segunda-feira, 31 de maio de 2010

Conversa de Fim de Noite

Em mureta de contorno de prédio construído em dias da modernidade já, no Bairro do Recife, onde tudo remete ao passado, a velha prostituta fiava conversa com parceiro, igualmente, antigo, resgatando pretéritos. De cabelos ralos e louros, às custas da milagrosa água que doira o piloso manto feminino, dando graça às moiçolas em flor, vestiu-se com o melhor que dispunha e se cobriu com longo casaco de frio, prevenindo-se do malfadado vento encanado, nascido nas entranhas do porto. E com uma toalha muito usada de se enxugar no banho, recobriu as pernas, isolando-se, dessa forma, do mundo todo. Tinha a pele vincada pelas marcas dos caminhos e dos descaminhos, sulcos dos espinhos, sem a trajetória dos ganhos. Mesmo assim, recebeu o senhor de tez negra, vindo, por certo, das periferias urbanas para aquele centro mais do que citadino, recuperado, agora, graças às interveniências do alcaide, acolhendo-o na sala de visitas do recanto, um canto, então, de muitos encantos. Viajaram no tempo, em busca das histórias vividas e revividas naquele instante mágico do reencontro, aprazado às vésperas, para que fossem recuperadas, na distância dos anos passados, vivências e convivências a dois, na alegria sepultada, hoje, em tumba das saudades. Lembravam de tudo, das ambiências e dos amores, das músicas e das dores, dos afetos e dos desafetos, de afagos até, nascidos no embrionar dos sentimentos, ao som da música lenta ou dos acordes de um tango qualquer.

Testando o velho parceiro, sua memória dos tempos idos e sua capacidade de fixar momentos, indagou se lembrava em detalhes das noites no Chanteclair? Ora, respondeu, como esquecer daquilo tudo, da radiola de fichas tocando, dos pares se abraçando em rodopios no salão e das escapadelas aos quartos, para um quarto de hora, que fosse, nos enlaces desses amores de ocasião! Jamais! Tanto é, complementou, que antes de estacionar o veículo de se que vale nesses dias que correm, depois de anos e mais anos de trabalho, circulara por lá, nas imediações da antiga casa, sem poder ouvir os acordes dos antanhos, exauridos, como estão, nos ares das lembranças. Mas, deixou o toca-fitas do carro executar Gardel! Escutou a tudo, com a atenção que a ocasião exigia, sentindo uma lágrima rolar pelo canto da face e pôde reviver os anos! Pôde rever marinheiros vestidos com a pureza do branco, tomando pelas mãos as damas de então e no largo salão das danças marcando os passos do ritmo, em amplexos precursores dos gestos, dos atos e dos fatos sobretudo. Onde andará toda essa gente, perguntou? Aparecem por cá, vez ou outra, como fazia ele próprio, ampliou a indagação? Não, senão raramente, respondeu a mulher! Muitos estão postos no muro das lamentações, tomados pelos achaques da vida e outros aposentados do tudo e do todo, dispensados assim dos outroras da vida!

E as companhias femininas daqueles anos, indagou mais uma vez? Desejava recompor as cenas, buscando nas coxias do hoje figurantes tão ativos de alegres encenações. Sabia de uma ou de outra, apenas! De Maria da Anunciação tivera conhecimento de logo, quando nos idos de sessenta deixara a casa e a zona por Antônio Maria, embarcadiço de passagem, enlouquecido pelo porte da morena matreira! Mulher de feições largas, rechonchuda de corpo, fazia com as cadeiras o acompanhamento cadenciado da música solta nos ares, de um bolero, que fosse, como se de seus quadris emergisse a batuta de um maestro ou de um samba moroso, parindo saudades! E Maria Pureza, acrescentou, que só tinha pureza no seu sobrenome? Merecedora do cognome porque pecava, mas pagava a penitência, devidamente, segundo os preceitos e dentro do que lhe mandava o cura da Matriz. Contava, ajoelhada, as proezas todas das noitadas na zona, incitava até a certos devaneios o jovem padre, mas aguentava o repúdio das leis, feitas pra reis, dizia muitas vezes, não para a fragilidade da carne de mulheres simplórias, como ela mesma. Casara, soubera, fixando-se em cercanias do Mercado Público pras bandas de Afogados e no bairro não aparecera mais, apagando as lembranças e as faltas!

