais, se a morosidade das horas permite a leitura atenta das contribuições do agrônomo ao estudo dessas frutas da Ilha de Itamaracá. Considerações de caráter técnico e ao mesmo tempo sociológicas, pelo que transmitem dos convívios pretéritos, das superstições e das crenças. Prendo-me, particularmente, à lenda da manga Primavera, uma das mais saborosas daquele recanto, nascida dos amores frustrados de um padre por uma moça.

Corriam os anos do século XVII e o jovem Saldanha apaixonara-se, perdidamente, pela moçoila casadoira de nome Sancha, cortejando-a o mais que podia ou o mais que lhe permitiam as regras do tempo. Decidido, foi à presença do pai e decantou os sentimentos, recebendo, todavia, a maior de todas as negativas de que se tem notícias pras bandas de Itamaracá. Voltou cabisbaixo e por certo chorou baixinho as lágrimas de todas as perdas, o pranto da decepção estabelecida. Mas, não desistiu, antes buscou o caminho das glórias, para impressionar o resistente sogro. Lutou contra os holandeses e venceu batalhas, matou gente e quase morre, levantou-se ninguém sabe como, depois de ter sido considerado destinado já à outra dimensão da vida. Bateu à porta do seminário e se fez sacerdote.

Um dia, sem esquecer nunca do semblante de Sancha, mandado trabalhar em terras da Ilha, tomou-se da coragem que anima os amantes condenados à sina das rupturas e procurou a velha amiga, que solteira, ainda, vivia em companhia de um irmão e sua prole. Bateu à porta vestido à caráter, de batina e barrete! Foi ela quem se achegou e o recebeu, ouvindo-lhe pronunciar o nome que agora tinha: Pe. Aires Ivo. Não resistiu à identificação do antigo amor, da face que mostrava, ainda, traços da juventude e da voz, cuja tonalidade apontava a idade, mas conservava o timbre dos outroras vividos. Caiu por terra, fulminada, inerte, diante da inesperada visita, da surpresa e da condição que adotara, a de celibatário. Morreu, porque se morre, mesmo, quando a decepção faz consolidar o desgosto!

Foi sepultada em cova rasa, rodeada de jasmins e numa das vezes em que o cura por lá voltou, para retomar imaginárias aproximações, com as quais convivera a existência toda, plantou uma semente de manga no canto desses seus proibidos encantos. A mangueira desabrochou viçosa, cresceu em busca dos céus e deu o mais doce de todos os frutos de que se sabe em terras assim, quinhentonas :a manga Primavera. Plantada em solo diferente daquele das origens, fora da Ilha e longe daquela fada, que é madrinha, também, não repete o sabor de mel, o adocicado do gosto, pra que não se fale de Aires, o padre ou de Sancha, a musa! Nem a ciência e nem a técnica conseguiram explicar a lenda ou mudar de hábitos a árvore dos amores rompidos.

E nessa mesma tarde, de suave tropicalidade, encontro no computador uma correspondência de lugar distante, bem distante. Chega de Tóquio, assinada por amiga minha, Harumi de prenome, dando conta que a sakura, a cerejeira dos japoneses, floresceu e encheu as ruas da cidade com a beleza das pétalas. Há gente sentada na relva admirando as flores, jovens e velhos, casais enamorados e errantes solitários. Será que existem homens como o cura de Itamaracá ou mulheres como Sancha, embevecidos com o efêmero fenômeno, rebuscando passados e fantasiando amores? Talvez sim! Talvez não! Mas, por todo o tempo em que este mundo durar, quer queiram ou quer não queiram, amantes embevecidos hão de chorar as perdas, derramando as silentes lágrimas das distâncias, com as quais regam as árvores de bons frutos das lembranças eternizadas.

