sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Lava-pés

Disse, faz alguns dias, em programa de televisão a que compareci, que a Semana Santa no passado era um tempo de recolhimento e luto. A minha avó paterna, mulher rígida, como cabia ser ao tempo, vestia preto e não permitia que se cantasse ou que se assobiasse, um costume tido e havido como chulo por alguns. As emissoras de rádio passavam a sexta-feira da paixão inteira tocando marchas fúnebres ou no máximo música erudita. Um certo amigo meu, hoje encantado no infinito das coisas, dado ao hábito de beber desbragadamente, em louvor a Baco, me indagou: “Você que é católico e sabe das coisas, diga-me lá: pode-se beber nesses dias?”. Não se bebia nada, mas o meu interlocutor justificou-se de logo, antes de minha resposta: “Vinho pode, porque o Cristo mesmo transformou a água em vinho!”. E encheu a cara!
Foi sobre esse mesmo companheiro dos anos de calças curtas que me telefonou Moisés. Contou que esse colega da rua fora escolhido, certa vez, para ser um dos meninos incluídos no lava-pés da Matriz da Soledade, então sob a batuta do Monsenhor Sales, contando com os serviços do atento sacristão Miguel, anos depois marido de minha prima Betânia, para quem Capiba fez o célebre hino: Maria Betânia. Ora, o nosso penitente compareceu à cerimônia litúrgica com os pés sujos. É natural! Imaginou, por certo, que o ato e o fato seriam mesmo para a limpeza das impurezas do mundo. Foi, então, cortado de todo e qualquer momento assim, de recolhimento e purificação da alma. Ao final, também, não recebeu a gratificação a que faria jus, aquele sofrido cruzeiro (Cr$ 1,00), à época e o pão para comer.
Mas, foi do mesmo Moisés, que nos sábados e domingos cuida em lembrar algumas das histórias de que me ocupo neste espaço da virtualidade das coisas, quem lembrou passagem pitoresca no ritual canônico do lava-pés. É que foram escolhidos os meninos, como sempre acontecia, por sua madrinha de batismo; doze meninos contados nos dedos, como os apóstolos do Senhor. Chegando à igreja, a mesma Matriz de sempre, encontraram outros tantos que já aguardavam para entrar no templo, descalços e dispostos à participação religiosa. Formou-se, então, uma confusão, gente de um lado do bairro – o Pombal – e gente do outro lado, a Boa Vista propriamente. Quase vão às vias de fato, tal a indignação de Zé Morais, personagem obrigatória em todo e qualquer movimento assim. Não fosse a interveniência ponderada de Toinho Valadares, como explicou Moisés, a questão não teria sido resolvida. Mas, com seis meninos de cada lado, o monsenhor pôde imitar o Cristo, lavando os pés de um por um, até o último dos doze apóstolos, como está no texto bíblico. E essa gente toda hoje está de cabelos prateando o tempo e de corpo vergando à força dos anos. Não há mais lados, todos militam em prol do bem comum.
E a Semana Santa mudou ou mudamos nós? A verdade é que de quinta-feira ao domingo o tempo é de férias. Não se vai mais à igreja como dantes. Ninguém faz a peregrinação das crenças de outrora, a sete templos em visita ao Senhor morto, beijando-lhe os pés, em sinal de profunda humildade. E as famílias não saem mais, como fazia a minha, em préstito, para o cumprimento desse preceito. É que os velhos de meu tempo morreram e eu hoje estou incluindo dentre os velhos de agora. Mas, aqui por Aldeia, a noite da sexta-feira santa parecia repetir outras noites, tal o silêncio.
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