E quando a hora avançou, o parceiro de velhos e já muito distantes anos, levantou-se. Afinal, tinha casa e tinha filhos, grandes é bem verdade, barbados todos, mulher a quem cuidar e netos a quem mimar! Tirou do carro um saco de pipocas e deu à companheira de seus pretéritos, ligou o motor, manobrando o veículo e lá se foi, para a rotina da vida. A loura se assentou no banco da praça, enrolando-se, mais uma vez, com a toalha de banho e tirando as pipocas do saquinho, uma por uma, mastigou a solidão desadorada, lentamente! Pra não se dar por vencida ou pra não perder os hábitos daqueles pretéritos, chamou pelo nome o flanelinha da esquina, menino nos seus vinte anos, convidando-lhe ao deleite de sua alcova carcomida, mas de todas as experiências. Dispensou resposta e só, sempre só, aguardou o movimento exaurir-se, para se exaurir, também, na finitude de seus tempos!

(*) - Um texto escrito há mais de uma década pra trás, quando o Bairro do Recife - o Recife antigo - tinha sido restaurado recentemente e vivia dias de muito movimento. Gente circulando pra lá e pra cá! Comente o leitor, sendo ou não sendo pernambucano. O faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com  



segunda-feira, 24 de maio de 2010

Congresso Sexual


Os médicos se encontravam no saguão do hotel nos intervalos das sessões. Naquela manhã, conversa vai e conversa vem, apareceu na recepção o Ludovico enlouquecido. Os olhos esbugalhados e os cabelos em pé sinalizavam que as coisas não iam bem. Foi o Malheiros quem se antecipou ao grupo e indagou de logo: “Mas, o que houve Ludovico?”. E ele quase não consegue se explicar. Disse logo que estava assim, atarantado, mais pela esposa que por ele mesmo; esposa a quem devia respeito e que em seu entender tinha sido vilipendiada pelos funcionários do estabelecimento. O silêncio que interrompera com o nada das coisas o ato de fiar conversa, fez o Pimenta levantar-se do lugar e com a calma que inspira os psiquiatras, sobretudo ele, descendente como é de barões ou de viscondes, aplacar a quase fúria o enlouquecido cidadão. O Pimenta aproximou-se e fez o Ludovico falar:
- Fala homem! Diz o que houve?
- É que esperei quatro horas pela chave de meu quarto. Fui ao shopping aqui perto e andei pelas avenidas, vi chegar o meio-dia e almocei em restaurante árabe. Até que afinal recebi o cartão magnético para chegar aos meus aposentos. Subi com a patroa e abri a porta do cômodo a mim reservado. Mas, o quarto estava ocupado e eu tomei um dos maiores sustos de minha vida.
Quando interrompeu, novamente, a sua descrição, o Macieira tomou a palavra e disse que se explicasse de uma vez. Enfim, o que acontecera? O que vira? Que susto fora esse que levara? O homem estava de tal forma abalado que o queixo tremia, como tremem os que estão sob o frio intenso dos invernos boreais ou dos invernos austrais. Mas, decidiu-se por falar, depois que tomara um copo d’água bem gelada, um café quente e recebera de presente do recepcionista encabulado uma dose de bom whisky. Sentaram Ludovico numa poltrona confortável e decretaram: fala homem de Deus! E o homem falou! Não sem antes ouvir o Malheiros: "Não há mais jeito! Sendo assim, o jeito é falar!". E a voz do interlocutor se fez ouvir!