domingo, 20 de novembro de 2011

Barbeiros, Sapateiros e Amoladores

O Suplemento dominical do Jornal do Commercio, do Recife, que circula com o nome de Arrecifes, publicou recentemente (20/11/11) interessante matéria da jornalista Luisa Ferreira, intitulada “Herois da Resistência”. Trata de antigos profissionais, comumente encontrados na cidade, até pelo menos os anos 70, pouco mais ou pouco menos, a depender do bairro e das necessidades do cliente. Eram barbeiros, sapateiros, amoladores, lavadeiras, alfaiates e relojoeiros; todos ou quase todos desaparecidos das ruas desta cidade dos rios e das pontes. E é mesmo!
Do barbeiro que comparecia, religiosamente, em casa para cortar o cabelo de meu pai e vez ou outra o meu, lembro muitíssimo bem. Não me ocorre lembrar o seu prenome. Deve ter morrido, porque na esteira do tempo já se vão mais de cinquenta anos. Fazia primeiro o cabelo do velho e em seguida o meu. Como todo barbeiro que se preza, tinha uma prosa magnífica e fiava conversa o tempo todo. Era, funcionário registrado e reconhecido da Galeria Brasil, que se chamara Galeria Ítalo-Brasileira, atacada a pedradas nos anos de guerra.
Depois, passei a cortar cabelo com profissional ancorado na avenida João de  Barros, de nome Hilário, que também fiava conversa da hora de meu sentar na cadeira à  de levantar. Muitos anos depois, já mudado para começos da rua da Hora, me pediu: “Doutor! Preciso fazer uma consulta ao oculista. Estou ficando cego.” Consegui e orientei a criatura a ligar e dizer que era o meu barbeiro. Foi quando comunicou a mudança de sua titulação: “Não sou o seu barbeiro. Sou o seu cabeleireiro.
Era uma figura interessante, porque sendo mulherengo, terminou apaixonando-se pela nora, sendo retribuído por isso, pelo que se amasiou com a penitente. Não sem contar com uma encrenca do cão de seu filho. E é ela quem cuida do homem hoje e de sua visão prejudicada. Agora, em seu lugar, ficou Edson, jovem e competente, que gosta de repetir o que me dizia Hilário sempre que terminava sua missão: “Mais jovem!”. É uma ilusão essa juventude fora de hora! Sônia, sua irmã, me corta as unhas do pé. Marcou comigo o aniversário de 50 anos de um fungo no dedão e se dispõe a preparar os acepipes da festa. Já pensou!
Os sapateiros se foram mesmo e não apenas trocaram o nome da profissão, como os barbeiros. Lembro em minha rua de infância de um desses, Miguel de prenome, que corria de hábito atrás de mim, quando eu saia em disparada, fugindo de casa. Até o dia que explicou a minha mãe: “Senhora! Eu sou sapateiro! Não estou aqui para correr atrás de seu filho!”. Tinha um pouco de sapateiro e um pouco de engraxate. Não vejo mais um nem outro! Só raramente e em certos lugares.
A lavadeira cedeu, mesmo, o lugar à máquina de lavar roupas, hoje computadorizada, a ponto de dispor de várias velocidades mais, de movimentos diferenciados. Não se tem mais em casa o quaradouro, que de madeira ou de cimento, servia também a certos encontros furtivos com as domésticas de casa. Lembranças desses amores periféricos, contados em pormenores ao cura da paróquia ou em detalhes ao jesuíta interessado nesses pecados da carne. Lembranças também de Marinete, mulher barroca, das admirações de meu avô.
Tinha o alfaiate: seu Guerra. Homem pacífico e satisfeito, figura da paz. Como tinha, também, amoladores e relojoeiros, cujos prenomes não lembro. Além do Vassoureiro, nome agora do quadro que recebi de presente da artista plástica Lúcia Pedrosa, pintado à inspiração de uma crônica minha: Os pregões do Recife. Exposto por um mês na Academia Pernambucana de Letras, sob o título geral de: "Pintando a Palavra". Pintores que fizeram criações artísticas baseados na obra de cada um dos acadêmcios.

