segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O Mata-Borrão

Nesses meus sábados ou nesses meus domingos, imperceptíveis, quase, tal a atribulação do meu cotidiano, faço questão de aproveitar a emergência da inspiração e vou transbordando o coração assim, escrevendo. Há tempo para tudo, está escrito, também, para que a alma seja tomada pelas saudades ou pelas lembranças nostálgicas e tempo para que o espírito se encha de satisfação e plenitude. Como há momentos de quedas do humor e outros, de elevação desses sentimentos! Agora, com um computador novo, ganho de presente, da consorte – Com sorte, sempre! Graças a Deus! –, tenho condições diferenciadas para o meu processo, mais do que simples, de criar o texto, pois que ouvindo Josefina Aguiar e Henrique Annes, antecipando os grandes da música universal, Mozart e Tchaikovsky ou Beethoven e Chopin, vou sendo invadido por essa sensação de paz interior, com a sonoridade dos meus conterrâneos ou com os acordes do inteiramente clássico.
Ora, quem como eu fez uso da velha pena, que molhada no tinteiro a intervalos regulares permitia transferir para o papel o pensamento, é muito diferente sentar diante do monitor e observar as letras se juntando em abraços fraternais, formando palavras, as quais se reúnem nas frases e vão dando gosto ao período. Dantes, quando era menino e usava calças curtas, saía de casa para a escola com a minha caneta Compactor e o meu frasco de tinta, da marca Parker e de qualidade Azul Real Lavável! Mas, fiquei maior e na idade de rapaz cheguei, como todos os meus companheiros e não esqueceram os meus pais da lembrança que fazia crescer, também, no reconhecimento dos colegas, por isso me deram uma Parker 51, de cor azul, com a tampa dourada. Usei por anos a fio e tinha a satisfação de dizer a toda a gente que nunca escarrapichou. Há quem saiba mais que verbo é esse? Nem o computador aceita de bom grado a grafia.
E se tudo está mudado, mesmo, na pós-modernidade do tempo, a máquina de escrever desapareceu do habitual das coisas e só as delegacias de polícia resistem à antigüidade do velho equipamento. Era um sacrifício datilografar, diretamente, as minhas crônicas, nem, sempre agradáveis ao leitor, para quem transmito as minhas dores e os meus ardores, os meus amores, igualmente, muitas vezes de maneira tão enrustida, que só os de casa ou aqueles de meus convívios compreendem! Sempre usei os dedos todos das duas mãos em meus trabalhos, pois que na década de 1960, nos inícios desses doces anos, quase tirei o diploma de datilógrafo, para me garantir, dizia meu pai, e trabalhar no comércio, se preciso fosse! Se errasse, todavia, era um problema e a borracha de duas cores – azul e vermelha – entrava em cena, apagando o vocábulo e permitindo a nova escrita, mas ficava tudo borrado, sujo, verdadeiramente.
Um belo dia – já contei isso por aqui –, a minha mãe comunicou a todos, na hora do jantar, que tinha visto uma caneta nova, diferente, sobretudo, e trocando o nome, chamou de “Caneta Estereográfica”, cuja característica mais importante, explicou, em alto e bom tom, era a de não exigir o tinteiro e a de não esvaziar nunca, senão de uma vez só. Uma beleza! E de pronto, todo mundo no Recife adotou a invenção, com o efeito colateral de ter o bolso, quase sempre, completamente molhado pela tinta da novidade emergente. Eram rodas azuis na camisa de muitos pelas ruas, apontando o defeito dos começos, o vazamento comum desses apetrechos que chegavam. As marcas populares ganharam fama e ainda hoje a Bic anda por aí, mostrando a cor azul-escuro da tampa e o transparente do corpo. Rabisca o bom e o ruim, risca os discursos da elite e faz o jogo do bicho, aposta no carneiro e termina dando touro, converte ente e promove a descrença. É paradoxal, então!
E o mata-borrão? Há quem se lembre disso? Só os mais velhos. É que depois da frase escrita, havia a necessidade de secar a tinta, de enxugar os excessos e para tanto funcionava o então conhecido papel de natureza porosa, com o poder de sugar os excedentes da mancha gráfica daqueles antanhos. Eram promocionais, inclusive, porque veiculavam propagandas, de remédios, por exemplo. Estas, distribuídas aos médicos, como ao meu tio Hênio, de Campina Grande, faziam a mídia da época. E ele trazia em boa quantidade para nós outros, para o meu pai e para mim, para os meus irmãos e para a minha tia velha, que fazia de suas cartas a forma de resgate dos pretéritos perdidos em terras potiguares. Em casa havia uma peça de madeira bem cuidada, na qualse colocava o mata-borrão, propriamente, fixando-se fortemente e assim era possível usar de maneira mais ampla, no texto por inteiro, quase!
Tudo isso passou! O tempo mudou ou mudaram os homens? E agora, a máquina substitui a criatura, despreza a pena e aposenta a caneta, vai dispensando o papel e diminuindo as distâncias, dando ao penitente do hoje condições de acessar o mundo inteirinho, da baixaria à nobreza, da pornografia descuidada aos textos da ciência. E viva a pátria, o computador e os avanços! Mas, viva, sobretudo, o mata-borrão!

(*) - Um texto escrito há muitos anos atrás, lembrando peças de meu tempo de rapaz, relíquias hoje nas feiras de antiguidades. Este Blog é retransmitido pelo jornal virtual A Besta Fubana. O leitor comente essas linhas no espaço mesmo do Blog ou para pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com