Quando teve o cartão magnético liberado – não há mais chaves em hotéis de várias estrelas – subiu, tranquilamente, com a mulher, com toda a felicidade do mundo, até porque estavam completando 26 anos de casados e aquilo lá seria uma lua de mel a mais em suas vidas. Abriu a porta com o cuidado dos amantes em flor e qual não foi a sua surpresa, quando descortinou na cama o casal em pleno congresso conjugal. Foi um Deus nos acuda, disse de logo, o homem levantou-se brabo e reclamou da invasão de privacidade. A mulher ficou aparvalhada, sem jeito e sem gestos, com a fisionomia de quem não estava acreditando no que via. Tinha a cara de quem comeu e não gostou, a fisionomia de profunda decepção diante da privação a que se submeteu.
Passados os minutos do impacto assim relatado, o Pimenta, como bom psiquiatra que é, indagou em voz pausada: “E você, colega, que impressão teve da ilustre dama a quem viu desnuda? Era bonita, bem feita e bem parecida? Ou se tratava de um troço desprezível?”. O Macieira acercou-se do grupo e complementou: “Já que você passou por esse vexame todo, aproveite o que ficou de bom, de gostoso e de belo! Afinal, valia a pena a mulher ou não?”. E o Ludovico, já sob os influxos da bebida que estava sorvendo a goles rápidos, acedeu em fazer uma descrição. Mas, faça com riqueza de detalhes, aduziu o Macieira, dentre todos o mais afoito. E o penitente começou a descrever a cena:
- Estava o casal sobre a cama, abraçados, em movimentos seguidos e cadenciados, como se ele fosse um cavaleiro a cavalgar uma potranca manga-larga. Quando saiu de sua posição congressual e quase veio à porta em trajes similares àqueles com os quais chegou ao mundo, deixou a companheira deitada, estatelada, vivendo a perplexidade da hora. Ai deu pra ver como era a penitente, como se apresentava a suplicante. Era figura feminina do tipo arabizada, mulher de seios pequenos, firmes, ao que parecia, de ancas largas. Chamava a atenção do observador, disse o velho Ludovico, cansado já de tanta guerra, a parte superior das coxas, grossas e sobrantes. Afinal, diga-se de pronto, a parte sobrante nada mais é que o culote. A Foi o que ficou, completou, o homem da inusitada visão.
E quando não se esperava mais nada, o casal flagrado em pleno congresso sexual passou pela recepção, não precisou pagar, porque os que são assim notados e dessa forma vistos estão dispensados do vil metal.
E por conta do episodio, conversaram às gargalhadas, a noite inteirinha, o irreverente Macieira, o pacato Pimenta e o tranqüilo Malheiros. Dava inveja ouvir as risadas do Malheiros, matreiro como era nas coisas do mundo.