(*) - Comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails: pereira.gj@gmail.com ou ainda  Fiz tudo para ilustrar melhor, mas o computador negou-se. Quando a máquina se nega, meu camarada, não há como fazer diferente.pereira@elogica.com.br

    

sábado, 12 de novembro de 2011

O Baú de minhas Saudades

As minhas saudades habitam, agora, os longos e silentes corredores do imaginário, por onde parecem vagar os fantasmas azuis das lembranças, em molduras de fumaça, evanescências do ontem. Caminhos dos meus pretéritos. Cenas dos meus outroras aflorando em fantasias ou cenários daqueles antanhos, transformados em devaneios. Atores cumprindo o desiderato do tempo, gente que foi gente e gente que não é mais gente. Parentes sentados no alpendre de casa, em pesadas cadeiras de maciça madeira, a fiarem conversa na boquinha da noite, depois da suculenta ceia. Da tapioca molhada e do café com bolachas americanas, quebradas e sobrenadantes. Rodas de manteiga a flutuarem no negro conteúdo da xícara, sem inibir vontades e sem impedir desejos de paladares assim. Ou colegas que foram companheiros da rua, no lúdico dos dias e no palavreado das noites, que partilharam das emoções primeiras, de amores nos inícios e de paixões rompidas. Ouviram segredos contados aos ouvidos, cochichados, pois!
Há sonhos que chegam assim, como esses, do meu hoje, em noite de insônia e há outros que esperam a hora dos anjos, o angelical momento do inteiramente onírico, para o retorno nos anos. Promovem, então, os milagres todos, fazem renascer os que já se foram e não viram um futuro que virou presente e já é passado. Dão a cada qual a face que se deseja pudessem ter, se vivos estivessem e se sentados por cá ficassem olhando o écran do computador, assistindo a emergência da criação ou a metamorfose do texto, do pensamento se materializando em letras e vocábulos, tomando a forma de frases e de períodos, vírgulas e ponto final. Vestidos à moda daqueles pretéritos falam do experimentado neste maravilhoso banquete da existência terrena. Pedem ou não pedem orações e invocações, sem deixar que as evocações se percam na largueza do éter. Fisionomias reparadas, cabelos repostos e rugas vencidas! Depois se vão, encantam-se outra vez!
A avó de longos cabelos, metade preto e metade branco, acompanhada da irmã, a tia velha para os sobrinhos-netos, reaproxima-se da vida e pede o colírio de seus hábitos. Tinha na vista as doenças de todos os velhos, a catarata e o glaucoma, faz o neto pingar-lhe as gotas e manda ver a injeção escondida sobre o guarda-roupa antigo, pesadão e preto, como se o luto da viuvez lhe fizesse assim, densa e tensa. Ampolas importadas da Suíça, de uma certa doutora Aslan, cujo milagre seria o da juventude recuperada ou a da mancha desgraçada da idade apagada para todo o sempre. De nada serviram caixas e mais caixas, aplicadas nos músculos de ambos os braços pelo farmacêutico da esquina, Belmiro de prenome.         
O pai morto, inerte, no salão nobre e pomposo, se alevanta do esquife, abre os olhos do descanso derradeiro e não se diz cansado! Conta, afinal, o que teria a falar com o filho primogênito, no encontro que marcara para a tarde daquele dia dos horrores. Nada mais pôde verbalizar! Eis o verdadeiro desencontro! O que seria, então? Uma observação qualquer sobre o estilo da crônica ou do artigo? Uma ponderação a propósito de um porvir desconhecido? Indagações filosóficas a respeito do infinito das coisas ou da dimensão do eterno? Fez isso até o ultimo momento, sublinhando proposições bíblicas sobre a morte em seu Missal.  Impossível saber! Dúvida atroz que sacode o espírito e faz da alma uma grande interrogação! Burburinho de idéias que de nada servem! Ninguém sabe, ninguém escutou, ninguém ouviu! Quem sabia se foi! E fez diferente do que fazia! Não mandou notícias!
Eis o bau de minhas saudades!
(*) Um texto saudoso; saudades dos que se foram e não deram mais notícias. Saudades do meu ontem das cenas e dos cenários; saudades dos personagens que encarnavam gente. Gente que foi gente e gente que não é mais gente. Deseejando o leitor comentar, não hesite, use o espaço do Blog ou envie pelos e-mails: pereira.gj@gmail.com ou pereira@elogica.com.br

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A dor de barriga do elefante