(*) - Um relato de caso verdadeiro, visto e comentado em recente evento médico, sendo substituídos, como cabia, os nomes e evitado o lugar. Mas, um fato real, com os detalhes que o texto comunica. Comente no espaço mesmo do Blog ou o faça pelos e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com  O autor agradece.

domingo, 16 de maio de 2010

O Cinema do Padre

O cinema pertencia ao Padre Sales ou ao Monsenhor Doutor Francisco Apolônio Jorge Sales, como gostava de ser tratado, Camareiro Papal por derradeiro, título do qual muito se orgulhava. Era o Cine Soledade e cumpria a missão educativa de exibir películas de conteúdo sério, enredos suficientemente capazes de servirem à formação dos jovens e à reflexão dos adultos, como aquele da inauguração, quando apresentou o filme: O Coração. A história retratava a vida de um jornalista da imprensa diária e mostrava um de seus dias de grande cansaço, de exaustão quase, impedindo-lhe de escrever a crônica da manhã seguinte. O filho, vendo o pai assim, exaurido, terminou sentando-se à máquina e exercitando a criação, deixando-lhe no dia seguinte perplexo e satisfeito com a ato e com o fato. Impressionei-me com isso, confesso, e sai meio perturbado com a minha incompetência para repetir o feito! Tendo recebido depois de meu pai a obra correspondente, escrita por Edmundo de Amicis, tomei aquilo como sugestão para a vida, a de contribuir também, de alguma forma, para a família e até a de substituí-lo na precisão da hora! Eu tinha dez anos apenas, vejo agora, relendo a dedicatória paterna e era incapaz mesmo para qualquer coisa! Mas, os tempos passaram e um belo dia pude realizar o desejo pueril, o de ajudar o jornalista no batente! Escrevi três de suas crônicas, mas não agradei, inteiramente: “Não escreva mais! O seu estilo é outro! Você diz umas coisas que eu não digo!”. E era isso! Não podia ser diferente! Mas, cumpri o desiderato filial!
O pároco da Soledade, porém, brindara a família toda com permanentes que davam acesso gratuito às sessões noturnas e às exibições vespertinas e eu fui inúmeras vezes à platéia assistir a um sem número de filmes. Vi de um tudo, dentro dos limites sempre das recomendações do cura. Outras fita, em tudo diferentes, à semelhança daquelas de Brigitte Bardot, como foi Europa de Noite, tinham que ser vistas no Trianon ou no Art Palácio, mas o resto o Cine Soledade exibia pra toda gente. Eu gostava de admirar as cenas da tela, sem desprezar as particularidades ou as peculiaridades da platéia! Certa vez, por exemplo, chegou uma figura interessante, um marmanjo barbado, e do andar de cima gritou: “Mulheres! Cheguei!”. Os espectadores deram uma gargalhada coletiva e o gerente não dispensou a falta, tomou o anarquista de ocasião pelo braço e foi logo expulsando do recinto. O rapaz não perdeu tempo e novamente gritou: “Mulheres! Já vou!” Não precisa dizer da reação da platéia, a qual, outra vez, estourou em ruidosa e mais do que sonora gargalhada! Ali, no cinema do padre, muitos se iniciaram na pureza dos sentimentos, dos afetos e dos afagos ou nos amores quase platônicos em voga ao tempo, cochichando juras que não foram cumpridas ou fazendo promessas vãs, que restaram esquecidas aos ouvidos de agora. Havia à entrada uma boboniere, na qual se comprava o chiclete e se aliviava o hálito das declarações e dos amores. Perfumavam-se assim as palavras e as frases dos escuros e de outras cenas.
Mas, quando as cenas eram picantes - picantes para a moral da época -, como aquelas passadas nas praias, na abertura da temporada, quando a mulherada aparecia em agora comportados biquines, o Padre Sales, que a tudo assistia, chovesse ou fizesse sol, gritava para o operador: "Corta, Ribeiro! Corta Ribeiro!". E o atento funcionário utilizava-se de um anteparo de papelão, a tampa de uma caixa, geralmete, ocluindo a imagem que passava da câmara de exibição para a tela. Mas, a meninada, sobretudo os que estudavam catecismo e tinham direito à entrada gratuíta, Moisés Diniz à frente, não descuidava a hora e respondia: "Deixa Ribeiro! Deixa Ribeiro!". O operador não podia fazer nada, senão obstruir, realemnte, a passagem da imagem em movimento. Era um cinema de bairro, como tantos outros que neste Recife de Deus funcionaram nos arrabaldes e tanto serviram ao lazer, fosse dia ou fosse noite. Cinemas como o Politeama, conhecido como polipulga, tal a falta de higiene do lugar e tal a coceira dos expectadores. Nessas casas de projeção levava-se as namoradas e as trocas na tele serviam para orientar os amassos dos enamorados. Assim, por exemplo, ao terminar o jornal, passava-se o braço por cima dos ombros de uma penitente qualquer, começado o filme, arriscava-se um beijo na boca.   
Quando a casa foi arrendada as coisas mudaram e a censura marcava a idade. A molecada, entretanto, não deixava de comparecer aos filmes impróprios até 18 anos, mesmo na situação atrapalhada à época, a da chamada menoridade!
E por ai vai!

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Minha mãe

Minha mãe:

O dia das mães vai se aproximando, mas dessa vez tudo será diferente. Não posso mais ligar, como fiz por anos seguidos, para a sua casa bem cedinho, antes que o sol raiasse por inteiro, às 6 horas em ponto, tantas vezes. Você sempre foi assim, acordava com o galo e ia dormir quando a noite já estava alta. Os seus cuidados, aqueles que tinham vindo da infância – “Meu filho como está você? E a gripe? E a febre?” –, essas coisas passaram em suas inquietações. Nem sei mais se alguma coisa pode lhe inquietar de verdade. Não, não pode! Sequer a minha fisionomia lhe diz alguma coisa: “Mãe! É Geraldo!”. E as respostas – “Sim! Como vai?” –, raramente são verbalizadas. Nunca mais ouvi aquela sentença própria de seu vocabulário diante de minha pergunta rotineira – “Como está você? : “Sem novidades!”. Não há novidades, mas também não há como expressar mais. Cada vez que lhe vejo, confesso, volto arrasado, sorumbático e triste.



Uma de suas perguntas me deixou sem resposta: “Para morrer precisa sofrer tanto?”. Não deveria precisar. Se eu pudesse fazer alguma coisa, francamente, a deixaria dormindo o dia todo, a semana inteira e o mês, contanto que não ouvisse mais de sua boca esse quase desespero de seu viver. Não tive nada a lhe dizer quando você me disse: “Eu estou morrendo!”. É, minha mãe, infelizmente este é o desiderato da hora, a sentença que lhe vai sendo imposta aos poucos pela doença. Não há doença, há doentes, diziam os meus mestres, todos, praticamente, encantados no infinito das coisas. Pois é, esta é uma doente especial, porque é minha mãe e o que ela passa eu quase passo também. Uma mãe é especial para todos os filhos, mas no seu caso em particular: especialíssima!

Estava pensando com os meus botões, há pouco: como o tempo passou rápido. Faz alguns anos – ou faz muitos anos? – eu era menino bem menino. Corria pelo quintal feito um desadorado e você, diante da minha presença no olho do mamoeiro, dizia: “Desça pelo amor de Deus! Se o pé de mamão cair você também cai!”. E eu alegava o risco de ir de castigo, mas a sua negociação era sempre cumprida, eu podia descer que não seria punido. Raras as vezes que me sentei na cadeira da sala posto em castigo, calado e contido, sem olhar para os lados. O seu coração mole de mãe me liberava rapidamente. E quando o comercio deu ênfase ao dia das mães, eu cantava assim: “...Eu te lembro chinelo na mão/O avental todo sujo de ovo/Se eu pudesse/Eu queria outra vez mamãe/Começar tudo, tudo de novo...”. É não é possível começar tudo outra vez, mas que dá vontade, dá.

É isso, minha mãe. Não tenho mais como ouvir os detalhes do presente: “Uma fazenda azul de algodão, 100% algodão.”. O vestido já não lhe basta, é a camisola que a veste de sol a sol no isolamento de seu quarto. Vou comprar uma camisola com as mesmas características, da cor de seus gostos e do mais puro algodão que encontrar, mas isso é um sinal péssimo para mim. Ah se eu pudesse transformar a fotografia que está atrás de si, o retrato de seu casamento, em realidade! Queria vê-la andando como qualquer um, falando sentenças com nexo, indagando e respondendo a contento. Mas, não posso mais! Deus lhe abençoe digo agora, invertendo os papeis.




domingo, 2 de maio de 2010

Uma Alameda das Saudades

Ah essas ruas do Pombal, limítrofes, bem sei, entre o bairro da Boa Vista e o de Santo Amaro das Salinas, caminhos dos meus tempos de menino e passeios dos meus anos de rapaz! Ruas e ruelas, avenidas e vielas, todas guardando um pouco de minha história, das peraltices e das traquinagens reprimidas, das paixões e dos amores, como das dores, das ansiedades vividas e das angústias nascidas dos medos e dos receios de todos os começos. Meus inícios, afinal, foram ali, nas alamedas do lugar! Calçadas de boa pedra, estradas dos meus devaneios, nas idas e nas vindas de patinete, com a agilidade surpreendente dos princípios. Voltas e mais voltas de bicicleta, matando as aulas às vezes, deixando de estudar as lições noutras, contanto que estivesse, mais e mais, nas proximidades viris dos emergentes desejos, ao lado de uma ou de outra mulher posta no altar dos meus encantos.
Pras bandas de lá e correndo para o mar sempre, o velho rio das capivaras, embalando nas águas calmas e silentes juras de amor que se esvaíram nos ares das fantasias. Conversas e mais conversas, como se gente grande já fosse, nas idades desses começos, fiadas à beira do Capibaribe, que se abraça com o Beberibe e vai formar o oceano enorme. Meninos e meninas, alguns de mãos dadas e outros em pleno processo de sedução juvenil, olhares e palavras trocados assim, nas ruas do Recife, nesses domínios da Boa Vista. Numa praça qualquer, entretanto, em Santo Amaro das Salinas, em banco forjado na pedra, assentou-se o casal muito novo ainda. Ele de origens burguesas e ela do simplório recanto e na troca de afetos e de afagos, entremeados por ósculos mais do que inocentes, vislumbraram futuros que se tornaram presentes, mas sofreram a metamorfose do pretérito! Do nada, também!