Ao leitor confesso de logo: gosto muito de passar trote. Trote telefônico e trote pessoal, isto é de corpo presente, como diz certo amigo meu. Passei um tempo por aqui que deixava mensagens no telefone fixo. É que descobri, sem muito esforço, que havia uma caixa postal no equipamento, sob a batuta da companhia e às expensas do assinante, no caso eu. A verdade é que nunca se usou isso e decidi alternar as mensagens. Assim, por exemplo, em certo final de semana, gravei: “Nos velhos conventos de Olinda, os monges ainda se cumprimentam assim: Lembrai-vos da morte. Deixe sua mensagem.”. As reações eram as mais diversas, desde a impressão de que se estava falando com um padre, até a certeza de se tratar de gente do outro mundo. Nessa sistemática, decidi fazer uma enquete sobre o Padre Marcelo Rossi. Assim: “Que opinião você tem sobre o Padre Marcelo Rossi?”. Um interlocutor disse: “Eu até que gosto do padre.” E por ai vai!

Mas, falando em trote pessoal, de corpo presente, como disse, tem um camarada aqui perto de casa, lavador de carro, que todas as vezes que eu passo para caminhar na Jaqueira me cumprimenta dessa forma: “Boa tarde coronel?” ou “Coronel deseja que limpe seu carro?”. Eu fiquei meio cabreiro, mas depois entendi que o cumprimento era geral e irrestrito, passou merecia o gesto. Decidi, então, chamar o rapaz e dizer a ele em certo sigilo: “Olhe, você tem me tratado por coronel e os meus subordinados viram isso. Eu não sou coronel! Sou general!”. Não prestou, pois que o tratamento mudou de imediato. Pior foi no dia que ele indagou onde eu morava, ao que respondi, sem hesitar, general não mora, acampa. “Eu estou acampado ali adiante!” Noutra oportunidade encontrei casualmente com minha mulher e expliquei que era a major e que nos conhecemos no Haiti. Veja só!

Mas, muito pior do que tudo isso foi a ligação que fiz para uma farmácia aqui na esquina. Quando o balconista atendeu, indaguei se sabia das mais recentes normas da Vigilância Sanitária, respondeu que não, ao que expliquei que teriam de vender doravante caixões mortuários e ele, respondendo: “Essa só com o gerente!”. E foi convocar o gestor. Em Aldeia, decorei o telefone de uma sementeira e liguei ao chegar em casa. O homem muito prestativo atendeu: “Alô!”. Ai dei uma explicação furada, disse que o Sr. Messias, morador de Araçoiaba, tinha morrido e como gostava muito de flores, estávamos transportando o defunto pra lá. O pobre do homem quase endoidece, porque era um sábado e a freguesia estava toda na sementeira. Em Aldeia, também, telefonei à clínica veterinária e me apresentei como uma pessoa que havia capturado uma raposa e que o animal estava doente e eu precisava de assistência, mesmo sabendo dos riscos em ter o bicho em casa. A atendente, de logo, advertiu: “Ai só com a doutora!”. E eu desliguei.

Mas, sobre clínica, muito mais engraçada foi a de Pau Amarelo, em tempos idos e bem vividos, liguei para a clínica veterinária e disse que era dono de um circo, que vinha da Paraíba e já estava em Goiana, mas com um problema sério, porque o elefante estava com uma diarréia grande, já tomara 34 vidros de Kaomagma e não obtivera melhora de jeito nenhum. Eu estou levando o animal pra ai, afirmei, decidido. A criatura desesperou-se, justificou que lá só tratavam de pequenos animais e o diálogo prosseguia sem que eu cedesse, até que no final disse a ele que o paquiderme podia dormir mesmo na rua. A coisa foi tão séria, mas tão séria, que ele fechou a clínica o resto do dia.

Com essas coisas eu trato o meu stress!

(*) O texto lembra tempos idos e muito bem vividos, quando o humor presidia o espetáculo da vida. Ainda preside, pelo menos em parte. Com as minhas saídas espitituosas para espantar os stress e as contrariedades. Tantas e tantas coisas que não precisavam ser vividas e o foram. Tantos que já se encantaram no infinito das coisas! Desapareceram todos os velhos de minha juventude e continuam a desaparecer os meus parentes, novos ainda. Um misto, pois, de alegria e dor. Comente o leitor se desejar, no espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails pereira.gj@gmail.com e pereira@elogica.com.br