Aos domingos, como diz o poeta, cantarolando os versos, Missa na Matriz da Soledade, onde pontificava o Padre Sales, Monsenhor com as honras todas de Camareiro Papal. O mais rápido de todos os curas que conheci na vida, nos ritos e nas liturgias, celebrante dos quinze minutos, somente. Toda gente gostava do pároco, de sua ligeireza e de suas prédicas, condenatórias todas, das incursões da carne, que é fraca, em todos os mortais deste mundo. Promessas e mais promessas, poucas inteiramente cumpridas, dívidas, então, com os céus. Cem terços pela aprovação no último ano de colégio! Negócio fechado, mas rezado, nunca! Houve quem prometesse fazê-lo, isto é, correr as contas todas do rosário em lugar do penitente! Se rezou ninguém sabe, ninguém viu! Não se transfere nada do que foi acertado com o infinito das coisas, com os santos ou com as santas, com os querubins ou com os serafins, disse o confessor, exigindo reparos!

No dia da fogueira, quando a noite se achegava nos vagares daqueles anos, um pé-de-moleque bem feito, salpicado por castanhas torradas em casa, encimava a mesa, suculento e amorenado. No momento do relógio bater as seis badaladas das horas, acendia-se a lenha postos em pedaços, cruzados sempre. Minha mãe tomava coragem e tocava fogo nos vulcões que comprara na esquina! Com chuva ou sem chuva, instalava-se uma tempestade colorida, bolas douradas e prateadas, róseas e esverdeadas ganhavam os ares, alumiando a negritude do manto do tempo. Uma vez, posto na cama em repouso por conta de um Sarampão, lembro-me ainda, terminei assistindo de longe, escondido na varanda de casa, ao espetáculo dos fogos. Às folhas tantas, Dona Lila acendeu o pavio de um foguete e tome nos ares da rua o espocar seguido, em tiroteio verdadeiramente, dessas balas, que eram aquelas dos amores maternos.

No fim do ano, entretanto, estreava a Festa da Mocidade, trazendo a roda gigante e o polvo, o tira - prosa e o trem fantasma, mas, sobretudo as vedetes, as mais lindas que o Recife já viu. Cantavam e dançavam ao som da grande orquestra. Levavam, para gáudio da platéia comandada por meu tio, Sileno de prenome: Tem Bu-Bu-Bu no Bó-Bó-Bó! Saia de casa com a mais do que expressa recomendação paterna: “Tudo, menos o teatro e as vedetes!”. É que nas páginas do Jornal do Commercio o meu pai vinha combatendo a sensualidade que julgava desenfreada. A desobediência era inevitável e inadiável! Longos os passeios depois pela ambiência festiva, por vezes na companhia feminina, muito mais agradável, sem dúvida ou com a turma do barulho, de marmanjos em processo de desenvolvimento dos fios da barba. Pra lá e pra cá, flertando com as moças do tempo, nem sempre com sucesso. Mas, a paraibana de nascimento, em férias por aqui, não acreditou nas explicações de que a menina enlaçada pelo ombro fosse apenas uma prima muito tímida e inibida, incapaz de circular sozinha! E não aceitou as aproximações propostas!

Eis a alameda de minhas saudades!

(*) - Comente no espaço mesmo do Blog ou para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com